A escrava Isaura/X

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Capitulo X.
 

Já são passados mais de dous mezes depois da fuga de Isaura, e agora, leitores, em quanto Leoncio emprega diligencias extraordinarias e meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em actividade a policia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe escapára, façamo-nos de véla para as provincias do norte, onde talvez primeiro que elle deparemos com a nossa fugitiva heroina.

Estamos no Recife. E’ noite e a formosa Veneza da America do Sul, coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. E’ uma noite festiva: em uma das principaes ruas nota-se um edificio esplendidamente illuminado, para onde concorre grande numero de cavalheiros e damas das mais distinctas e opulentas classes. E’ um lindo prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saráos. Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, tambem costumão descer da velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos olhares e angelicos sorrisos das bellas e espirituosas pernambucanas, esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos praxistas.

Supponhamos que tambem somos adeptos daquelle templo de Terpsicore, entremos por elle a dentro, e observemos o que por ahi vai de curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemol-os.

— E’ mais uma estrella, que vem brilhar nos salões do Recife, — dizia Alvaro, — e dar lustre a nossos saráos. Não ha ainda tres mezes, que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço. Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ella a creatura mais nobre e encantadora que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é uma deosa!...

— Caspite! — exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deosa!... são portanto tres entidades distinctas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher verdadeira. Mas dize-me cá, meo Alvaro; esse anjo, fada, deosa, mulher ou o que quer que seja, não te disse d’onde veio, de que familia é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?

— Pouco me importo com essas cousas, e poderia responder-te que veio do céo, que é da familia dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e intelligente, e uma belleza incomparavel. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a respeito della é que veio do Rio-Grande do Sul em companhia de seo pae, de quem é ella a unica familia; que seos meios são bastantemente escassos, mas que em compensação ella é linda como os anjos, e tem o nome de Elvira.

— Elvira! — observou o terceiro cavalheiro — bonito nome na verdade!... mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...

— Não faço mysterio disso; mora com seo pae em uma pequena chacara no bairro de Santo Antonio, onde vivem modestamente, evitando relações, e apparecendo mui raras vezes em publico. Nessa chacara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ella como a violeta entre a folhagem, ou como fada mysteriosa em uma gruta encantada.

— E’ celebre! — retorquio o doutor — mas como chegaste a descobrir essa nympha encantada, e a ter entrada em sua gruta mysteriosa?

— Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavallo por sua chacara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Sorprehendeo-me sua maravilhosa belleza. Como vio que eu a contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e desappareceo. Formei o firme proposito de vel-a e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por mais porém, que indagasse por toda a visinhança, não encontrei uma só pessoa, que se relacionasse com ella, e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim quem era o proprietario da chacara, e fui ter com elle. Nem esse podia dar-me informações, nem servir-me em cousa alguma. O seo inquilino vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chacara; eis tudo quanto a respeito delle sabia. Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder sorprehendel-a e admiral-a; quasi sempre porém sem resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre ás minhas vistas como da primeira vez. Um dia porém quando eu passava, cahio-lhe o lenço ao levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ella punha o pé na soleira de sua casa. Agradeceo-me com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cahir de joelhos a seos pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me offerecimento algum.

— Esse lenço, Alvaro, — atalhou um cavalheiro, — de certo ella o deixou cahir de proposito, para que pudesses vel-a de perto e fallar-lhe. E’ um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.

— Não creio; não ha naquelle ente nem sombra de coquetterie; tudo nella respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar meos pés daquelle lugar, onde uma força magnetica me retinha, e que parecia rescender um mysterioso effluvio de amor, de pureza e de ventura...

Alvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves recordações.

— E ficaste nisso, Alvaro! — perguntava outro cavalheiro; — o teo romance está-nos interessando; vamos por diante, que estou afflicto por ver a peripecia...

— A peripecia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual será. Esgotei em fim os estratagemas possiveis para ter entrada no sanctuario daquella deosa; mas foi tudo baldado. O acaso em fim veio em meo socorro, e servio-me melhor do que toda a minha habilidade e diligencia. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo Antonio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornára para mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo panno em um pequeno bote.

Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia. Apeei-me imediatamente, e tomando um escalér na praia, fui em soccorro dos dois navegantes que em vão forcejavão por safar a pequena embarcação. Não podem fazer idéa da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas do bote a minha mysteriosa da chacara e seo pae...

— Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramatico; a historia de teos amores com a tal fada mysteriosa vae tomando visos de um poema phantastico.

— Entretanto é a pura realidade. Como estavão molhados e enxovalhados, convidei-os a entrarem no meo carro. Acceitárão depois de muita reluctancia, e dirigimo-nos para a casa delles. E’ escusado contar-vos o resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta mysteriosa.

— E pelo que vejo, — interrogou o doutor, — amas muito essa mulher?

— Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho rasões para acreditar, que ella... pelo menos não me olha com indifferença.

— Deos queira que não andes embaido por alguma Circe de bordel, por alguma dessas aventureiras, de que ha tantas pelo mundo, e que sabendo que és rico, arma laços ao teo dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mysterio, em que procurão tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonão muito em favor delles.

— Quem sabe, se são criminosos que procurão subtrahir-se ás pesquizas da policia? — observou um cavalheiro.

— Talvez moedeiros falsos, — accrescentou outro.

— Tenho má fé, — continuou o doutor — todas as vezes, que vejo uma mulher bonita viajando em paizes estranhos em companhia de um homem, que de ordinario se diz pae ou irmão della. O pae de tua fada, Alvaro, se é que é pae, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de industria, que especula com a formosura de sua filha.

— Santo Deos!.. misericordia! — exclamou Alvaro. — Se eu adivinhasse que veria a pessoa daquella creatura angelica apreciada com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazel-a á conversação. Creião, que são demasiado injustos para com aquella pobre moça, meos amigos. Eu a julgaria antes uma princeza desthronizada, se não soubesse que é um anjo cahido do céo. Mas vocês em breve vão vel-a, e eu e ella estaremos vingados; pois estou certo, que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o peór é, que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.

— Por minha parte, — disse um dos cavalheiros, — pode ficar tranquillo, pois sempre tive horror ás moças mysteriosas.

— E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de fadas, — accrescentou o outro.

— E como é, — perguntou o Dr. Geraldo, — que vivendo ella assim arredada da sociedade, poude resolver-se a deixar a sua mysteriosa solidão, para vir a este baile tão publico e concorrido?...

— E quanto não me custou isso, meo amigo! — respondeo Alvaro. — Veio quasi violentada. Ha muito tempo, que procuro convencel-a por todos os modos, que uma senhora joven e formosa, como é ella, escondendo seos encantos na solidão, commette um crime, contrario ás vistas do creador, que formou a belleza para ser vista, admirada e adorada; pois sou o contrario desses amantes ciumentos e atrabiliarios, que desejarião ter suas amadas escondidas no amago da terra. Argumentos, instancias, supplicas, tudo foi perdido; pae e filha recusavão-se constantemente a aparecerem em publico, allegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um ardil; fiz-lhes acreditar que aquelle modo de viver retrahido e sem contacto com a sociedade em um paiz, onde erão desconhecidos, já começava a dar que fallar ao publico e a attrahir suspeitas sobre elles, e que até a policia começava a olhal-os com desconfiança; mentiras, que não deixavão de ter sua plausibilidade...

— E tanta, — interrompeo o doutor, — que talvez não andem muito longe da verdade.

— Fiz-lhes ver, — continuou Alvaro, — que por infundadas e futeis, que fossem taes suspeitas, era necessario arredal-as de si, e para isso cumpria-lhes absolutamente frequentar a sociedade. Este embuste produzio o desejado effeito.

— Tanto peór para elles, — retorquio o doutor; — eis ahi um indicio bem máo, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem elles innocentes, e bem pouco se importarião com as suspeitas do publico ou da policia, e continuarião a viver como d’antes.

— Tuas suspeitas não tem o menor fundamento, meo doutor. Elles tem poucos meios, e por isso evitão a sociedade, que realmente impõe duros sacrificios ás pessoas desfavorecidas da fortuna, e elles... mas eil-os, que chegão... Vejão e convenção-se com seos proprios olhos.

Entrava nesse momento na ante-sala uma joven e formosa dama pelo braço de um homem de idade madura e de respeitavel presença.

— Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente eil-os aqui! — isto dizia Alvaro aos recemchegados, separando-se de seos amigos, e apressurando-se para cumprimentar a aquelles com toda a amabilidade e cortezia. Depois offerecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vae conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os tres interlocutores de Alvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavão, puserão-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavão prevenidos.

— Com effeito!... é de uma belleza deslumbrante!

— Que porte de rainha!...

— Que olhos de andaluza!...

— Que magnificos cabellos!

— E o collo!... que collo!... não reparaste?...

— E como se traja com tão elegante simplicidade! — assim murmuravão entre si os tres cavalheiros como impressionados por uma apparição celeste.

— E não reparaste, — accrescentou o Dr. Geraldo, — naquelle feiticeiro sinalsinho, que tem na face direita?... Alvaro tem razão; a sua fada vae eclipsar todas as bellezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse prestigio do mysterio, que a envolve. Estou ardendo de impaciencia por lhe ser apresentado; desejo admiral-a mais de espaço.

Neste tom continuárão a conversar, até que passados alguns minutos, Álvaro, tendo cumprido a grata commissão de apresentador daquella nova perola dos salões, estava de novo entre elles.

— Meos amigos, — disse-lhes elle com ar triumphante. — convido-os para o salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre as injustas e injuriosas apprehensões, que ainda ha pouco nutrião a respeito do ente o mais bello e mais puro, que existe debaixo do sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficarão penetrados de assombro até a medulla dos ossos.

Os quatro cavalheiros se retirárão e desapparecêrão no meio do turbilhão das salas interiores. Forão porém immediatamente substituidos por um grupo de lindas e elegantes moças, que scintillantes de sedas e pedrarias como um bando de aves do paraizo, passeavão conversando. O assumpto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutal-as por alguns instantes.

— Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquella moça, que ainda ha pouco entrou na sala pelo braço do senhor Alvaro?

— Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta terra.

— De certo; que ar espantado tem ella!.. parece uma matuta, que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rozalina?

— Sem duvida!.., e você não reparou na toilette della?... meo Deos!.. que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar. Aqui a D. Emilia é que talvez saiba quem ella é.

— Eu? porque? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Alvaro já me tinha dado noticias dela, dizendo que era um assombro de belleza. Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.

— Aquelle senhor Alvaro sempre é um excentrico, um exquisito; tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria elle excavar aquella pérola, que tanto o traz embasbacado?...

— Veio de arribação lá dos mares do sul, minha amiga, e a julgar pelas apparencias não é de todo má.

— Se não fosse aquella pinta negra, que tem na face, seria mais supportavel.

— Pelo contrario, D. Laura; aquelle signal é que ainda lhe dá certa graça particular...

— Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava, que você tambem tem na face um signalsinho semelhante; esse devéras fica-te muito bem, e dá-te muita graça; mas o della, se bem reparei, é grande de mais; não parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.

— A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é preciso vel-a mais de perto, estudal-a com mais vagar para podermos dar com segurança a nossa opinião.

E dito isto lá se forão ellas com os braços enlaçados, formando como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a multidão.