A alma do outro mundo/VIII

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Atasca era situada à beira da estrada e pertencia a uma Maricas Guandu, mulher de ventas arrebitadas e pulso vigoroso.

São talhadas pelo mesmo molde as vendolas, tendas e em geral as quitandas dos pobres lugarejos do norte; uma mesa de pinho trôpega e roída serve de balcão com os pés fisgados na terra esburacada.

Na parede sem cal, de cujas ripas entrelaçadas o barro cal aos bocados, e por onde entram com idêntica familiaridade a chuva, o vento e os raios do sol, estendem-se dois a três registros de santos, quase sempre Santo Antônio e o crucificado, ornados de folhas de mangueira, bogarins e rosas bravas. São as égides protetoras da casa, e, na inabalável opinião dos devotos, o infalível chamariz da freguesia.

A tasca da Maricas Guandu corria parelhas com as suas companheiras dos Douros, Prazeres, Boa-viagem e as demais povoações da vizinhança.

A tendeira era mulher da pele do diabo; atrevida, corajosa, de sobrolho carregado e fala grossa. Dizia o Chico valente que a Guandu já havia cumprido sentença na ilha de Fernando, em virtude de uns arranhões profundos, que em má hora de rixa ela esculpira no pescoço de um pobre imbecil com quem vivia.

O certo é que todos a respeitavam na povoação e fora dela.

Além disso constava que a mulher tinha dinheiro guardado, segundo uns, nos bancos do Recife; segundo outros, na cacimba do quintal.

Fosse por que fosse, para as altas questões da terra servia de campo de peleja a taberna da Maricas Guandu.

Uma semana depois do samba promovido pela rara ventura de Pedro Cambraia, soavam lentamente as badaladas do meio-dia em S. Gonçalo, e o Chico valente, o Brás, o próprio Cambraia e outros da povoação estavam ainda de conferência na tasca da Maricas Guandu.

Alguma poderosíssima causa os arredara do trabalho até essa hora, e um certo ar de mistério envolvia as suas palavras, que eram geralmente trocadas em voz baixa e surda.

A tendeira, com os cotovelos escuros cravados na mesa cheia de talhadas de melancia, cajus e jerimuns, entre os quais erguia-se o imponente vulto de uma velha botija de aguardente destapada, seguia a conversação de olhos fechados e em uma espécie de indiferentismo brutal e sonolento.

As moscas zumbiam em cardumes em redor das frutas e do aroma da botija. Os matutas sentados em terra, com as pernas nuas apostas ao sol e o cigarro no canto da orelha, fizeram pausa por um momento.

Soava meio-dia.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! — rosnou a tendeira sem mudar de posição e benzendo-se, depois de bocejar, como o ruído de uma chaminé de vapor.

— Para sempre! — repetiram os assistentes, descobrindo-se.

O sol abrasava; os pássaros emudeciam, abrigados do calor nas largas folhas do arvoredo que nem um hálito de brisa bafejava sequer.

As galinhas mariscavam defronte da venda, espojando-se na poeira ardente da estrada deserta.

Tomou a palavra o Pedro Cambraia:

— Pois é como se uma coisa feita tivesse-me entrado no Couro! Safa! Que se não fosse o que eu cá sei, já hoje não dormia no Jordão o filho de minha mãe!

— Vocês são todos uns mofinos! — disse a taverneira abrindo os olhos vermelhos como uma fornalha.

— Sempre lhe queria ver, sa Maricas — acudiu o Chico valente — , metida nesses assados para então falar!

— Ora, ora!

— Ora, ora? Pois, minha dona, aqui está o Cambraia que é homem direito e que viu com os seus próprios olhos que a terra há de comer!

— Mas o que viram vocês? — replicou a Maricas Guandu impaciente. — Conta outra vez a história, Cambraia!

— Ainda bem não falei, já me estou arrepiando como um frango molhado! — observou Pedro Cambraia, revirando os olhos a tremer.

A taberneira espreguiçou-se resmungando, e veio munida de um banco escalavrado tomar a presidência da assembléia.

Pedro Cambraia não se fez rogar.

— De anteontem para ontem — disse ele -, eu tinha de estar nos Apipucos para um negócio grande com o Zé Pinto, a respeito de umas trapalhadas que não vêm ao caso. Eu cá, só no dia da minha morte, é que hei de andar de carro, se não for de rede, que é mais infalive. Não preguei olho toda a noite; só pensando, só pensando, na viage. Bateu em S. Gonçalo meia-noite, e eu disse comigo: Ora, você não tem sono, so Pedro. A noite está fresquinha como uma garapa, e há tantas estrelas no céu como lojas de fazendas no Recife.

O Chico valente gostou da comparação e enfiou duas gargalhadas sonoras.

A Maricas Guandu fez um gesto de impaciência e atiçou pelo olhar sombrio a loquacidade do narrador.

— Enfiei as calças — prosseguiu o Cambraia -, o casaco, peguei no chapéu e... pernas para que te quero! Pus-me no andar da rua. Fazia um silêncio de se ouvir voar uma muriçoca! O diabo de uma coruja berrou mesmo no meu ouvido e foi voando para a banda do mato como um mau agouro! Tibi! Se eu tivesse, depois disso, entrado logo para casa e esperado a madrugadinha, não havia de passar pelo susto que rapei... Mas, enfim, quando Nosso Senhor acha que...

— Pior! Pior! Contas a coisa, ou levas a peraltear aí como um papagaio?

— Lá vai, senhora, lá vai, que Deus é grande! Assim que a danada da coruja deu o grito, eu fiquei meio cá, meio lá. Mas um home é um home.

— E a mulher é um bicho! interrompeu um rapazola, o Brás, saudando a idéia com duas monstruosas risadas.

A taberneira mostrou o punho ao pequeno, da mesma forma por que o cão de fila apresenta a cabeluda pata.

— Cala a boca, Brás! — ordenou Chico valente.

— Comecei a andar — prosseguiu Pedro Cambraia — apertando o passo para chegar mais cedo. Assim como assim, eu, já que saí de casa, quis me presentar so Recife a boa hora, para bater para os Apipucos. Estava escuro tudo que era mesmo de se quebrar o nariz sem trabalho! Não havia lua, e as estrelas alumiavam só a casa do Senhor, sem se importar com o que havia cá embaixo. Quando eu ia chegando ao pé do desvio pegado com a casa do José Paz...

A fulva pupila da Maricas Guandu faiscou de curiosidade e de cobiça.

— Que é que viste, que é que viste?

— Olhe lá, vosmicê é capaz de dizer que eu ando doido, e então é melhor parar aqui.

— Conta, Cambraia!

— Conta!

A taverneira impôs com um gesto silêncio, e enchendo até às bordas uma canequinha de aguardente, passou-a ao narrador.

— Molha primeiro a goela, e conta direito!

Pedro Cambraia saboreou gota a gota o néctar delicioso, e depois de ensaiar uma orquestra de pigarros em todos os tons:

— Meus olhos no escuro são tal qual como os olhos do gato. Foi por isso que eu pensei que tudo era uma mentira cá da cachola, quando a alma apareceu.

— A alma?!

A alma do outro mundo, sim senhor! Estaquei mesmo defronte da casa do Paz, que estava toda fechada e sem luz. Pudera! Meia-noite passada! Começaram a me dobrar as pernas; o frio coçou-me as costas e uma porção de candeias fuzilou na minha vista. Quis dar um passo para trás; qual fortuna! Os pés estavam pregados no chão que nem verruma em prancha nova!

— Anda sempre! Anda! — disse a Maricas Guandu, aproximando o banco, ébria de curiosidade.

Os beiços alongavam-se-lhe famintos como se estivessem defronte de um manjar apetitoso e abundante.

Os matutos bebiam sem perderem uma sílaba — perdão! Uma silabada — as palavras de Pedro Cambraia

— Eu não podia nem andar para a frente nem andar para trás.

— E a alma vinha sobre ti?

— Qual carapuças! Aí é que está o busílis! A alma corria diante de mim como paca que foge de chumbo!

— E está!

— Era uma figura branca, com umas mangas caídas até o chão e a caveira reluzindo que nem fogo de queimada! E ia, ia, que parecia nebrina de manhã de frio, quando começa a soprar vento, e o sol não tarda no céu. A alma parou e como que olhava para todos os lados. Imaginou lá sua vida à vontade, cismou bem, pensou, repensou, e depois desapareceu pelo mato adentro!

— Credo! Cruz! Nossa Senhora!

— Quando ela sumiu-se eu caí mesmo em cheio a fio comprido na estrada.

— E depois?

— Já encomendava-me a Nossa Senhora da Boa Viagem, que o medo era muito, quando me pareceu ouvir bulha na casa do José Paz, uma bulha assim de janela aberta. Oh! so José Paz — gritei eu reunindo todas as forças de minhas veias. Outra bulha de janela e mais nada. Cinco minutos depois...

O atencioso grupo apinhou-se em redor do orador. A Maricas Guandu tremia toda da cabeça aos tamancos.

— Cinco minutos depois, sai um cavalo e o diabo em cima dele, do mato adentro, embarafusta pela estrada como vento norte e voava por ali fora que nem a vista podia o acompanhar! Dismalhei de uma vez! Quando refrescou a manhã acordei, me levantei e o mais o Chico valente sabe...

— Aí anda coisa de patifaria — observou filosoficamente a tendeira, engolindo um trago de cana, para desfazer os restos do terror que lhe causara a história.

— Não fale assim, sa Maricas! — acudiu o Brás. — Então vosmicê não acredita em almas do outro mundo?

— Eu cá, por mim — interveio o Chico valente -, tenho medo de almas como do diabo. Inda me não saiu da cabeça o caso da Boa-Vista no Recife. Até a polícia andou atrapalhada.

— Mas aquilo era ou não era namoro?

— Às vezes é, outras vezes não é, sa Maricas — aventurou Pedro Cambraia. — O vigário diz que a alma da gente não morre, portanto pode voltar quando quiser para ver os outros que estão vivos.

— Se é a primeira vez que acontece uma coisa destas no Jordão!

Uma vez sempre é a primeira, minha senhora. Olhe o Califórnia da Gameleira, que ficou gira depois que viu a alma do outro?

— O que vocês devem fazer é esperar o bicho e dar-lhe uma boa surra!

— Deus me defenda! Santa Bárbara e São Jerônimo.

— Não se me dava a mim de ir, e sou uma mulher.

— Mas uma mulher de pulso! — observou o Brás, com certa ironia maliciosa.

— Para que não tratam uma súcia boa de gente decidida?

— Para tudo morrer de medo?

— Cala a boca, toleirão! Estou quase a jurar em como a alma do outro mundo é gente como vocês! Quem sabe, mesmo, algum conhecido!

— Quê, senhora! Aquilo é alguma missa que o defunto está pedindo!

— E se não fosse defunto?

— Sempre eu queria ver!

— Pois falem com o José Paz; mandem chamar o Teto, o Leopoldo, aquele furioso do Tibúrcio, que não é de graças, e façam uma tocaia!

— Só se for assim!

— Eu também entro no rancho! — exclamou a Maricas Guandu empunhando um cabo de vassoura.

— Está dito! — continuou Pedro Cambraia resolutamente. Vou limpar a espingarda!

— Nada de mortes!

— Uma cargazinha de sal basta se a alma é deste mundo. Se for do outro mesmo, Nossa Senhora tenha compaixão de nós!

— Deus é grande, Pedro Cambraia.

José Paz, uma hora depois, entrou na tasca da Maricas Guandu e engoliu uma dose de aguardente.

Já não havia ninguém na taverna senão o velho cão que ressonava ao sol, e a dona da casa grunhindo com a cabeça mergulhada nos braços colossais.

— Eh lá, sa Maricas! Tome os dois vinténs! — exclamou o pai de Rosinha despertando a mulher.

Mancas Guandu abriu a custo os pesados olhos e, à vista do recém-chegado, despertou de todo.

— Por que não veio mais cedo so José? Houve aqui o diabo!

— O diabo?

— Sim, contou-se coisas de fazer perder o sono ao tinhoso!

— Ora vamos!

— É o que lhe digo. Ainda não conversou com o Cambraia?

— Ah! É disso que se trata? O Cambraia está gira!

— Não diga tal! Ele jura que é verdade tudo, e que foi perto de sua casa!

José Faz ergueu os ombros com um sinal de visível enfado.

— O Cambraia que vá pentear macacos. Até inventou que eu tinha aberto uma janela; a que horas! Meia-noite! quando tudo roncava em casa.

— Não perguntou nada a sua filha?

— Pois eu quero lá meter medo à menina! Ora muito boas tardes, sa Maricas. Diga ao Pedro que vá trabalhar em vez de dar à língua!

E José Paz saiu da tasca sem reparar em uma careta que franziu a cara da hedionda taverneira.

Rosinha ficara mais pálida desde a noite da festa. Em compensação, porém, ria-se, brincava, conversava com o pai e com a velha, que a acompanhava às vezes; mas o seu sorriso era desses que só voam nos lábios e que não chegam ao coração!

José Paz pulava de satisfeito com a metamorfose operada na filha. Excelente e estúpido homem! Mal sabia ele que a menina ia definhando aos poucos e que aquela alegria não era senão o lampejo mentiroso do horizonte, quando se acumulam as borrascas e crescem a desolação e a morte iminentes! Na noite do dia em que se travou o animado diálogo na tasca de Maricas Guandu, Rosinha, só, no seu quarto, escrevia à luz vacilante de um enfumaçado lampião.

Através das frestas do teto e da janela penetravam até a cama da menina os tímidos e vaporosos clarões das estrelas. Estava calma a noite, e apenas o som de uma viola afastada turbava o religioso silêncio da natureza.

Rosinha escrevia à milionária. “... Devo-lhe tudo, minha madrinha”, dizia a última parte da carta, “tudo; a minha felicidade no passado, as minhas alegrias do presente e o que Deus na sua infinita misericórdia quiser dar-me no futuro.

Venha buscar-me pelo amor de sua mãe, pelas dores de Maria Santíssima. Alguma coisa me diz que está batendo a hora da minha desgraça... Não sei o que é, minha madrinha, mas tenho medo, medo!
Quero confessar-lhe o que se passa no meu coração; venha para eu abrir-lhe minha alma toda e pedir-lhe que me ampare.
O que é a felicidade sem o descanso, meu Deus? E eu não tenho mais descanso, não tenho: estou perdida.
A minha própria sombra faz-me terror agora. Parece que em redor de mim há uma porção de fantasmas que me acusam...
Meu pai ri-se feliz vendo-me contente. Contente! Ah! minha madrinha! Digo-lhe isto e as lágrimas saltam duas a duas de meus olhos!
Venha, venha, minha segunda mãe, venha socorrer a sua infeliz Rosinha. Não repare na letra: toda eu tremo como se fosse daqui a pouco morrer... Morrer! Às vezes a morte é melhor do que o desespero!
Vou rezar e vou dormir. São 11 horas e meia da noite. Tenho febre e sinto um frio de bater os dentes.
Adeus, minha madrinha. Deite a bênção em sua afilhada.

Rosinha

Ela terminou a carta ofegante, trêmula, assustada; dobrou-a a custo, pôs-lhe o sobrescrito e escondeu-a debaixo do travesseiro.

Seus olhos cercados de um círculo sombrio vagaram pelo quarto e foram até a janela donde recuaram transidos de espanto. Ela dirigiu-se pé ante pé á porta do quarto e colocou o ouvido à tábua.

Fazia um silêncio profundo no interior da casa.

Em seguida a menina veio de novo à mesa, rasgou com mão convulsa um pedaço de papel, e traçou estas palavras, mais aterrorizada, mais pálida do que sempre:

“Vá; fuja, se me tem um pouco de amor. Não tente a vingança de Deus. Pela memória de seu pai, e por mim, fuja, fuja, não se lembre mais, não pense, não desgrace quem pela última vez lhe escreve e invoca a sua generosidade! Se não me atender, mato-me!”

E bruscamente correu à janela, abriu-a, e dobrando o bilhete entre os dedos úmidos, colocou-o no peitoril, fechando a janela no mesmo instante.

Havia uma tranqüilidade inviolável no espaço.

A viola calara-se, e no campanário afastado vibrou a primeira pancada da meia-noite.

Rosinha encostou-se à janela, fechada por dentro, e, estendendo os braços angustiados, apoiou-se à parede para não cair. Estremecia-lhe violentamente o corpo; seus olhos escureciam-se, e um suor gelado percorria-lhe a testa abrasada.

Pouco adiante da casa de José Paz saíam de um grupo escondido entre as árvores palavras em surdina e constantes murmúrios. Eram os espiões capitaneados por Pedro Cambraia, à espera do fantasma que tanto horror causara entre os sabedores da aventura.

— Vocês vão ver — dizia o Tibúrcio, o valentão — que tudo foram maluquices da cabeça do Cambraia!

O homem estava com sono e viu almas por toda parte! A Maricas Guandu estava também na troça, embrulhada em uma saia de sarja, a título de capote.

— Não façam barulho, filhos de Deus! — observou ela. Está batendo meia-noite em S. Gonçalo.

Calaram-se todos e dez olhos curiosos seguiram a mesma direção pela estrada acima.

Nesse momento fechava Rosinha a janela, depois de deixar o bilhete, e encostava-se à parede, vacilante. Os latidos de um cão feriram-lhe os ouvidos, e, como se se arrependesse do que havia feito, tentou por um esforço extremo abrir de novo a janela.

Os espiões conchegaram-se uns aos outros apontando para um ponto ao longe.

Pedro Cambraia benzeu-se e o Tibúrcio esfregou as mãos para chamar coragem. A Maricas Guandu sentiu as pernas dançarem-lhe de medo e fechou espavorida os olhos.

De feito, uma sombra alva, uma grande túnica e dois braços estendidos para o céu desciam da mata silenciosa, e vinha aquela figura sinistra andando pela estrada, através da pálida luz das estrelas, devagar e sem ruído.

Os espiões tiritavam como condenados ao pé da forca. O Tibúrcio, que era o mais corajoso de todos, pedia ao céu que lhe fizesse nascer nas costas e nos pés dois pares de asas velozes.

Foi justamente nesse instante que Rosinha tentou abrir de novo a janela, e depois de lutar com a aflição que a sufocava, e com as névoas que lhe obscureciam a vista, estendeu agonizante os braços hirtos, e caiu sem sentidos no meio do quarto.