A escrava Isaura/VI

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Capitulo VI.
 

— Senhor Leoncio, — disse Malvina com voz alterada approximando-se do sofá, em que se achava o marido, — desejo dizer-lhe duas palavras, se isso não o incommoda.

— Estou sempre ás tuas ordens, querida Malvina, — respondeo levantando-se lesto e risonho, e como quem nenhum repáro fizera no tom ceremonioso, com que Malvina o tratava. — Que me queres?...

— Quero dizer-lhe, — exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos esforços para dar ao seo lindo e mavioso semblante um ar feroz, — quero dizer-lhe, que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira a mais indigna e desleal...

— Santo Deos!... que estás ahi a dizer, minha querida?... explica-te melhor, que não comprehendo nem uma palavra do que dizes...

— E’ debalde, que o senhor se finge sorprehendido; bem sabe a causa do meo desgosto. Eu já devia ter presentido esse seo vergonhoso procedimento; ha muito que o senhor não é o mesmo para commigo, e me trata com tal frieza e indifferença...

— Oh! meo coração, pois querias que durasse eternamente a lua de mel?... isso seria horrivelmente monotono e prosaico.

— Ainda escarneces, infame! — bradou a moça, e desta vez as faces se lhe afogueárão de extraordinario rubor, e fuzilárão-lhe nos olhos lampejos de colera terrivel.

— Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando, — disse Leoncio procurando tomar-lhe a mão.

— Boa occasião para gracejos!... deixe-me, senhor!... que infamia!... que vergonha para nós ambos?...

— Mas emfim não te explicarás?

— Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho que exigir...

— Pois exige, Malvina.

— Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor costuma vilmente prostrar-se: liberte-a, venda-a, faça o que quizer. Ou eu ou ella havemos de abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo. Escolha entre nos.

— Hoje!?

— E já!

— És muito exigente e injusta para commigo, Malvina, — disse Leoncio depois de um momento de pasmo e hesitação. — Bem sabes que é meo desejo libertar Isaura; mas acaso depende isso de mim sómente? é a meo pae, que compete fazer o que de mim exiges.

— Que miseravel desculpa, senhor! seo pae já lhe entregou escravos e fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se acaso o senhor a prefere a mim....

— Malvina!... não digas tal blasphemia!...

— Blasphemia!... quem sabe!... mas em fim dê um destino qualquer a essa rapariga, se não quer expellir-me para sempre de sua casa. Quanto a mim não a quero mais nem um momento em meo serviço; é bonita demais para mucama.

— O que lhe dizia eu, senhor Leoncio? acudio Henrique, que já cançado e envergonhado do papel de mudo guarda-costas, entendeu que devia intervir tambem na querella. — Está vendo?... eis-ahi o fructo que se colhe d’esses belos trastes de luxo, que quer por força ter em seo salão...

— Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o socego da casa dos outros para conseguir seos fins perversos...

— Alto lá, senhor!.., para impedir, que o senhor não transportasse o seu traste de luxo do salão para a alcova, percebe?... o escandalo cedo ou tarde seria notorio, e nenhum dever tenho eu de ver de braços cruzados minha irmã indignamente ultrajada.

— Senhor Henrique! bradou Leoncio avançando para elle, hirto de colera e com gesto ameaçador.

— Basta, senhores! — gritou Malvina interpondo-se aos dois mancebos. — Toda a disputa por tal motivo é inutil e vergonhosa para nós todos. Eu já disse a Leoncio o que tinha de dizer; elle que se decida; faça o que entender. Se quizer ser homem de brio e pundonor, ainda é tempo. Se não, deixe-me, que eu o entregarei ao desprezo, que merece.

— Oh! Malvina! estou prompto a fazer todo o possivel para te tranquillizar e contentar; mas deves saber que não posso satisfazer o teo desejo sem primeiro entender-me com meo pae, que está na côrte. É preciso mais que saibas, que meo pae nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto assim, que para se ver livre das importunações do pae della, que tambem quer a todo custo libertal-a; exigio uma somma por tal forma exorbitante, que é quase impossivel o pobre homem arranjal-a.

— Ó de casa!... dá licença? — bradou neste momento com voz forte e sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.

— Quem quer que é, pode entrar, — gritou Leoncio dando graças ao céo, que tão a proposito mandava-lhe uma visita para interromper aquella importuna e detestavel questão e livral-o dos apuros, em que se via entalado.

Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular-se. O visitante era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pae de Isaura, que havia sido outrora grosseiramente despedido pelo pae de Leoncio.

Este, que ainda o não conhecia, recebeo-o com affabilidade.

— Queira sentar-se, — disse-lhe, — e dizer-nos o motivo por que nos faz a honra de procurar.

— Obrigado! — disse o recemchegado, depois de cumprimentar respeitosamente Henrique e Malvina. — Vª. Sª. sem duvida é o senhor Leoncio?...

— Para o servir.

— Muito bem!... é com Vª. S.ª, que tenho de tratar na falta do senhor seo pae. O meo negocio é simples, e julgo que o posso declarar em presença aqui do senhor e da senhora, que me parecem ser pessoas de casa.

— Sem duvida! entre nós não há segredo, nem reservas.

— Eis aqui ao que vim, senhor meo, — disse Miguel, tirando da algibeira de seo largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leoncio; — faça o favor de abrir esta carteira; aqui encontrará Vª. Sª. a quantia exigida pelo senhor seo pae, para a liberdade de uma escrava desta casa por nome Isaura.

Leoncio enfiou, e tomando machinalmente a carteira, ficou alguns instantes com os olhos pregados no teto.

— Pelo que vejo, — disse por fim, — o senhor deve ser o pae.... aquelle que dizem ser o pae da dita escrava;... — é o senhor.... — não me lembra o nome....

— Miguel, um criado de Vª. Sª.

— É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado meios de libertar a menina; ella bem merece esse sacrificio.

Enquanto Leoncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a reflectir sobre o que deveria fazer naquellas conjuncturas, do que para verificar se estava exacta a somma, aproveitemo-nos do ensejo para contemplar a figura do bom e honrado portuguez, pae da nossa heroina, de quem ainda não nos occupámos senão de passagem.

Era um homem de mais de cincoenta annos; em sua physionomia nobre e aberta transpirava a franqueza, a bonhomia, e a lealdade.

Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras e conversação conhecia-se, que aquelle homem não viéra ao Brazil, como quasi todos os seos patricios, dominado pela ganancia de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de accurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada familia de Miguelistas, que havia emigrado para o Brazil. Seos paes, victimas de perseguições politicas, morrerão sem ter nada que legar ao filho, que deixárão na idade de dezoito a vinte annos. Sósinho, sem meios e sem protecção, vio-se forçado a viver do trabalho de seos braços, mettendo-se a jardineiro e horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto, activo e intelligente desempenhava com summa pericia e perfeição.

O pae de Leoncio, tendo tido occasião de conhecel-o, e apreciando o seo merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas condições. Ali servio muitos annos sempre mui respeitado e querido de todos, até que aconteceo-lhe a fatal, mas muito desculpavel fraqueza, que sabemos, e em consequencia da qual foi grosseiramente despedido por seo patrão. Miguel concebeo amargo resentimento e magoa profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes creaturas, que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e brutal. Mas forçoso lhe foi resignar-se. Não lhe faltava serviço nem acolhimento pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seo merito, os lavradores em redór o aceitarião de braços abertos; a difficuldade estava na escolha. Optou pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possivel de sua querida filhinha.

Como o commendador quase sempre achava-se na côrte ou em Campos, Miguel tinha muita occasião e facilidade de ir ver a menina, á qual cada vez ia criando mais entranhado affecto. A esposa do commendador, na ausencia deste, dava ao portuguez franca entrada em sua casa, e facilitava-lhe os meios de ver e affagar a filhinha, com o que vivia elle mui consolado e contente. De feito o céo tinha dado á sua filha na pessoa de sua senhora uma segunda mãe tão boa e desvelada, como poderia ser a primeira, e que mais do que esta lhe podia servir de amparo e protecção. A morte inesperada daquella virtuosa senhora veio despedaçar-lhe o coração, quebrando-lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.

Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensivel!... Miguel sobrepujando todo o odio, repugnancia e asco, que lhe inspirava a pessoa do commendador, não hesitou em ir humilhar-se diante delle, importunal-o com suas supplicas, rogar-lhe com as lagrimas nos olhos, que abrisse preço á liberdade de Isaura.

— Não ha dinheiro que a pague; ha-de ser sempre minha, — respondia com orgulhoso cynismo o inexoravel senhor ao infeliz e afflicto pae.

Um dia enfim para se ver livre das importunações e supplicas de Miguel, disse-lhe com máo modo.

— Homem de Deos, traga-me dentro de um anno dez contos de réis, e lhe entrego livre a sua filha e... deixe-me por caridade. Se não vier nesse prazo, perca as esperanças.

— Dez contos de réis! é somma demasiado forte para mim;.. — mas não importa!... ella vale muito mais do que isso. Senhor commendador, vou fazer o impossivel para trazer-lhe essa somma dentro do prazo marcado. Espero em Deos, que me ha-de ajudar.

O pobre homem, á força de trabalho e economia, impondo-se privações, vendendo todo o superfluo, e limitando-se ao que era estrictamente necessario, no fim do anno apenas tinha arranjado metade da quantia exigida. Foi-lhe mister recorrer á generosidade de seo novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha seo feitor, e do vexame e extorsão, de que era victima, não hesitou em fornecer-lhe a somma necessaria, a titulo de emprestimo ou adiantamento de salarios.

Leoncio, que como seo pae julgava impossivel que Miguel em um anno pudesse arranjar tão consideravel somma, ficou atonito e altamente contrariado, quando este se apresentou para lh’a metter nas mãos.

— Dez contos, — disse por fim Leoncio acabando de contar o dinheiro. — E’ justamente a somma exigida por meo pae. — Bem estólido e avaro é este meo pae, murmurou elle comsigo, — eu nem por cem contos a daria. — Senhor Miguel, — continuou em voz alta, entregando-lhe a carteira, — guarde por ora o seo dinheiro; Isaura não me pertence ainda; só meo pae póde dispor della. Meo pae acha-se na côrte, e não deixou-me autorisação alguma para tratar de semelhante negocio. Arranje-se com elle.

— Mas Vª. Sª. é seo filho e herdeiro unico, e bem podia por si mesmo...

— Alto lá, senhor Miguel! meo pae felizmente é vivo ainda, e não me é permitido desde já dispor de seos bens, como minha herança.

— Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e envial-o ao senhor seo pae, rogando-lhe da minha parte o favor de cumprir a promessa, que me fez de dar liberdade a Isaura mediante essa quantia.

— Ainda pões duvida, Leoncio?! — exclamou Malvina impaciente e indignada com as tergiversações do marido. — Escreve, escreve quanto antes a teo pae; não te podes esquivar sem desonra a cooperar para a liberdade dessa rapariga.

Leoncio, subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força das circumstancias, que contra elle conspiravão, não poude mais escusar-se. Pálido, sombrio e pensativo, foi sentar-se junto a uma mesa, onde havia papel e tinta, e de penna em punho pôz-se a meditar em attitude, de quem ia escrever. Malvina e Henrique, debruçados a uma janella, conversavão entre si em voz baixa. Miguel, sentado a um canto na outra extremidade da sala, esperava pacientemente, quando Isaura, que do quintal, onde se achava escondida, o tinha visto chegar, entrando no salão sem ser sentida, se lhe apresentou diante dos olhos. Entre pai e filha travou-se a meia voz o seguinte diálogo:

— Meo pae!... que novidade o traz por aqui?... a modo que lhe estou vendo um ar mais alegre que de costume.

— Caludo! — murmurou Miguel, levando o dedo á boca e apontando para Leoncio. — Trata-se da tua liberdade.

— Devéras meo pae!... mas como poude arranjar isso?

— Ora como?!... a peso de ouro. Comprei-te, minha filha, e em breve vás ser minha.

— Ah! meo querido pae!... como vmce. é bom para sua filha!... se soubesse, quantos hoje já me vieram offerecer a liberdade!... mas por que preço! meo Deos!... nem me atrevo a lhe contar. Meo coração adivinhava, continuou beijando com terna efusão as mãos de Miguel; — eu não devia receber a liberdade senão das mãos daquelle, que me deo a vida!...

— Sim, querida Isaura! — disse o velho apertando-a contra o coração. — O céo nos favoreceo, e em breve vás ser minha, minha só, minha para sempre!...

— Mas elle consente?.. perguntou Isaura apontando para Leoncio.

— O negocio não é com elle, é com seo pae, a quem agora escreve.

— Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender sómente daquelle homem, serei para sempre escrava.

— Arre! com mil diabos!... resmungou comsigo Leoncio levantando-se, e dando sobre a mesa um furioso murro com o punho fechado. — Não sei que volta hei-de dar para desmanchar esta inqualificavel loucura de meo pae!

— Já escreveste, Leoncio? — perguntou Malvina voltando-se para dentro.

Antes que Leoncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem, entrando rapidamente pela sala, entrega-lhe uma carta tarjada de preto.

— De luto!... meo Deos!... que será! — exclamou Leoncio, pálido e trémulo, abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente com os olhos lançou-se sobre uma cadeira, soluçando e levando o lenço aos olhos.

— Leoncio! Leoncio!.. que tem?.. exclamou Malvina pálida de susto; e tomando a carta que Leoncio atirára sobre a mesa, começou a ler com voz entre-cortada:

«Leoncio, tenho a dar-te uma dolorosa noticia, para a qual teo coração não podia estar preparado. E’ um golpe, pelo qual todos nós temos de passar inevitavelmente, e que deves suportar com resignação. Teo pae já não existe; sucumbio ante-hontem subitamente, victima de uma congestão cerebral...»

Malvina não poude continuar; e nesse momento esquecendo-se das injurias e de tudo que lhe havia acontecido naquelle nefasto dia, lançou-se sobre seo marido, e abraçando-se com elle estreitamente, misturáva suas lagrimas com as delle.

— Ah! meo pae! meo pae!... tudo está perdido! — exclamou Isaura, pendendo a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. — Já nenhuma esperança nos resta!...

— Quem sabe, minha filha! — replicou gravemente o pai. — Não desanimemos; grande é o poder de Deus!...