A escrava Isaura/XIII

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Capitulo XIII.
 

Não pense o leitor, que já se acha terminado o baile, a que estavamos assistindo. A pequena digressão, que por fóra delle fizemos no capitulo antecedente, nos pareceo necessaria para explicar por que conjuncto de circumstancias fataes a nossa heroina, sendo uma escrava, foi impellida a tomar a audaciosa resolução de apresentar-se em um esplendido e aristocratico saráo, — fraqueza de coração, ou timidez de caracter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em uma pessoa de consciencia tão delicada e de tão esclarecido entendimento.

O baile continúa, mas já não tão animado e festivo como ao principio. Os applausos freneticos, a admiração geral, de que Isaura se havia tornado objecto da parte dos cavalheiros, tinhão produzido um completo resfriamento entre as mais bellas e espirituosas damas da reunião. Arrufadas com seos cavalheiros predilectos, em razão das enthusiasticas homenagens, que francamente ião render aos pés daquella, que implicitamente estavão proclamando a rainha do salão, já nem ao menos querião dançar, e em vez de risos folgazões, e de uma conversação franca e jovial, só se ouvião pelos cantos entre diversos grupos, expansões mysteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre amarellas e sarcasticas risotas.

Propagava-se entre as moças como que um sussurro geral de descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade. Dir-se-hia, que já estavão adivinhando que aquella mulher, que por seos encantos e dotes incomparaveis as estava supplantando a todas, não era mais do que — uma escrava. Muitas mesmo se forão retirando, e nomeadamente aquellas que affagavão alguma esperança, ou se julgavão com algum direito sobre o coração de Alvaro. Aniquiladas sob o peso dos esmagadores triumphos de Isaura, não se achando com animo de manterem-se por mais tempo na liça, tomárão o prudente partido de irem esconder no mysterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha de tão cruel e solemne derrota.

Não diremos todavia, que no meio de tantas e tão nobres damas, distinctas pelos encantos do espirito e do corpo, não houvessem muitas, que com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem a belleza de Isaura, e applaudissem de coração e com sincero prazer os seos triumphos, e forão essas, que conseguirão ir dando alguma vida ao saráo, que sem ellas teria esmorecido inteiramente. Todavia não é menos certo que do bello sexo, sem distincção de classes, ao menos a metade é ludibrio dessas invejas, ciumes e rivalidades mesquinhas.

Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Alvaro por seo par. Emquanto danção, entremos em uma saleta, onde ha mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanhe. Esta saleta communica immediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Achão-se ahi uma meia duzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estroinas e excentricos á Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumão dizer que não trocarião uma fumaça de charuto, ou um copo de champanhe, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzella; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já tem o coração mirrado pelo sopro do scepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misanthropos emfim, cheios de spleen, que se achão sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda especie, alardeando o seo afastamento e desdem pelos prazeres da sociedade e frivolidades da vida.

Entre elles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a attenção, visto que tem de tomar parte um tanto activa nos acontecimentos desta historia. Este nada tem de spleenitico nem de byroniano; pelo contrario o seo todo respira o mais chato e ignobil prosaismo. Mostra ser mais velho que os seos comparsas, uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberancias, o que, na opinião de Lavater, é indicio de espirito lerdo e acanhado, a roçar pela estupidez. O todo da physionomia tosca e quase grotesca revéla instinctos ignobeis, muito egoismo e baixeza de caracter. O que porém mais o caracteriza é certo espirito de cobiça, e de sordida ganancia, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os actos, e principalmente no fundo de seos olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. E’ estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegancia, parece mais um vendilhão. Estudava ha quinze anos á sua propria custa, mantendo-se do rendimento de uma taverna, de que era socio capitalista. Chama-se Martinho.

— Rapaziada, — disse um dos mancebos, — vamos nós aqui a uma partida de lansquenet, emquanto esses basbaques ali estão a arrastar os pés e a fazer mesuras.

— Justo! — exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando baralhos. — Já que não temos cousa melhor a fazer, vamos ás cartas. Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sóta me faz ás vezes estremecer o coração em emoções mais vivas, do que as sentiria Romeo a um olhar de Julieta... Affonso, Alberto, Martinho, andem para cá; vamos ao lansquenet... duas ou tres corridas sómente...

— De boa vontade acceitaria o convite, — respondeo Martinho, — se não andasse occupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada arriscar, pode meter-me na algibeira não menos de cinco contos de réis limpinhos.

— De que diabo de jogo estás ahi a fallar?.. nunca deixarás de ser maluco?.. deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenet.

— Quem tem um jogo seguro como eu tenho, ha-de ir meter-se nos azares do lansquenet, que já me tem engolido bem boas patacas?.. Nem tão tolo serei eu.

— Com mil diabos, Martinho!.. então não te explicarás?.. que maldito jogo é esse?...

— Ora adivinhem lá... Não são capazes. E’ uma bisca de estrondo. Se adivinharem, dou-lhes uma ceia esplendida no melhor hotel desta cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.

— Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalháo ardido, e por que não é possivel haver quem adivinhe as asneiras que passam lá por esses teos miolos extravagantes. O que queremos é o teo dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenet.

— Ora deixem-me em paz, — disse Martinho, com os olhos attentamente dirigidos para o salão de dança. — Estou calculando o meo jogo... supponhão que é o xadrez, e que eu vou dar cheque-mate á rainha... dito e feito, e os cinco contos são meos...

— Não ha duvida, o rapaz está doudo varrido... Anda lá, Martinho; descobre o teo jogo, ou vae-te embora, e não nos estejas a massar a paciencia com tuas maluquices.

— Malucos são vocês. O meo jogo é este... mas quanto me dão para descobril-o? olhem que é cousa curiosa.

— Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres, não é assim?.. pois desta vez affianço-te da minha parte, que não arranjas nada. Vae-te aos diabos com o teo jogo, e deixa-nos cá com o nosso. Ás cartas, meos amigos, e deixemos o Martinho com suas maluquices.

— Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.

— Ah! toleirões! — exclamou o Martinho, — vocês ainda estão com os beiços com que mamárão.

Andem cá, andem, e verão se é maluquice, nem velhacaria. Emfim quero mostrar-lhes o meo jogo, porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não de accordo com a minha.

Eis aqui a minha bisca. — concluio Martinho mostrando um papel, que sacou da algibeira; — não é nada mais que um annuncio de escravo fugido.

— Ah! ah! ah! esta não é má!..

— Que disparate!.. decididamente estás louco, meo Martinho.

— A que proposito vem agora annuncio de escravo fugido?...

— Foste acaso nomeado official de justiça ou capitão do mato?

Estas e outras phrases escapavão aos mancebos de envolta, em um choro de interminaveis gargalhadas, que competião com a orchestra do baile.

— Não sei de que tanto se espantão, — replicou frescamente o Martinho; — o que admira é que ainda não vissem este grande annuncio em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuido por toda a cidade com o Jornal do Commercio.

— Por ventura somos esbirros ou officiaes de justiça, para nos embaraçarmos com semelhantes annuncios?

— Mas olhem que o negocio é dos mais curiosos, e as alviçaras não são para se desprezarem.

— Pobre Martinho! quanto pode em teo espirito a ganancia de ouro, que faz-te andar á cata de escravos fugidos em uma sala de baile! — pois é aqui, que poderás encontrar semelhante gente?...

— Olé!.. quem sabe?!.. tenho cá meos motivos para desconfiar que por aqui mesmo hei-de achal-a, assim como os cinco continhos, que, aqui entre nós, vem agora mesmo ao pintar, pois que o armazem de meo socio bem pouco tem rendido nestes ultimos tempos.

Martinho chamava armazem a pequena taverna, de que era socio. Ditas aquellas palavras foi postar-se junto á porta, que dava para o salão, e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dansavão, ora para o annuncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua e confronta os signaes.

— Que diabo faz ali o Martinho? — exclamou um dos mancebos, que entretidos com as mimicas do Martinho, tomando-as por palhaçada, tinhã-se esquecido de jogar.

— Está doudo, não resta a menor duvida. — observou outro. — Procurar escravo fugido em uma sala de baile!.. Ora não faltava mais nada! Se andasse á cata de alguma princeza, de certo a iria procurar nos quilombos.

— Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ahi anda.

— Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dansando, e elle não tira os olhos dos que dansão.

— Deixál-o; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi um maniaco de primeira força.

— E’ ella! — disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para seos companheiros; — é ella; já não tenho a menor duvida; é ella, e está segura.

— Ella quem, Martinho?...

— Ora! pois quem mais ha-de ser?...

— A escrava fugida?!....

— A escrava fugida, sim, senhores!.. e ella está ali dansando.

— Ah! ah! ah! ora vamos ver mais esta, Martinho!.. até onde queres levar a tua farça? deve ser galante o desfecho. Isto é impagavel, e vale mais que quantos bailes ha no mundo.

— Se todos elles tivessem um episodio assim, eu não perdia nem um. — Assim clamavão os moços entre estrondosas gargalhadas.

— Vocês zombão? — olhem que a farça cheira um pouco a tragedia.

— Melhor! Melhor! — vamos com isso, Martinho!

— Não acreditão?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farça.

Dizendo isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando o annuncio, pôz-se em attitude de lêl-o. Os outros se agrupárão curiosos em torno delle.

— Escutem bem, — continuou Martinho — Cinco contos! — eis o titulo pomposo, que em eloquentes e graúdos algarismos se acha no frontispicio desta obra immortal, que vale mais que a Iliada de Camões...

— E que os Luziadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de preambulos asnaticos, e vamos ao annuncio.

— Eu já lhes satisfaço, — disse Martinho, e continuou lendo:

— Fugio da fazenda do Sr. Leoncio Gomes da Fonseca, no municipio de Campos, provincia do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos signaes são os seguintes:

Côr clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma côr, compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno signal preto, e acima do seio direito um signal de queimadura, mui semelhante a uma aza de borboleta. Traja-se com gosto e elegancia; canta e toca piano com perfeição. Como teve excellente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugio em companhia de um portuguez, por nome Miguel, que se diz seo pae. E’ natural, que tenhão mudado o nome. Quem a appreender, e levar ao dito seo senhor, além de se lhe satisfazerem todas as despezas, receberá a gratificação de 5:000:000 de réis —.

— Devéras, Martinho? — exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Venus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!!....

— Se não querem acreditar ainda, leião com seos proprios olhos: aqui está o papel....

— Com effeito! — accrescentou outro — uma escrava assim vale a pena apprehendel-a, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos. Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregal-a ao seo senhor.

— Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma creatura tão perfeita só se pode encontrar nos palacios dos principes.

— Ou no reino das fadas; e pelos signaes e indicios estou vendo, que não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje appareceo....

— Sem mais nem menos; deo no vinte, — atalhou Martinho, e chamando-os para junto da porta:

— Agora venhão cá, — continuou, — e reparem naquella bonita moça, que dansa de par com Alvaro. Pobre Alvaro, como está cheio de si! se soubesse com quem dansa, cahia-lhe a cara aos pés. Reparem bem, meos senhores, e vejão se não combinão perfeitamente os signaes?..

— Perfeitamente! — acudio um dos moços, — é extraordinario! lá vejo o signalsinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver a tal aza de borboleta sobre o seio, não pode haver mais duvida. O’ céos! é possivel que uma moça tão linda seja uma escrava!

— E que tenha a audacia de apresentar-se em um bailes destes? — accrescentou outro. — Ainda não posso capacitar-me.

— Pois cá para mim, — disse o Martinho — o negocio é liquido, assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na algibeira; e até logo, meos caros.

E dizendo isto dobrou cuidadosamente o annuncio, meteo-o na algibeira, e esfregando as mãos com cynico contentamento, tomou o chapéo, e retirou-se.

— Forte miseravel!.. — disse um dos comparsas — que vil ganancia de ouro a deste Martinho! estou vendo, que é capaz de fazer prender aquella moça aqui mesmo em pleno baile.

— Por cinco contos é capaz de todas as infamias do mundo. Tão vil creatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expellil-o da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquella rara formosura.

— E’ assombroso! Quem diria, que debaixo daquella figura de anjo estaria occulta uma escrava fugida!

— E tambem quem nos diz, que no corpo da escrava não se acha asylada uma alma de anjo?..