A Normalista/VIII

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Maria do Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder, muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja, rindo por dá cá aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos braços de João da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois de uma ausência. No seu olhar aveludado e submisso havia uma súplica irresistível.

— Cheguei um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? perguntou cosendo-se ao amanuense, a cabeça derreada para trás.

João olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda há pouco carrancudo.

Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem ânimo para dizer uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar fascina-va-o como um abismo. Ali estava ela a seus pés, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-lhe a barba, toda sua, como uma escrava.

— Sim, senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas de uma moça estar pas­seando...

Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.

Quase dez horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por aquela vez, o dito por não dito, mas por amor de Deus, não fizesse outra, senão, senão...

— Mas padrinho...

— Não tem padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, não me volte a estas horas...

E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado, imbecil como um velho impotente, o olhar aceso através dos óculos escuros, a calva reluzente como uma grande bola de bilhar.

— Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça da rapariga e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou...

— Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo. Mas não estou tonta, não, padrinhozinho... Olhe, foi só um copo.

— E quem to pagou?

— Quem pagou?... Ora, quem pagou...

— Sim, quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro...

— Quem pagou foi o Sr. José Pereira...

— Eu logo vi! Aposto em como o tal Sr. Zuza também entrou na festa.

Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com um pulo, plantou-lhe um beijo na testa.

João da Mata desequilibrou-se.

— Ora, ora, ora, esta menina!...

Não sabia o que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora e pagava-lhe com beijos as recriminações. Calar? Também não. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O verdadeiro era não falar mais no Zuza. E João da Mata rematou a conversa:

— Vá, minha filha, vá dormir, que você não está boa...

Maria beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, de um salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pe­sa­da­mente na rede, vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete.

Arre! Estava muito fatigada, precisava des­cansar.

E adormeceu imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca entreaberta.

Teve sonhos impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! que ia sozinha por um caminho deserto e interminável onde havia urzes e flores em profusão. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar, caminhando, caminhando sem olhar para trás.

De repente — Arre corno! ouviu a voz aguar­dentada do Romão, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miserável do negro. Era um Ro­mão colossal, grosso e musculoso como um Hércules, nu da cintura para cima, as espáduas largas e reluzentes de suor, calças arregaçadas até os joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um grande O, os braços levantados, segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundícias! — Arre corno! gania o negro no silêncio da noite clara, cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila de cães que ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplêndido...

Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou ao chão o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a, besuntando-a.

Que horror! Ela, mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis fugir, sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chão com força e... E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede, com um grande peso no coração, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a língua presa...

— Virgem Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!...

Suava em bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno. Só então reparou, muito admirada, que ainda estava com a mesma roupa com que fora ao Passeio Público. Riscou um fósforo com a mão trêmula, acendeu a velinha de carnaúba e começou a despir-se depressa.

Lá fora, na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma modinha conhecida, acompanhada de violão e flauta:

Não cho... res, querida Elvi... ra...

Maria sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor forte nas têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que bebera; sentia um mal-estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair gravemente doente.

Que seria, Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta esbranquiçada na língua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitório. Só tomara naquela noite por causa do Zuza, porque ouvira dizer que “era moda nas grandes cidades”, na Corte e no Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! noutra não caía. Se soubesse teria pedido cidra.

Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar...

Não, não, era melhor não incomodar a ninguém! aquilo havia de passar, se Deus o permitisse.

Tinha até se esquecido de rezar...

Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo abrindo o coração à humanidade, balbuciou uma oração, persignou-se, e, mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante.

O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então em diante dormir numa rede na sala de jantar. Uma figa! não estava mais para suportar o calor infernal da al­cova, e, além disto, viviam ultimamente, ele e D. Te­rezinha, arengando consecutivamente, como duas crianças invejosas, pela coisa mais insignificante. Ele, muito bilioso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D. Terezinha não se importava com as coisas, que não se fazia mais economia. — “Um gasto enorme de dinheiro! um desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e, afinal de contas, não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro...”

Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu “papa-angu de boceta”. Tinha muito para onde ir, não faltavam casas de gente séria no Ceará. Socasse o seu dinheiro onde quisesse...

Toda a vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos de pérfida satisfação aqueles torniquetes às vezes imorais, até do amanuense com a mulher. Era um divertimento.

— Deus os fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher de um barbeiro que morava ali perto, paredes-meias.

Quando João da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapés, berrava como um possesso, batia portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas, e a própria criada não escapava à sua cólera.

Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco se acostumou às impertinências ríspidas de “seu Joãozinho”.

— Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada, cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! a gente vê coisas! Hum, hum!...

E muito risona, muito tola com o seu ar idiota de animal dócil, lá se ia para a cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e copeira.

Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavrões de porta de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da boca desdentada do amanuense uma obscenidade!

— Jesus! exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as mãos nos ouvidos.

Ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rótula.

E a algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas a um tempo.

As duas criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava com aqueles espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.

“— Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo”, resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela com cara de quem está sempre com dor de barriga.

O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem sério e reformador de costumes: “— Uma gente sem-vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para ver-se longe de semelhante peste. Até era feio a Lídia ter amizade com aquela gente.”

E aconselhava a rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir à casa de João da Mata, porque não lhe ficava bem, a ela “rapariga de família”, em vésperas de se casar, ter relações com uma corja daquela.

Já não se jogava o víspora em casa do ama­nuense. As velhas coleções dormiam esquecidas no saquinho de baeta verde em cima do piano.

D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis cobertos de poei­ra e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico para dar ordem naquela casa. Estava cansada de agüentar desaforos “do corno” do Sr. João da Mata.

E tudo por quê? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora andava mostrando os dentes e mais alguma coisa ao padrinho, com partes de afilhada. Não, ela é que não servia de alcoviteira a ninguém, meu bem. Estava muito enganadinho. Se quisesse fazer mal à sonsa da Maria fosse fazer onde bem entendesse, mas ela, Teté, não servia de travesseiro, não, mas era o mesmo... Estimava muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.

Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene. Vinha-lhe agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de um homem, tanta retirante “moça” e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com quem? com quem, Sr. João da Mata? Com uma sujeita feiosa que só tinha carne nos quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que grandíssima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher de certa ordem, rica mesmo, bem-educada e boni­tona.

Depois que se mudara para a sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento inexplicável por D. Terezinha. Passava horas e horas estendido na rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado usurariamente, e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginação como um tesouro preciosíssimo, que ele receava fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da cidade. Estava ficando velho e era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha desfrutado muita “bichinha” famosa. Nesse tempo ele era comissário de socorros... Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da afilhada. Chegava o quê? Nem havia termo de comparação. Maria, além de ser uma rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha sobre as outras a vantagem de ser inteligente e educada.

Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos olhos do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha de família, branca, singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração, ah! nunca.

Maria punha-o doido com os seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginação criava planos fantásticos, inexeqüíveis, por meio dos quais ele pudesse iludir a afilhada, e, zás! tirar-lhe o lírio branco da virgindade. Não queria precipitar-se com risco de um escândalo comprometedor, isso não. Preferia insinuar-se pouco a pouco, devagar, no ânimo da pequena, sem a sobressaltar, fazendo-lhe todas as vontades, de modo que, na ocasião oportuna, no momento preciso ela se entregasse prontamente, sem resistência.

Com efeito, Maria agora, para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe cegamente, com a resignação indolente, fria duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia, pudera não! sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas...

— Está fazendo cócega, padrinho, murmurava rindo, com um riso sem expressão, que lhe vinha do fundo da alma de donzela.

— Sossega, tolinha, ralhava João.

E ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto, abandonada às carícias sensuais daquele homem repugnante que a perseguia como um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho...

Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda a força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que era só no mundo, porque já não tinha pai nem mãe, e podia ser muito desgraçada depois... Sim, era preciso paciência para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-la sob a sua proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse...

A própria Lídia já não a procurava como dantes, toda orgulhosa com o seu noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente era muito infeliz. Aí vinham-lhe outra vez as lágrimas e os soluços concentrados. Recolhia-se com os olhos cheios de água ao seu quarto, com uma tristeza infinita no coração e só achava conforto nas confidências amorosas do Zuza, que ela guardava como uma relíquia no fundo de uma caixinha perfumada de sândalo. Esquecia-se a lê-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu amor.

Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era descrita como num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o futuro bacharel desconfiara do modo frio com que o amanuense o recebia, e, sem dizer nada a ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés naquela casa que ele “honrara” ­du-rante quase um mês com a sua presença. Pílulas!

Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena tinha ordem para não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho a pé, sujeitando-se à crítica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido — não iria mais ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo.

Encontravam-se diariamente na Escola que o Zuza freqüentava agora com a pontualidade irrepreensível de um inglês. E, como não podiam conversar à vontade sem escandalizar os créditos do estabelecimento já um tanto abalados, trocavam cartinhas no intervalo das aulas.

Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho “desastre”. Um rapaz fino, com um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o Café Java até ao Palácio da Presidência comentava-se, discutia-se ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava desfrutando a rapariga para depois — fuisset! pôr-se ao fresco e nunca mais pisar o solo cea­rense. Outros, porém, eram de parecer que o acadêmico tinha boas intenções e até fazia bem levantar da miséria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo em companhia do ama­nuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do Zuza com a normalista porque, na sua opinião, a menina já “estava pronta”, isto é, o estudante já lhe tinha “plantado no bucho um Zuzinha”. E, assim, multiplicavam-se as opiniões, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao trabalho de desfazer boatos. — Que se fomentassem todos. Não tinha que dar satisfações a ninguém por seus atos.

Um belo domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os vendedores do pasquim atravessavam as ruas em disparada, esbaforidos, apregoando alto e bom som — o Namoro do Trilho de Ferro!

Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco, arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia de novembro.

O casarão do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e tradicional de velho edifício português, do tempo do Sr. D. João VI, com a sua fila de janelas, alinhadas à maneira de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio, parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um monumento arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço iluminado e azul a última nota das cornetas.

Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, pernas cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, deliciava-se a fumar tranqüilo o seu havana, mais o José Pereira, na larga sala de recepção do palácio.

De repente:

A Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O Estudante e a Normalista! Grande Escândalo!

Um menino passava gritando a todo o pulmão numa voz fina de adolescente, as notícias da folha domingueira.

Zuza, com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço, estremeceu na cadeira.

— Hein?

O vendedor de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça. Então o estudante fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direito à janela.

— Psiu! Psiu! Ó menino da Matraca!

— Eu?

— Sim, você mesmo!

Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se embaixo, na porta do palácio.

— Que está você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor pelas orelhas.

— Nada, seu doutô; é o Namoro do Trilho.

— Você ainda repete, seu grandíssimo corno!

E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos os exemplares da Matraca rasgando-os imediatamente.

O outro abriu a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça entre os braços.

— E puxe! continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope. Vá, vá, vá, e diga ao dono desta imundície que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein! Vá, vá, vá...

O pequeno não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela parede, muito triste, resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca, enquanto o Zuza explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que o receberam com uma explosão de risos.

O caso não era para rir, dizia ele formalizado, limpando os óculos com a ponta do lenço de seda. O caso não era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar a cara do redator da Matraca. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito que se deve ter à sociedade. Que essa! Não era nenhum filho da mãe que estivesse a servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que resolvia questões de dignidade pessoal — à bengala!

— Mas vem cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o tempo e o latim com semelhante gente...

— Eu já o aconselhei, interrompeu José Pereira. O desprezo é a arma dos fortes.

— Qual desprezo, homem! O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá resolvo as coisas positivamente a bengaladas.

— Quantas já deste no redator da Matraca? perguntou José Pereira para confundir o Zuza.

— Não dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe os queixos, sabe você?

O presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou, a propósito de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o Pedro II, e a conversa descambou para o terreno árido da política local.

— Que diz o papelucho? perguntou o fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos lustrosos.

— A mesma coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto de desprezo. Que você é um péssimo presidente, que você gosta de tomar champanha e, finalmente, que você “vai encaminhando as coisas públicas para um abismo”.

— Ora, suportem-se umas coisas destas! ­saltou o Zuza. Eis aí: é ou não para se dar o cavaco?

— Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez funcionários amigos da oposição.

Queres ver uma coisa?... Que dia é hoje?...

— Domingo...

— Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos que se dizem miúdos, com a data de hoje. Eis aí está como se resolvem questões desta ordem. Insultam-me, não é assim? injuriam-me, acham que sou mau, que não tenho juízo, que sou indiferente à sorte do Ceará... Pois bem, hoje mesmo muita gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não achas?

Ante a resolução pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo. Decididamente era um grande homem aquele!

— Mas olha que vais reduzir à miséria muitas famílias...

O presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas palavras do estudante e dirigiu-se para a secretaria com o passo firme de quem caminha para uma ação nobre com o seu belo porte de diplomata.

Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou, a pensar no vendedor da Matraca. Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples vendedor, coitado.

Enfiou pela rua da Assembléia macambúzio, com um ar indolente, chapéu derreado para trás, riscando o chão com a bengala, muito distraído.

“— Que diabo! A gente sempre faz asneiras...”

E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à entrada, um bocejo de velho preguiçoso.

Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o coronel Souza Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer falava em tirar passagem para o Recife onde já devia se achar a fim de concluir o curso.

Se lhe entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal senhora normalista, então, adeus, pensava o coronel; ia tudo águas abaixo. Seria talvez preciso improvisar um passeio à Europa, do contrário o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos diabos.

Ia falar ao Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizer-lhe com a franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo não podia continuar, que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse.

Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendo-se enérgico, revoltando-se contra a maledicência pública, provando-lhe com argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, até desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor.

— O certo é que os vapores passam, e tornam a passar e tu vais ficando, objetou-lhe um dia o coronel que se abstinha de falar na norma­lista.

— ... Mas, ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este ano.

— Qual tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando já devias estar lá.

Havia entre os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem apenas irmãos.

A esposa do coronel é que não se envolvia em questões.

Adorava o filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele, mas sempre muito boa, respeitava as resoluções do Zuza e evitava contrariá-lo na mais pequena coisa. Demais D. Sofia estimava até que o filho se demorasse o mais possível em sua companhia.

A formatura do Zuza era para ela uma questão secundária que havia de se resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco amor aos estudos, mas não revelava este seu pensamento a ninguém. Vivia constantemente incomodada, com fortes dores no útero provenientes de um parto infeliz em que fora preciso arrancar a criança a “forceps”.

Era uma senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma boa esposa: inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante, arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa. O Zuza tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única mulher sincera e boa no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mãe era satisfeito imediatamente, sem considerações, custasse o que custasse.

Ela por sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma dedicação, com o mesmo desprendimento, não contrariando o mais leve pensamento do rapaz.

— “É o que me obriga a vir ao Ceará, dizia ele, é minha velha, do contrário jamais eu tornaria a esta província insuportável.”

Mas entravam e saíam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio, preso irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte cadeia de ferro. — “Tinha tempo, tinha tempo...” repetia, decidido a passar o Natal em Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos provar a tradicional aluá. Os exames? ninguém se incomodasse, faria-os em março; era até melhor, porque assim podia estudar mais e “fazer figura”.

E os dias passavam e cada vez crescia mais no seu espírito o desejo veemente, a ambição romântica de possuir completamente aquela rapariga que tinha se apoderado de todo seu coração. Queria para esposa uma mulher nas condições de Maria do Carmo, órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade de escolher a mulher que melhor lhe quadrar.

— Mas olha que a rapariga é normalista... lembrava José Pereira maliciosamente.

Que importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para não acreditar que todas as normalistas do Ceará fossem indignas de um rapaz de certa ordem. O que queria é que a pequena soubesse corresponder à sua confiança.