A Normalista/XIV

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A ausência de Maria do Carmo não passou despercebida às rodas de calçada e aos fre­qüentadores do Café Java, cujo tema quotidiano — a política — não lhe satisfazia o prurido de entrar pela vida alheia a esmiuçar escândalos como quem procura agulha em palheiro.

Nas portas de botica, nos cafés, nas repartições públicas, no mercado, em toda parte comentava-se o desaparecimento da normalista, em tom misterioso e com risadinhas sublinhadas a princípio, depois abertamente, sem rebuços, com uma ponta de perfídia traindo a sisudez convencional da burguesia aristocrata.

Que tinha ido tomar ares a Maracanaú, afirmavam uns acentuando a ironia; outros — que andava adoentada de uma pneumonia “proveniente de arranjos na madre”; outros — que estava proibida de sair à rua e de chegar à janela por desconfianças do amanuense. Alguns, porém, como o José Pereira, comunicavam secretamente, pedindo toda a cautela, que a rapariga tinha sido raptada por um paraense e que se achava depositada no Cocó, em casa de uma tal Joaquina Xenxem, por sinal o Manoel Pombinha, tipógrafo, “os vira passar uma noite embuçados numa capa preta”, caminho do Outeiro.

Na Escola Normal rebentavam suspeitas à flor das discussões que preenchiam o intervalo das aulas.

Quem, a Maria do Carmo? Aquela mesma não era mais moça, não, meu bem... Ela sempre fora muito metida a aristocrata, por isto mesmo caíra nas mãos de um Zuza. Era bem feito! Uma grandíssima orgulhosa com carinha de santa. Aí estava a santidade...

Vinham à baila casos análogos de filhas-famí­lias que tinham ido para fora da cidade tomar ares e, no fim de contas, iam mas era “desembuchar” onde ninguém pudesse ver...

— Então, já apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse.

O Guedes ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas histórias e ninguém descobria a incógnita do problema.

Aproveitou uma ocasião em que João da Mata jogava a bisca no Zé Gato. O amanuense estava já um pouco atordoado pela cachaça.

— É agora! pensou o redator da Matraca, e formalizou-se, carregando o chapéu para a nuca.

— Então é verdade o que se diz por aí, ó João?

— Sobre os amores secretos do falecido presidente?

— Não, homem, não é essa a ordem do dia. Isso passou. A questão é outra.

— Desembucha!

— Pergunto se é verdade o que corre sobre...

— ... Sobre a Maria do Carmo? Uma calúnia, seu Guedes, uma calúnia! Você bem conhece este povo.

— Eu já tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha era incapaz de semelhante procedimento.

— Idem, idem, atalhou o Perneta em­ba­ra­lhando as cartas. Essa é a minha opinião.

— E que fosse verdade, continuou João da Mata partindo o baralho, e que fosse verdade, não era da conta de ninguém!

— Que dúvida! confirmou o Guedes.

— Mando copas, rosnou a amanuense.

E o jogo continuou sem que o Guedes soubesse a verdade.

Mas, ao retirarem-se cerca de meia-noite, interpelou novamente o amanuense na esquina, à luz de um lampião. João da Mata cambaleava, equilibrando-se, a praguejar contra o calçamento das ruas e contra a Câmara Municipal. A rua do Trilho perdia-se na escuridão, silenciosa como um subterrâneo.

O Guedes tinha tomado pouco nessa noite e fumava o seu cigarro com um grande ar de superio­ridade, pisando forte, o gesto largo e o paletó aberto num abandono frouxo de boêmio.

— Cuidado, não vá cair, avisava com as mãos nos ombros do outro.

— Qual cair nada, homem! Pensas tu que estou bêbado, hein? Estás muito enganado! O diabo dos óculos escuros é que não me deixam ver bem...

— Por aqui, por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um cigarrinho fino...

Pararam. Um polícia passou do outro lado da rua, sonolento e lúgubre.

Então o redator da Matraca abraçando o amigo pelo pescoço, depois de lhe ter dado o lume:

— Tu não me quiseste ser franco ainda agora na presença do Perneta, mas nós somos amigos... tu sabes... Aonde diabo meteste tu a rapariga?

João cuspinhou para o lado.

— Hein?

— A Maria do Carmo, onde anda ela?

— Ah! seu marreco, você quer saber onde está a rapariga, hein? Pois não lhe digo, não...

— Fala sério, homem. Dizem que está no Cocó, que teve um filho?... Juro-te como esta boca não se abrirá... Sentemo-nos aqui um pouquinho, que ainda não deu meia-noite.

Sentaram-se à beira da calçada, debaixo do gás, e o amanuense, encostando-se à coluna do lampião, o chapéu, o inseparável chile enterrado na cabeça, foi dizendo à meia voz.

— A coisa não é como se diz, seu Guedes, a verdade é esta, que eu lhe confio, porque sei que você é meu amigo: a menina está no Cocó, mas ainda não teve a criança...

— Ah!

— Sim, quero dizer, você bem sabe o que eu quero dizer...

O Guedes era todo ouvidos.

Luziam-lhe os bugalhos no fundo das órbitas, parados, imóveis, caindo sobre o amanuense com a fixidez de clarabóias de vidro. Sentia um prazer especial, uma comoçãozinha esquisita, um extraordinário bem-estar ao ouvir a história, a verdadeira história do escândalo, narrada por João da Mata, pela própria boca do padrinho da rapariga, gente de casa, testemunha ocular.

Encolhia-se todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do amanuense.

— E o pai?

— Que pai? O pai morreu no Pará...

— Não, homem, o pai da criança...

— Sim... o pai da criança, o Zuza? Pois não se foi embora para o Recife? Aquilo é um infame, um biltre.... Eu cá previa tudo quando proibi formalmente que a pequena lhe mostrasse o nariz, logo a princípio, mas que querem? encontravam-se na Escola Normal, no Passeio Público, e, afinal, foi o que resultou...

Soaram doze badaladas graves e dormentes na Sé. João contou uma a uma.

— Meia-noite, seu compadre, vou-me embora, adeus. Perdi hoje tanto como dez pintos.

E separaram-se friamente, como dois desconhecidos.

Perto de casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro — era um burro, o pobre animal babujava a rama da coxia, solitário e mudo.



Uma vez senhor do segredo, o Guedes não se conteve, disse-o ao ouvido do Perneta e com pouco ninguém ignorava na cidade “que a normalista do Trilho fora desembuchar, ao Cocó, um filho do Zuza”.

— Do Zuza!? exclamou o José Pereira ao saber a novidade na redação da Província, pela ­manhã.

— Sim, do Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atrás da orelha. É o que diz o público, Vox populi...

— E esta!

José Pereira arrepanhou as abas da sobre­casaca, e, passeando o olhar sobre a banca de trabalho, onde destacavam dois grandes dicionários de Aulete, sentou-se vagarosamente, voltando para o poeta.

— Admira-se você, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda a gente previa!...

O outro recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipógrafos...

E o Castrinho, à meia voz, estrangulado por uns colarinhos extraordinariamente altos:

— Qual! O fato está no domínio público, não há por aí quem não o saiba. Dizem que o velho Souza Nunes só falta perder a cabeça.

Em todo caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo, se possível fosse, uma vez que se tratava da reputação do Zuza...

Meninos de bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro lado do tabique que dividia a sala da redação e onde se viam empi­lhamentos de jornais sobre uma velha mesa ­gasta.

Daí a pouco entrou o Elesbão, outro redator, um sujeito lúgubre, muito pálido, faces encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi perguntando, numa voz sumida e lenta, de que se tratava.

O Castrinho disse, impertigando-se na cadeira, que se tratava “dos brios da sociedade cea­rense”. O outro arregalou os olhos com ar de espanto. — Como assim? E explicou: Tinha estado fora, na Guaíuba, a leites, não sabia as novi­dades.

— Um fato muito natural, disse José Pereira, nada mais que a reprodução de fatos velhos... Não valia a pena tocar na ferida...

Mas o Elesbão estranhou que “os colegas” tivessem segredos para ele. E depois de saber “o mistério”:

— Magnífico assunto para folhetim realista, hein?

Escrevia folhetins realistas para o rodapé da Província e trabalhava num livro de fôlego, os Mistérios de Arronches, com que, dizia, pretendia fundar uma escola “mais consentânea com o estado atual da ciência”.

A sua opinião sobre o novo escândalo que preocupava agora a população cearense era que “nós ainda não tínhamos compreendido o importante papel da mulher na civilização”.

— A educação feminina, acrescentou com cansaços na voz, a educação feminina é um mito ainda não compreendido pelos corifeus da moderna pedagogia. Queríamos introduzir no Ceará os dissolventes costumes parisienses, a forciori, mas não eram essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e essencialmente crédulo. Não admitia a teocracia tal como aceitavam os padres — “essa corja de especuladores” — mas era preciso respeitar as crenças populares, o verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia, sem preconceitos.

De quando em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e pigarreada; levava a mão ao peito e expectorava. — “Diabo de catarro não o deixava em paz!”

E, continuando:

— O que é a Escola Normal, não me dirão? Uma escola sem mestres, um estabelecimento anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a ler romances e a maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu...

José Pereira contestou, lembrando o Berredo, “uma ilustração invejável”, o padre Lima, “um excelente educador em cujas aulas as raparigas aprendiam ao mesmo tempo a ciência e a religião”.

— Mas não têm método, não fazem caso daquilo, vão ali por honra da firma, por amor aos cobres, rebateu o Elesbão, forcejando por falar alto.

Aquilo é uma sinecura, não temos educadores, é o que é.

— Você deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido como um pedagogista de primo cartello! advertiu o Castrinho, que se conservara calado.

— Não ofendo a ninguém, ao contrário, folgo em reconhecer nele um homem estudioso e bem-intencionado, mas isto não basta, meu caro...

Novo acesso de tosse desta vez mais prolongado.

— ...É preciso orientação e muito bom senso, isto é, justamente o que falta aos nossos corpos docentes...

— Tudo isso é inútil, Elesbão, tudo isso é completamente inútil quando uma mulher tende fatalmente para um homem. Foi o que se deu com a Maria do Carmo...

— É verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem que é inteligente e bem-educada.

— E além disto, acrescentou José Pereira, uma rapariga até morigerada...

— Não creio, duvidou o Elesbão batendo com o pé, curvado, já com uma poça de cuspo ao lado da cadeira, no chão. O amor tem suas exigências incontestavelmente, mas, quando a mulher é bem-educada e tem noções exatas da vida, dificilmente se entregará a qualquer mariola que se lhe ­chegue.

E sentenciosamente:

— Todo fenômeno é conseqüência de uma causa. Não há efeito sem causa. No caso vertente a causa é a falta de educação, a falta absoluta de quem saiba dirigir a mocidade feminina. A nossa educação doméstica é detestável, os nossos costumes são de um povo analfabeto.

Um tipógrafo aproximou-se e pediu licença ao Sr. José Pereira para perguntar uma palavra.

— O que é?

O rapaz mostrou o original. — “Está aqui”, disse apontando com o dedo sujo de tinta.

Crápula, disse o José Pereira.

O tipógrafo foi repetindo — crápula, crápula...

— Que é isso? inquiriu Elesbão curioso.

Era um artigo contra o Pedro II, uma formidável descompostura a um dos redatores da folha oposicionista.

Entraram a falar do novo presidente da província.



A notícia do escândalo chegou até ao Benfica, à casa do Loureiro. A Lídia ficou estupefata.

— A Maria, hein?! Tão calada, tão sonsa...

E repetia:

— Este mundo, este mundo!...

Ao mesmo tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tão moça ainda, coitada, tão boazinha...

— São coisas, são coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei com aquela gente. Uma súcia de doidos, a começar pelo tal Sr. João da Mata, um tipo que anda caindo nas ruas bêbado como uma cabra.

— Que é isso, Loureiro! ralhava a Campelinho empinada, carregando os seus oito meses de prenhez.

Pensou em escrever à Maria lamentando o deplorável acontecimento, mas não sabia ao certo onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na Aldeota, no Cocó... Se fosse possível, até iria, ela mesma, dar um abraço na sua amiga de escola, consolá-la. Imaginava-a muito triste, cortada de desgostos, num abandono pungente, em casa de alguma mulher à-toa, sem ter quem lhe aparasse as lágrimas...

Pobre Maria! É assim — uns tão felizes e tão maus, outros ao contrário, bons e infelizes...

E Lídia soltava uns suspiros vagos, trans­passados de pena ao lembrar-se da sua velha companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial à sociedade!

— Este mundo, este mundo!...

Entretanto, corria-lhe a vida deliciosamente, não lhe faltava coisíssima alguma, o Loureiro a estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha relações com as principais famílias da capital, ia ao teatro e freqüentava o Clube Iracema; gozava!

Se pudesse repartir a sua felicidade com a Maria, coitadinha...

Ultimamente andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho. Até já havia escolhido um nome para ele, para o pequeno — chamar-se-ia Julieta ou Romeu. O Loureiro tinha-lhe dito que Romeu era nome de gato, mas ela teimava em batizar o filho com esse nome, se fosse “menino”. Os padrinhos também já estavam designados — o comendador Carreira e a esposa.

Por sua vez a mulher do juiz municipal correu logo à casa de João da Mata numa ânsia de saber como as coisas tinham se passado. Era da escola de S. Tomé — ver para crer. Vestiu-se às pressas, atabalhoadamente, e voou para o Trilho de Ferro, como uma seta, atirando-se nos braços de D. Terezinha, esfalfada, sem fôlego, o rosto quente do mormaço.

A mulher do amanuense saudou-a com o seu invariável — salvou-se uma alma! proferido entre beijos.

Sem esperar oportunidade, D. Amélia foi direito ao móvel da sua inesperada visita. — “Então era mesmo certo o que se dizia na rua?”

— De quê?

— Da Maria...

— Se era? Tão certo como dois com dois são quatro. Jurava sobre os Santos Evangelhos.

O demônio metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que, de certo tempo àquela parte, nem fazia gosto a gente viver.

A Amélia não fazia idéia — uma vergonha! cria­tura, uma vergonha! Ela, Terezinha, estava cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer saía à rua para não ser olhada com maus olhos. Haviam de pensar que ela era outra...

— E onde está a Maria?

— Sei lá, menina, sei lá... No Cocó, na Aldeota, no inferno. Tomara que aquela peste não me entre mais em casa.

— E tu não viste logo se ela estava grávida?

— Vi lá o quê! Andava aqui toda espremida com um arzinho de mosca morta, metida no quarto que nem uma freira. Uma sonsa, Amélia, uma sonsa é o que ela é.

— O tal do Sr. Zuza, hein?!

— Qual Zuza, mulher, elas é que são as culpadas, porque não se dão ao respeito, não têm ver­gonha.

— E o que diz a isso o Sr. Joãozinho? Furioso, hein?

— É o que tu pensas, indiferente como se não fosse com gente dele...

E o diálogo continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse à amiga as suas suspeitas acerca de João da Mata e Maria do Carmo.

Amélia falou sobre o José Pereira, queixando-se de que ele há muitos dias não aparecia em sua casa, “todo embebido com a outra, com a Lídia”. O redator da Província não tirava os pés do Benfica, e, às vezes, voltava depois das nove, no último bonde.

A Teté não achava feio isso, um homem ir diariamente, às mesmas horas, à casa duma senhora casada! Era feíssimo! Já andavam até dizendo coisas... E então o José Pereira que não era tolo e tinha fama...

— Queira Deus que a tal Sra. D. Lídia não vá se arrepender... É verdade, a mãe, a viúva Campelo, como vai?

— Naquilo mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malícia, piscando um olho.

Riram baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda àquela hora entregue ao seu delicioso farniente de mulher solteira que dispõe do tempo a seu bel-prazer e da algibeira de um capitalista generoso.

Toda a cidade vivia agora do escândalo, dando-lhe vulto, criando novelas de romance, esmiuçando pequeninos acidentes domésticos, com um olho na política e outro na normalista, à espera de chuvas e de novos acontecimentos sensacionais.

João da Mata não se inquietava muito, de resto, e continuava a sua vida inalterável de empregado subalterno, sem prestar ouvidos à maledicência, encantonado no seu absoluto desprezo à sociedade e à opinião pública, cada vez mais submisso à mulher que o cobria de injúrias e labéus.

— Sedutor de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente. Peste! Coisa-ruim! Sem-vergonha!

E ele punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto, estendido na rede, mudo, impotente como um eunuco.

Uma noite, pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com D. Terezinha, na alcova. Há meses não se chegava a mulher alguma, cheio de aborrecimento pelo outro sexo, frio, mole, inacessível quase às carícias da fêmea. Agora, porém, renascia-lhe a virilidade, sentia uma forte vontade indomável e impetuosa, de amar fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que não fosse de todo mundo e confundir o seu sangue com o dela num demorado e in­descritível espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um condutor elétrico, uma formidável ereção a distender-lhe os nervos, esca­bujando na rede em espreguiçamentos lúbricos, vergando, como um vencido, ao poder irresistível da animalidade humana. O sangue pulava-lhe nas artérias numa hipernésia que lhe atordoava os sentidos, que lhe tirava a respiração, impelindo-o para a mulher.

Pensou na Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que não se lavava, um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites de um homem. Não havia jeito senão tentar a Teté. E lá se foi, sutilmente, pé ante pé, corredor afora, direito à alcova da infeliz senhora.

A alcova tinha uma porta para o corredor. João olhou pelo buraco da fechadura, mas não pôde ver senão o espelho do velho toucador, defronte, inclinado para a frente, refletindo um vaso noturno, e roupas espalhadas no chão.

Bateu de leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando no escuro, sem ruído. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta: empurrou de leve enfiando a cabeça para dentro.

— Teté! chamou numa voz quase imperce­p­tível.

Silêncio profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. João foi entrando devagar, equilibrando-se no bico dos pés.

— Teté! repetiu à meia voz.

Ninguém respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas — oh! — o leito matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de mulher.

João ficou boquiaberto, muito admirado. “— Que significava aquilo?” Os lençóis revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que não teve tempo a perder. Ante a clarividência assombrosa da realidade, o amanuense rodou sobre os calcanhares, e, resignado como um boi, sem proferir palavra, murcho, sentiu desaparecer-lhe subitamente o forte desejo que ainda há pouco o espicaçava como uma urtiga. Retirou-se macam­búzio a pensar nos caprichos da sorte.