A Normalista/II

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Foi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitão Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza, pela estrada nova de Mecejana, depois de penosíssima viagem.

A seca dizimava populações inteiras no sertão. Famílias sucumbiam de fome e de peste, castigadas por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areal incandescente dos caminhos — abantesmas da desgraça gemendo preces ao Deus dos cristãos, numa voz rouquenha, quase soluçada. Era um horror de misérias e aflições.

Bernardino de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior da província para o litoral na pista de socorros públicos. Totalmente desiludido, quase arruinado, vendo todos os dias passarem por sua porta, em Campo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do sertão num êxodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera também ir-se com a família para Fortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a procurar outros climas.

Era homem sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando o peito rijo, não se trocar por muito rapazola pimpão que aí vive nas cidades grandes caindo de tédio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nas veias largas e azuis de matuto inteligente, puro e abundante sangue português. Nunca sofrera a mais leve dor de cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casara muito moço, imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália de Mendonça Furtado, de uma família de Furtados da Telha. Até então só tivera três filhos, um dos quais, o mais velho, chamado Lourenço, fora recrutado para o exército por peralta incorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e também mais obediente, vivia com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça que descobrira nele especial vocação para esse inglório trabalho de andar atrás das boiadas — ecô! ecô! — metido em couros, chapinhando açudes e lagoas, galopando à brida solta nas várzeas, ao ar fresco das manhãs do norte, identificado, por assim dizer, com o mugir nostálgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o à vida alegre do campo, e agora aí vinha também, Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrês choutão, escanchado entre dois grandes alforjes de farinha e carne salgada.

Por último nascera Maria do Carmo, o último filho de Mendonça, a caçula. Em 1877 completava seis anos, e, para felicidade dos pais, era uma criança verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingênuo e meigo de sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo — tudo nela era um encanto: olhos puxando para negros, dentes miudinhos e de uma brancura de algodão em rama, cabelos negros e luzidios como a asa da graúna — morena-clara. Crescia sem outra ­educação a não ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a Doutrina Cristã.

Mendonça abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as esperanças de inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar a última rês no solo duro e estéril.

Todas as tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em pé na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o céu de um azul diáfano de safira, procurando bispar na inclemência da atmosfera imóvel a sombra fresca de uma nuvem, um indício qualquer de chuva.

Surpreendia às vezes, crivando a transpa­rên­cia­ do ar, revoadas de aves de arribação. Recolhia-se animado. Mas os dias passavam quentes e ­secos.

Outras vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidos abriam-se no poente como reflexos de luz elétrica; ouvia-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça punha-se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, e lá tornava a iludir-se alimentando, toda uma noite, a doce esperança de ver pela manhã o solo úmido e a rama brotando verde e pujante da “fornalha”. Mas qual! As manhãs sucediam-se cada vez mais tépidas, sem pingo de água, uma aragem leve, de cemitério, arrepiando a folhagem do arvoredo. Um céu muito alto, varrido, monótono, indecifrável como um dogma.

E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuan­do forte no espírito do sertanejo, como as vibrações de um clarim que dá sinal de marcha; pouco a pouco foi-se convencendo de que aquilo era uma situação impossível em que ele não devia absolutamente permanecer.

Os açudes estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros como pedra; juritis en­candeadas iam espapaçar ofegantes no chão, defronte da casa, cascavéis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis, e todas as coisas tinham um aspecto desolado e lúgubre que se comunicava às criaturas.

Passava gente todo santo dia, a pé, de trouxa ao ombro, arrastando-se pesadamente.

Uma vez ele próprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta de uma mulher asfixiada pela elefantíase — pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado — horrível!

Decididamente era tempo de arrumar também “os seus cacos” e — adeus Campo Alegre, adeus carnaubais rumorejantes, adeus igrejinha branca! Ir-se-ia fazer pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos políticos, correligionários dedicados que certamente lhe não recusariam uma acha de lenha, um pouco de água fresca, um punhado de farinha... Demais era homem, graças a Deus, forte como novilho, tinha sangue nas veias — trabalharia!

Ao mesmo tempo lembrava-se da “sua velha”, da Eulália, que andava adoentada, com umas pontadas no coração, muito fraca e cuja natureza talvez não resistisse às fadigas duma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a menina de seus olhos, tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da seca, nas febres de mau caráter, na quase absoluta falta de água, com um desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao mesmo rio de idéias: não, aquele inferno do sertão, com um raio de tempo medonho seria talvez pior, seria a sua desgraça. De si para si media, calculava, meticulosamente, toda a gravidade da situação a que chegara. Não havia outro recurso, outro jeito senão marchar para a capital, para onde quer que fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela miséria. Iria, que remédio? bater à porta de um amigo, de um correligionário, de um cristão. Lembrou-se então do “compadre João da Mata”, padrinho de Maria.

Muito bem: iria ao compadre.

Arribaram de manhã, muito cedo, ao romper da alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam num trote miúdo. Ao passarem defronte da igrejinha do povoado, um pobre nicho todo fechado, com as suas janelinhas por pintar, solitário como uma coisa inútil, D. Eulália ciciou uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro, descobriram-se com respeito.

Havia oito anos que isto fora...

Enfiaram por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente, torcendo e retorcendo-se em ziguezagues, ocultando-se aqui para brilhar lá adiante, por cima da floresta imóvel, como uma enorme serpente amarela dormindo ao sol...

As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e a pequena caravana sumia-se na distância...

Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar à sombra de alguma árvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o campanário branco e alegre do Coração de Jesus, direito e esguio como o minarete de um templo muçulmano, destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiação do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde par­da­centa.

Morria no ar calmo o dobre melancólico de um sino...

Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para as bandas do Pajeú ardiam restos de fogueiras a extinguirem-se.

Uma tarde infinitamente calma, essa...

Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria do Carmo punha-se a relembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhava para o passado com a alma cheia de saudade, recordando, tintim por tintim, como se estivesse lendo num livro, ninharias, minu­dên­cias de sua vida naqueles tempos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de-rosa através do prisma límpido e imaculado de sua meninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, a Campo Alegre, e via-se, como por um óculos de ver ao longe, ao lado da mamãe, costurando quie­ta ou soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim, muito limpa, com o seu vesti­dinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se do papai quando voltava do roçado, de camisa e ceroula, chapéu de palha de carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias de onças e maracajás...

Recapitulava, mentalmente, com uma precisão cronológica, toda a sua vida e ficava horas e horas em cisma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juízo...

Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe à mente os episódios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao pé duma árvore, à faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que cantava na estrada sem ter o que comer...

Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio do caminho, sobre o areal quente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamente nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorados pelas varejeiras... Que feio aquilo!

Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, não era, mas se fosse possível tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...

No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera duma síncope cardíaca. Maria lembrava-se muito bem; a mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa Casa de Misericórdia, toda de preto... Parecia vê-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos, mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife...

Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada de anjos com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o céu... Por sinal acordou sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se toda na rede, fria de medo.

Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a João da Mata desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse. Não podia continuar no Ceará, viúvo e ocioso, de braços cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, decididamente não podia continuar. Mas, havia uma dificuldade — a Maria. Se o compadre quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma mesada, um pequeno auxílio...

O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no Ceará não valia coi­síssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com um pouco de experiência, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais? eram uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão no bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até defronte do palácio do governo, uma lástima!

E acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas de honradez era sempre o pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o indivíduo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e abria os braços) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos os salões, em toda a parte, até no “santuário da família” fosse ele, embora, um patife, um grandíssimo canalha. Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título de bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar onde quisesse — “Uma terra de famintos, seu compadre! Fome, miséria e patifaria era o que se via.” — Com a Maria do Carmo não tivesse cuidado; ele, João da Mata, havia de tratá-la como filha, não lhe faltaria nada; teria para ela todas as carícias, todos os afagos de um pai. Mendonça podia mesmo demorar o tempo que quisesse no Pará, anos, séculos... a menina ficava em casa de gente séria, pobre, é verdade, mas honrada.

Daí a dias, um domingo de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque do capitão Mendonça e do Casimiro.

Os conselhos de João calaram poderosamente no ânimo forte e resoluto do sertanejo cuja confian­ça no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase todo o Ceará, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o “coração generoso” e democrata, por tal forma que João se lhe afigurou o único homem capaz de concorrer para a felicidade de sua filha — reflexões nascidas de boa-fé e da experiência da vida social, que enchiam de íntima e doce consolação a alma ingênua e simples do sertanejo.

Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens à capital tinham sido raríssimas; viera vezes contadas a negócio. Sabia os homens propensos ao mal, por mais duma vez ele próprio fora vítima da ingratidão de indivíduos que se diziam seus amigos e a quem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosa e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vícios inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas, isso que constitui, por assim dizer, a maior felicidade do gênero humano, esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortiço de vespas que se denomina — sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. Lá, no seu tranqüilo recanto de Campo Alegre, onde só de longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em mulheres que traíam os maridos, filhos que assassinavam os pais, incestos de irmãos, homens que negociavam com a própria honra... e tudo isso parecia-lhe simples “invenção das gazetas”, romances de sensação que ele ruminava devagar e esquecia depressa.

— “É uma grande alma aquele Mendonça!” admiravam os amigos.

E era-o.

Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar o tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas as suas forças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Pará.

E lá se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa dum vapor brasileiro, honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pela vida até... sabiam lá!...

Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças de chita, rendas, fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta americana. Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios d’água e a voz trêmula “que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio uma mulher ignorante, e, finalmente, que não esquecesse de rezar por alma da mamãe”...

Maria lembrava-se de tudo.

Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos.

Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a mãe, morrera-lhe o pai duma febre, no alto Purus. O Casimiro ninguém dava notícia dele, nunca mais voltara... O Lourenço, esse ela não conhecia — andava no sul feito soldado. Estava só, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer que não tinha tristezas, uma ou outra vez é que se punha a pensar no passado.

Depois que saíra da Imaculada Conceição a vida não lhe era de todo má. Ora estava no piano, ensaiando trechos de música em voga, ora saía a passear com a Lídia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia romances... Ultimamente a Lídia dera-lhe a ler O Primo Basílio, recomendando muito cuidado “que era um livro obsceno”: lesse escondido e havia de gostar muito. — “Imagina um sujeito bilontra, uma espécie de José Pereira, sabes? o José Pereira, da Província, sempre muito bem vestido, pastinhas, monó­culo...”

— Não contes, atalhou Maria, tomando o livro — quero eu mesma ler... Gostaste?

— Mas muito! Que linguagem, que observação, que rigor de crítica!... Tem um defeito — é escabroso demais.

— Onde foste tu descobrir esta maravilha, cria­tura?

— É da mamãe. Vi-o na estante, peguei e li-o.

Maria folheou ao acaso aquela obra-prima, disposta a devorá-la. E, com efeito, leu-a de fio a pavio, página por página, linha por linha, palavra por palavra, devagar, demoradamente.

Uma noite o padrinho quase a surpreende no quarto, deitada, com o romance aberto, à luz duma vela. Porque ela só lia O Primo Basílio à noite, no seu misterioso quartinho do meio da casa pegado à sala de jantar.

Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada história do Paraíso!... A primeira entrevista de Basílio com Luíza causou-lhe uma sensação estranha, uma extraordinária superexcitação nervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas, titilações em certas partes do corpo, prurido no bico dos seios púberes; o coração batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos... Terminou a leitura cansada, como se tivesse acabado de um go­zo infinito... E veio-lhe à mente o Zuza: se pu­desse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de ­Luíza...

Até aquela data só lera romances de José de Alencar, por uma espécie de bairrismo mal-entendido, e a Consciência, de Heitor Malot pu­blicada em folhetins na Província. A leitura do Primo Basílio despertou-lhe um interesse extraordinário — “Aquilo é que é um romance. A gente parece que está vendo as coisas, que está sentindo...”

Não compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lídia; sim, a Campelinho devia saber a história da champanha passada num beijo para a boca de Luíza. — Que porcaria! E assim também a tal “sensação nova” que Basílio ensinara à amante... não podia ser coisa muito asseada...

Terminada a leitura do último capítulo, Maria sentiu que não fossem dois volumes, três mesmo, muitos volumes... Gostara imensamente!

No dia seguinte, antes de ir à Escola Normal, Maria teve uma entrevista secreta com a amiga no quintal da viúva Campelo que morava defronte do amanuense.

A Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores para a Nossa Senhora do Oratório. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cercado de estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericões ao fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telhado. O chão úmido da chuva que caíra à noite, porejava uma frescura comunicativa e boa.

Lídia estava à fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda aberta nos ombros, quando Maria apareceu.

— Boa vida, hein? saudou esta. E logo, triunfante: — Acabei o Primo Basílio!

— Que tal?

— Magnífico, sublime! Olha, vem cá...

E dando o braço à outra dirigiu-se para o “banheiro”, uma espécie de arapuca de palha seca de coqueiro, acaçapada, medonha, sem a mínima comodidade e para onde se entrava por uma portinhola de tábua mal segura.

Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabão, única mobília do “banheiro”, Maria sacou fora o Primo Basílio, cuidadosamente embrulhado numa folha da Província. Queria que a Lídia explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetrável à sua inteligência.

— É isto, menina, que eu não pude compreender bem. E, abrindo o livro, leu: “...e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanha. Talvez ela não soubesse! — Como é? perguntou Luíza tomando o copo. — Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanha por um copo. O copo é bom para o Colares... ‘Tomou um gole de champanha e num beijo passou-o para a boca dela’, Luíza riu...”, etc., etc...

— Como explicas tu isso?

— Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão simples... Toma-se um gole de champanha ou de outro qualquer líquido, junta-se boca a boca assim... E juntou a ação às palavras.

— ...e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tão simples...

— E que prazer há nisso?

— Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode lá haver gosto...

Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço a braço, passaram à “sensação nova”.

Lídia apressou-se em dizer que as “mulheres do mundo” é que sabem essas coisas... Quanto a ela não conhecia outras sensações além dos beijos na boca, às escondidas, fora os abracinhos fortes e demorados, peito a peito, isto mesmo com pessoa do coração... Contou então que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com receio de que alguém as estivesse observando.

— E consentiste?

— Qual! Dei-lhe com um — não — na cara, e o tolo nunca mais me fez festa.

Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-se, e depressa a conversação tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Loureiro.

— A propósito, perguntou Maria curiosa, pretendes mesmo casar com o guarda-livros?

— Por que não? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem! Decididamente este não me escapa, tenho-o seguro... Vai todas as noites à nossa casa, como vês, está caidinho. A mamãe já não repara, deixa-se ficar com o dela...

— Com o dela? inquiriu Maria com surpresa, muito admirada.

Apanhada em flagrante indiscrição, Lídia confessou, muito em segredo, que uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um negociante...

— !!!

Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espicaçava o espírito. Calou-se para não ser indiscreta, e, depois de uma pausa em que folheava maquinalmente o romance:

— Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o Loureiro?

— Que pergunta, criatura? Certamente que sim. Ele então tem uma paixa doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. É na boca, no pescoço, na orelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto de beijos! E é preciso que se note, conhecemo-nos há três meses! E o teu Zuza?

O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava no começo. A falar verdade, ela gostava do Zuza e casaria se ele quisesse, mas até aquela data ainda não se tinham comunicado. Conheciam-se — nada mais.

Nessas confabulações íntimas com a amiga, Maria, que começava a compreender a vida tal como ela é na sociedade, fingia-se ingênua, tolinha, expediente que usava sempre que desejava saber a opinião da Lídia sobre isto ou sobre aquilo.

A princípio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais livre ou a qualquer fato menos sério que lhe contavam as colegas de estudo. Agora, porém, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem acanhamento, sem pejo. Pouco a pouco foi perdendo os antigos retraimentos que trouxera da Imaculada Conceição. A convivência com as outras normalistas transformara-lhe os hábitos e as idéias. A Lídia principalmente era a sua confidente mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos cochichos... Havia entre elas um comércio contínuo de carinhos, de afagos e de segredos. Gabavam-se mutua­mente, tinham quase os mesmos hábitos, ves- tiam-se pelos mesmos moldes, como duas irmãs.

Lídia Campelo tinha então vinte anos. Era uma rapariga alta, “fausse-maigre” e bem-feita de ­corpo.

A razão por que ainda não se casara ninguém ignorava, toda a gente sabia — é que a filha da viúva Campelo, por via do atavismo, puxava à mãe. Não havia na cidade rapazola mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que não se gabasse de a ter beijado. Tinha fama de grande namo­radeira, exímia em negócios de amor. O próprio João da Mata não gostava muito daquela amizade com Maria. Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrúpulos, os seus receios em relação a essa intimidade da afilhada com a Lídia: — “Não consentisse a rapariga ir à casa da outra. Antes prevenir que curar.”

Havia mesmo quem ousasse afirmar que a Campelinho “já não era moça”.

Da viúva diziam-se horrores: “aquilo era casa aberta...” Tantos fossem, quantos ela recebia com risinho sem-vergonha, arregaçando os beiços. A filha seguia o mesmo caminho.

O certo, porém, é que o procedimento de D. Amanda não escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas, num respeitoso isolamento, saindo à rua poucas vezes em companhia da filha, não freqüentando os bailes nem o Passeio Público e muito menos as igrejas: vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido.

— “Uma mulher honesta!” protestava o Loureiro. Infâmias era o que se diziam da pobre senhora, infâmias que caíam por terra, ante o indefectível procedimento de D. Amanda!

E acrescentava convicto:

— Tal mãe, tal filha!