A Normalista/VI

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O primeiro cuidado do Zuza ao regressar da excursão presidencial a Baturité foi ajustar contas com o redator da Matraca, ameaçando urbi et orbi fazê-lo engolir o número do pasquim que trazia a versalhada torpe sobre o namoro do Trilho de Ferro.

No Ceará não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da província, era ele, Zuza. Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto, a infâmia referia-se à sua pessoa, e o único meio simples, fácil e positivo de se ensinar um patife é dar-lhe de rebenque na cara. Conclusão: o redator da Matraca não só ia engolir o papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse o que custasse!

— Grandissíssimo canalha!

— Mas no Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada cidadão aqui é uma verdadeira Matraca. Não te importes, não te dês cuidado...

Isto dizia-lhe o José Pereira na redação da Província; mas o Zuza recalcitrava:

— Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume nesta terra os indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que tomam uma xícara de café, pílulas! é preciso dar um ensino, é preciso que alguém se le­vante!

— É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí fica a vítima do insulto com cara de besta. É o que é. Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo...

Esse José Pereira fisicamente dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo da Escola Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa e negra cobrindo quase todo o corpo, os mesmíssimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele é que se dizia que fora surpreendido em flagrante adultério com a mulher do juiz municipal no Passeio Público, um escândalo que por muitos dias serviu de pasto a boticários e bodegueiros.

Começara a vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí estava feito redator da Província em cujo caráter tornou-se geralmente admirado por seus folhetins alambicados, que o público digeria à guisa de pastilhas de Detan. Aos sábados publicava no rodapé do jornal fantasias literárias, contos femininos em estilo 1830, histórias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas.

Cedo José Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine e a julgar-se, com efeito, um grande escritor, “um talento”, capaz, olá! muitíssimo capaz de fazer as delícias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar autoritário, certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se “contemporâneo de Rocha Lima”, “amigo de Capistrano de Abreu”; certo aprumo pedante que não condizia com a sua velha sobre­casaca de diagonal cujo estado incomodava deveras a alta sociedade cearense.

Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um jornal, sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu? Sempre o mesmo também, um triste chapéu­ de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitável sociedade cearense exigia primeiro que tudo decência no trajar, e aquilo assim, aquela so­bre­casaca sórdida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante duma estátua nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios, comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre pessoas de certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo o homem de talento, na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca à última moda, uma calça à última moda, e um chapéu à última moda, conforme os figurinos, para os “momentos solenes”, deve ser enfim um sujeito “correto” na acepção mais lata da palavra.

O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não ignorava como se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a sociedade cearense) o Sr. José Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre invariavelmente a mesma sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento sem gosto é o que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da família, cento e cinqüenta mil-réis por mês, uma ninharia.

Os seus amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição para a compra de um paletó novo e de um chapéu idem. José Pereira, porém, tinha espírito e respondia-lhes ao pé da letra, mudando logo o rumo da conversa.

Nesse tempo o redator da Província ainda era calouro em política. Dava seu voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro novo era para ele a melhor novidade; caísse embora o ministério, rebentasse uma revolução, ele conservava-se a ler, virando páginas, devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de papelão no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e salteado; fora o seu primeiro “mestre”. Depois entregou-se a ler os Miseráveis, declarando-se hugólatra incondicional em uma apreciação que fizera do grande poeta. O artigo concluía deste modo:

“Victor Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele é todo um século. Tudo nele é grande como a natureza. Os Miseráveis são a apoteose de todas as misérias humanas. Victor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade. Amemo-lo como a um Deus!”

Isso produziu efeito entre os literatos contemporâneos que não dispensaram elogios ao “valente folhetinista” da Província.

A fama de José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se — aí vai o José Pereira! como quem diz — aí vai um gênio. E ele saudava a todos convictamente, tocando de leve a aba mole do chapéu preto de massa.

Em fins de 1886 José Pereira conservava-se ainda na Província, como um dos principais redatores. A sua fama, se não decrescera, era a mesma com uma pequena e insignificante diferença — é que ele já não era simplesmente um “talento fecundo”, mas também um fecundíssimo canalha, um requintado “sedutor de mulheres casadas”, o que afinal de contas não o prejudicava assaz no conceito do mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente.

Não, diziam elas, o diabo não é tão feio como o pintam. José Pereira podia ser um rapaz alegre, divertidíssimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres — vá, mas, em suma, um excelente rapaz e um belo caráter. Porque o fato de um homem apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas diferentes não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais, José Pereira era artista, e o artista, escultor ou poeta, pintor ou músico, não pode compreender a vida sem o amor...

— Mas é um homem casado, profligavam ­outras.

— Bem; mas o casamento...

E demonstravam que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre-arbítrio das partes, é, ao contrário, uma instituição que concede, tanto ao homem como à mulher, plena liberdade de amar ao próximo como a si mesmo.

Entre as que adotavam a prática destas teo­rias tão abstrusas quanto originais, distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr. Mendes.

— Então, decididamente queres quebrar a cara ao redator da Matraca? dizia ele ao Zuza.

— Mas que dúvida!

Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se faz uma jangada.

— Mas olha que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto vem de baixo, a gente deve responder com o desprezo. O desprezo é a arma invencível dos espíritos superiores. Eu é como tenho resolvido questões desta natureza.

— Qual desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso; pisa-se-o, reduz-se a papas. Isto é o que fazem os espíritos superiores. Sabes quem é o biltre?

— Homem, francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem ser um tal Guedes, vulgo Pombinha, um sujeito reles, troca-tintas, um miserável que nem vale a pena de um escândalo...

— Não vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro... Onde fica a tipografia do jornaleco?

— Na rua de São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda com ares de latrina.

— Guedes (Pombinha)... rua de São Bernardo. Muito bem!

E o Zuza tomou nota do seu canhenho, guardando-o resolutamente.

— Diabos me levem se eu não fizer uma estralada hoje.

Mudando de tom:

— Quero que publiques hoje o meu soneto A Volta; deve sair hoje infalivelmente.

— É dedicado à mesma?

— Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena está pelo beicinho. Há de cair como uma mosca, eu te garanto.

— Um divertimento, hein?

— Não sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles olhos de madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons... — tudo nela enfim, agrada-me.

— Mas é uma pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar, encher de beijos e — pernas para que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores. Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida é uma comédia, como lá disse o outro...

Então o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um barão, e, se não fosse esperto, àquelas horas estaria talvez às voltas com o minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão impoluta que acabou fugindo com um jóquei do Prado pernambucano, um negro!

Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava casar, mas casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas para o adultério, uma menina que até chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira exceção no meio de uma sociedade roída por quanto vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas inocente...

— É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócio de namoros. Sei de uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuchar um grandíssimo falo com todos os seus petrechos...

— O quê, homem?

— É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.

— Ó senhor, então, ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena sociedade! exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pince-nez. Pois olha, eu supunha isto aqui uma santidade.

— É que há muito tempo não vinhas ao Ceará. Por cá também se dão escândalos, como em Pernambuco, e escândalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu pai.

O escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados defronte um do outro à mesa dos redatores, fumando enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as oficinas, os tipógrafos compunham atarefados a matéria do dia.

Seriam duas horas da tarde. O calor abafava.

Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.

— Falta matéria? perguntou José Pereira, encarando-o. “Não sabia, não senhor, ia ver.” E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo.

— Bem, disse o Zuza levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso acabar com isso.

— Mas olha, recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?

— Não, não. A coisa é simples. Addio.

E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.

— É um criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando a pena.

Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da Província, também poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores Agrestes publicadas há dias e que tinham sido muito bem recebidas pela crítica indígena. Vinha trazer a resposta ao crítico do Cearense que o chamara — plagiador de obras alheias.

— Então temos polêmica? perguntou José Pereira sem levantar a cabeça, revendo as provas.

— Por que não! Hei-de provar à evidência que não preciso plagiar ninguém. Aqui está o primeiro artigo. É de arromba!

O Castrinho sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço de tiras de papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma ­coisa:

— Aqui está: hei-de rebater uma a uma, sem dó nem piedade, todas as asserções do meu invejoso contendor.

— Já te falo, disse o outro continuando o trabalho. Tem paciência um pouquinho. O diabo das provas...

— Sim, continua; não te quero interromper...

Plagiador ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de versejadores cearenses! Havia de provar o contrário, porque tanto sabia burilar um soneto como manejar a prosa.

Até estimara a provocação do Cearense, porque desse modo o público ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Aí estava o juízo da imprensa fluminense, aí estava o juízo de toda a imprensa do Brasil, do Amazonas ao Prata, sobre as Flores Agrestes. Um jornal do Sul — O Cometa — comparara-o até a Olavo Bilac e a Raimundo Corrêa!

— Inveja, murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre vítima do despeito das mediocridades.

E terminando a revisão:

— Vejamos o que escreveste.

— Somente isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer ao zoilo do Cearense, por a mais b, que ele é o plagiador, o invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não se limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine.

José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir, “atestado eloqüente de uma luta de heróis” como dizia o Zuza, e, depois de acender a ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou com olhar protetor a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe — As Flores Agrestes e a Inveja Furiosa, e concluía nestes termos: “Voltarei à questão para esmagar com a lógica irrefutável da verdade o ousado e néscio criticista que me acoimou de plagiador. O público verá qual de nós tem razão; eu que tive o aplauso de quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do Cearense, que pretendeu obscurecer o meu merecimento.”

— Magnífico! exclamou José Pereira levantando-se. Dá cá um abraço, homem.

E estreitando o Castrinho, contra o peito:

— Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu isto vale o que escreveu, caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser um grande poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Victor Hugo... E logo, paternalmente: — Queres jantar comigo?

— Obrigado. Hás-de permitir que te agradeça, hein? Adeusinho. Não esqueça o artigo.

— Absolutamente, não. Amanhã im­pre­te­ri­velmente, vê-lo-ás na segunda página, todo, intei­rinho. Adeus.

Vendedores de jornais esperavam a Província, à porta da redação, inquietos, turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha, e já se ouvia o barulho do prelo lá dentro, imprimindo a folha governista. Empregados públicos voltavam das repartições taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá, amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major Facundo: um ou outro transeunte ma­cambúzio, de chapéu de sol, caixeiros que atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres-diabos arrastando-se a pedir es­mola.

A cidade permanecia na sua costumada quietação provinciana, muito cheia de claridade, bocejando preguiçosamente de braços cruzados, à espera do Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo de uma atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava à distância, num ritmo cadenciado e monótono, o canto estridente e metálico duma araponga, cujo eco repercutia em todo o âmbito da pequena capital cea­rense.

Ao dobrar a rua da Assembléia, o Zuza parou, à espera que o bonde passasse, e esteve considerando um instante. — De que lhe servia ir onde estava o Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repelir a agressão e aí estava um conflito sério, em que um dos dois necessariamente havia de sair ferido. Afinal de contas era provocar um escândalo inútil, vinha a polícia e a vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do presidente... Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como aconselhara o José Pereira, dar ao desprezo o cão. Se ele, porém, o aboca­nhasse outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para a reincidência do foliculário. Província estúpida! Estava doido por se ver livre de semelhante canalhismo. E aquilo é que se chamava terra da luz!

Seguiu para casa preocupado com essas idéias com um nojo do Ceará.

O coronel divertia-se tranqüilamente com a passarada do viveiro, metido no inseparável gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era amigo de pássaros e tinha-os magníficos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, além do viveiro, também de arame, em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto, colocado no quintal, defronte da casinha de banhos.

Uma vidinha estúpida aquela! pensava o estudante estendendo-se na rede. Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! o Recife, o Prado aos domingos, os passeios, belos piqueniques a Caxangá... Lembrou-se de sua última conquista amorosa — a Rosita, uma espanhola com quem estivera seguramente seis meses. Um peixão! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas, anéis de brilhantes, esplêndida: era argentina.

Que de cerveja e ceatas e passeios de carro e pagodeiras nos hotéis! Relembrava a primeira noite que passara com a Rosita, por sinal tinha tomado muita champanha, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela na Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com a sua mobília mignon de assento estufado, piano, quadros do paganismo, bibelô... E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho de amores. Zuzinha — era como ela o tratava com toda ternura, cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo — ela de peignoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos matadores, úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem colarinho — um deboche!

E uma saudade imensa invadia-o. Saudade da Rosita, saudade da república — uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos — saudade dos banhos de mar em Olinda...

Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito bonitinha, é verdade, mas uma tola que não sabia tratar com rapazes educados. Lá por ser pobre não; mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Além disso um nome de matuta — Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luíza, mas Maria do Carmo!...

Começou então a fazer considerações sobre Maria. Achava-a até parecida com a Francina, uma rapariga de Pernambuco, também morena e de olhos cor de azeitona, baixinha e sem-vergonha, “passada” por todos os estudantes de academia. Mas mesmo muito parecida, agora é que se lembrava: era a Francina. Um horror! No Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até aos olhos. Os rapazes viviam se queixando de moléstias secretas.

Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se.

O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza herdara essa qualidade característica dos Souza Nunes — o amor à ordem. Tudo dele era arrumado e limpo. Adorava a boemia, mas a boemia que não cospe no assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de asseio, como em muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se portar com a máxima inteireza, no asseio do corpo, como no das ações. Toda a mobília do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras, um sofá e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul, de lã. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma rede. Ma cabine à coucher, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior confortável de boêmio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrer em penumbra lá dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam litografias en­cai­xilhadas de poetas célebres e o retrato de Gambeta na postura habitual em que o grande orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo, dizia o estudante, e no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima da mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se com jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o “gabinete” do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso.

Tinha aberto ao acaso o seu romance querido, A Casa de Pensão. Um livro importante, gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura brasileira, não deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar em conta do ódio injusto que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.

O estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou numa crítica de Ramalho. — “Não queria, não podia tragar coisas que lhe provocassem vômitos.” Preferia um churrasco à baiana ao “tal” Sr. Camilo Castelo Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que não perdia ocasião de nos ridicularizar. De Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo porque o grande épico era uma “glória universal”. Certas palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias e retumbantes. Os Lusíadas? eram uma “epopéia imortal”, dizia ele. Pronuncia­va a palavra epopéia com a boca cheia, a acentuan­do muito o é. Uma obra de arte reconhecidamente boa era a seu ver uma epopéia, fosse qual fosse o gênero — O Cristo e a Adúltera, de Bernardelli? Uma epopéia nacional!!!

Começou a ler A Casa de Pensão em voz alta, em tom de recitativo, pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo, exclamando de vez em vez: — Bonito, seu Zuza! como se fosse ele próprio o autor do livro. Depois sacudindo o romance sobre uma cadeira, levantou-se espreguiçando-se com esta­linhos nas articulações, escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel marcava quatro e meia. Ó diabo! tinha-se descuidado. Estava convidado para jantar com o presidente às cinco pontualmente. Começou a vestir-se assobiando trechos de música seródia. De repente: “— E a normalista que não lhe tinha respondido a carta!” Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte do espelho, pondo a gravata: — “Era um rapaz chique, dava muita honra à Sra. D. Maria do Carmo escrevendo-lhe uma carta amorosa, pois não? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo não lhe dar atenção! Mas havia de cair por força. Era uma questão de tempo.”

Cinco horas. O Zuza enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumou-se, endireitou a gravata e — até logo — foi-se como um raio.