A boneca (Contos para a infancia)

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Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma historia — a historia d'uma boneca!

Não ha muitos annos, mas ainda não era a cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infancia folga por entre macissos de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe ennegreça o espirito a vista dos dois monumentos, que a meu ver symbolisam as duas mais horriveis calamidades, que podem aniquillar um homem — o hospital e a cadeia! — ainda não ha muitos annos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da feira, divertindo-me a meu modo.

Cançado das innumeras figuras, que tinha visto passar por aquella especie de lanterna magica, dispunha-me a dar por findo o espectaculo, quando novos personagens me chamaram a attenção.

Eram os meus visinhos ricos.

Aqui é preciso uma rapida explicação.

Das famílias da minha visinhança, só conheço tres.

Qual d'estas tres familias será mais feliz?...

Pelo que tenho notado, não tem que invejar umas ás outras.

São todas felizes; cada qual a seu modo.

Vi, pois, chegar os meus visinhos ricos.

Parou o carro, o creado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu visinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depol-a no chão, e offerecendo, em seguida, a mão á esposa, para a ajudar a apeiar, dirigiu-se com ella e com a menina para a barraca onde eu estava.

Não havia ali segredo a surprehender.

Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer áquella formosa criança a manifestação de qualquer desejo.

No fim de meia hora possuia a minha pequena, visinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.

Tinha o necessario para montar completamente a casa d'uma boneca... rica.

Faltava apenas a dona da casa — a boneca.

Todo risos e attenções, o logista apresentou o que tinha de melhor.

Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil creança acabou por escolher uma magnifica boneca de dois palmos d'altura, com cabello em bandeaux e olhos azues.

Uma boneca como as outras: cabeça e collo de massa, corpo de pellica recheada, braços e pernas de páu.

Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribu de crianças, que fazem o martyrio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.

Alguns d'elles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caidos do céo sobre um monte de lama.

São os meus visinhos pobres.

A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e occupa a casa immediata.

É como se costuma dizer, gente que vae muito bem com a sua vida.

A filha que terá dez annos, tem d'estas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.

São os meus visinhos remediados.

A terceira é a dos meus visinhos ricos.

Casa nobre, jardim espaçoso, cavallos, creados, nome inscripto nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do estado — nada falta áquella ditosa gente!

Compõe-se egualmente de marido, mulher e filha.

Que formosa criança!... Terá oito annos.

Franzina e pallida, com os cabellos negros, os olhos grandes e scismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas d'uma côr de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado — provavelmente ainda a crescer — que hade um dia ter o direito de lh'as cobrir de beijos.

Feita a compra, o pai pagou, chamou o creado, e este mudou todas aquellas preciosidades de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.

A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocratica criança.

Sai d'ali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadissimas considerações, suggeridas pela quasi indiferença, com que aquella menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.

Que contraste com os olhares de cubiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma d'estas bonecas de cabeça de panno, horrivel artefacto portuguez, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retroz côr de rosa, a bôca por outro de fio vermelho, e os cabellos por flocos de lã preta!

Quando cheguei a casa, já na dos meus visinhos remediados não havia luz.

Na dos meus visinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de tres assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam os ralhos da mãe.

Quando, no dia seguinte, cheguei á janella, seriam onze horas da manhã.

Na rua agenciavam nova camada de immundicie os filhos do sapateiro; na casa immediata não se via ninguem — estava a pequena na mestra; no palacio, sentada n'um tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionaria fazendo rodar, com auxilio d'uma linha, uma magnifica caleche descoberta, puxada por cavallos brancos.

Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.

— «Ahi está a tua caricatura, minha feiticeira!...» — disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»

Retirei-me da janella.

Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma scena.

A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia tres e quatro vezes!

Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!

Chamava-lhe sr.a D. Luiza; dava-lhe excellencia; sustentava finalmente com a boneca um d'estes dialogos de senhoras da alta sociedade, em que se falla de tudo, sem se dizer coisa alguma.

Um dia, — estava eu de costas voltadas para a janella dos meus visinhos ricos — ouvi um grito de susto.

Era devido a um accidente, a que está sujeito quem anda de carro.

Voltára-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janella.

O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a victima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atiral-a com despeito á rua, quando mais perto de mim bradou voz timida e suplicante:

«Não atire!... Dê-m'a.»

Era a minha pequena visinha da casa pegada, de quem eu não déra fé até então.

Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sitio d'onde vinha a supplica.

Vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os hombros, respondeu:

— «Já não presta!... Está esmurrada!...»

— É o mesmo!... Dá-m'a?... — bradou a outra, cujos olhos brilhavam de cubiça.

— «Dou...» — volveu a rica, encolhendo novamente os hombros.

E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da visinha, que tremia, receiosa de que aquelle thesouro fosse despedaçar-se nas lages da rua.

Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar á mãe a que ella ainda não podia acreditar, que fosse sua!

Por espaço de mezes foi a boneca a principal occupação da nova dona.

A pobre perdêra na troca. Ia longe o tempo em ella se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excellencia! Chamavam-lhe sr.a D. Anna; fallavam-lhe de arranjos domesticos, do desmazello da creada, da missa das almas, de coisas finalmente, completamente estranhas para ella!

E a desgraçada perdia as côres; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azues; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura: parecia uma nodoa, um estygma!

Nos primeiros tempos, emquanto durou o vestido, que trouxera no corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.

Não tardou, porém, que arrebiques de máo gosto, fitas velhas, rendas amarelladas, chapéos impossiveis, viessem contrastar com a elegancia do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja d'uma adeleira.

Mas o vestido foi-se tornando velho; desappareceu o brilho, e com elle as ondulações do _moiré_, até que, um bello dia, vi a boneca vestida de cassa — -no inverno! — chaile e manta na cabeça.

Muito mal lhe ficava aquillo!... Áquella boneca custava-lhe de certo o vêr-se tão mal arranjada.

Eu retirei-me da janella soltando um suspiro, e balbuciei:

— É justo!... Cada qual segundo as suas posses.»

Por esse tempo, entrei em relações com o meu visinho sapateiro.

O honrado homem soubera, que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitàra a primeira occasião, para me pedir desculpa.

Vendo-me conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de soffrer as consequencias da sua travessa familiaridade.

Entre os filhos do sapateiro, porém, ha uma pequenita d'onze annos, com quem sympathisei logo á primeira vista.

Chama-se Maria.

Por um d'estes acasos da Providencia, que parece ás vezes comprazer-se em crear contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.

Acostumado ás travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei devéras pasmado quando o pai m'a apresentou.

E bem verdade que elle conhecia o valor d'aquella criança, porque havia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta é a minha Maria!»

E tinha razão!

Não podia ser mais discreta do que já n'esse tempo era.

— É quem vale á mãe!... — accrescentou o velho.» — Ali, onde a vê, faz o serviço d'uma mulher!... Ha seis mezes, quando a minha santa esteve doente — bem pensei que não arribasse! — a pequena era quem cosinhava e olhava pelos irmãos!... E caridade como ella tem!?... Olhe que aquella pequena esteve tres dias sem se deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigal-a, que ella não a queria deixar!...»

E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lagrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.

Fazia gosto ver aquella pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.

Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias á pequena.

Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.

— Eu conheço aquella boneca!... — disse eu de mim para mim.

E, não podendo resistir á curiosidade, bradei:

— Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...

Foi ali a menina da visinha! — respondeu a pequenita, córando de prazer.

Era escusado dizer-m'o.

Maria pegara na boneca e voltára-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ella; lá estava a mancha, o estygma cada vez mais visivel na fronte.

De tempos a tempos, nas raras horas de descanço, Maria entretinha-se com ella.

— Quem te viu e quem te vê!... — pensava eu.

Ás vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lh'a podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!

Roçada por aquellas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como pella, submettida a torturas, era, ainda assim, singularissimo o aspecto da triste!

Dava ares d'uma duqueza que, por necessidade, houve sido levada a fraternisar com o povo.

A misera mudára mais uma vez de nome!...

De sr.ª D. Anna passara a ser sr.a Rosinha e tratavam-n'a por vocemecê.

Trajava vestido de chita, capote velho de panno verde e lenço na cabeça.

Era um prazer para mim o escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.

Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ella, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assumptos, finalmente, que mais familiares eram á pequena.

Outra vezes passava a boneca a ser creada de servir. Reprehendiam-n'a, mandavam-n'a buscar agua á fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.

Já o leitor vê que, apesar da bondade Maria, deixára de ser feliz.

Iam longe os bons tempos em que ella, rica, morava no palacio visinho!

Desmaiada de côres, quasi perdido o cabello, semi-apagados os olhos, desfeito o carmim dos labios, a boneca não promettia longa duração.

Foi este pelo menos, o prognostico que fiz a ultima vez que a vi, tentando em vão agradar á ultima dona que o seu destino lhe dera.

Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!

Um dia chovia a cantaros! — o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arastando na passagem mil immundicies.

Eu estava á porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a agua negra, que corria. Nisto ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei machinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...

Olhei... Era a boneca!...

A misera, arrastada pela agua, vogou rua abaixo até esbarrar n'uma pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e, depois de a fazer girar tres ou quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!

Será pieguice, será o que o leitor quizer; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.

Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado á vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:

— Porque deitaste fóra a boneca, Maricas!?

— Não fui eu... — balbuciou a pequena, chorando. — Foi ali o Joaquim!...

— E porque fizeste tu aquillo, Joaquim?...

— Ora!... — respondeu o garoto com enfado. — Ora!... Estava velha... e feia!...

Curvei a cabeça ante aquella razão, e segui o meu caminho.

Pobre boneca!