A escrava Isaura/XVI

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Capitulo XVI.
 

O primeiro cuidado de Martinho logo ao sahir do baile, em que vio mallograda a sua tentativa de apprehender Isaura, foi escrever ao senhor della uma longa e minuciosa carta, communicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a escrava, que tanto procurava.

Contava por miudo as diligencias que fizera para esse fim, até descobril-a em um baile publico, e encarecia o seo proprio merito e perspicacia para esbirro, dizendo que a não ser elle, ninguem seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada. Alterando os factos e as circumstancias do modo o mais atroz e calumnioso, dizia-lhe em phrases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar laços á rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido apanhar um patinho bem gordo e facil de depennar. Era este um pernambucano por nome Alvaro, moço duas vezes millionario, e mil vezes desmiolado, que tinha por ella uma paixão louca. Este moço, a quem ella trazia illudido e engodado ao ponto de elle querer desposal-a, cahio na tolice de leval-a a um baile, onde elle Martinho teve a fortuna de descobril-a, e a teria apprehendido, e estaria ella já de marcha para o poder de seo senhor, se não fosse a opposição do tal senhor Alvaro, que apezar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroina, teve a pouca vergonha de protegel-a escandalosamente. Prevalecendo-se das valiosas relações, e da influencia de que gozava no paiz em razão de sua riqueza, conseguio impedir a sua apprehensão, e tornando-se fiador della a conservava em seo poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregal-a senão ao seo proprio senhor. Julga que a intenção de Alvaro é tentar meios de libertal-a, a fim de fazel-a sua mulher ou sua amasia. Julgava de seo dever communicar-lhe tudo isso para seo governo.

Era este em summa o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguio para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Alvaro, fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leoncio contente com a descoberta, mas cheio de ciume e inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se em responder a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigio a Alvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual o autorisava a apprehender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remettia-lhe tambem procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de recommendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o auxiliasse naquella diligencia.

Martinho mais que depressa dirigio-se á casa da policia, e apresentando ao chefe todos esses papeis, requereo-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava. O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeo que não lhe era possivel denegar-lhe o que pedia, e expedio ordem por escripto, para que lhe fosse entregue a escrava em questão, e deo-lhe um official de justiça e dous guardas para effectuarem a diligencia.

Foi portanto o Martinho, que munido de todos os poderes e competentemente autorisado pela policia apresentou-se com sua escolta á porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cubiçada presa.

— Ainda este infame! — murmurou Alvaro entre os dentes ao ver entrar o Martinho. — Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo arrancára do intimo da alma.

— Que deseja de mim o senhor? — perguntou Alvaro em tom secco e altivo.

— Vª. Sª., que bem me conhece, — respondeo Martinho, — já pode presumir pouco mais ou menos o motivo, que aqui me traz.

— Nem por sombras posso adivinhal-o, antes me causa estranheza esse apparato policial, de que vem acompanhado.

— Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava fugida, por nome Isaura, que não ha muito tempo foi por mim apprehendida no meio de um baile, no qual se achava Vª. Sª., e devendo eu envial-a a seo senhor no Rio de Janeiro, Vª. Sª. a isso se oppôz sem motivo algum justificavel, conservando-a até hoje em seo poder contra todo o direito.

— Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe, que eu sou depositario dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento da autoridade a tenho debaixo de minha protecção.

— Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade, cessou, desde que Vª. Sª. nada tem allegado em favor da mesma escrava. E demais, — continuou apresentando um papel, — aqui está ordem expressa e terminante do chefe de policia, mandando que me seja entregue a dita escrava. A isto nada se póde oppôr legalmente.

— Pelo que vejo, senhor Martinho, — disse Alvaro depois de examinar rapidamente o papel que Martinho lhe entregára, — ainda não desistio de seo indigno procedimento, tornando-se por um pouco de dinheiro o vil instrumento do algôz de uma infeliz mulher? Reflicta, e verá que essa infame acção só pode inspirar asco e horror a todo o mundo.

Martinho achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito de mostrar-se aspero e arrogante, e portanto com imperturbavel sangue frio:

— Senhor Alvaro, — respondeo, — eu vim a esta casa sómente com o fim de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui se acha acoutada, e não para ouvir reprehensões, que o senhor não tem direito de dar-me. Trate de fazer o que a lei ordena e a prudencia aconselha, se não quer que use de meo direito...

— Qual direito?!...

— De varejar esta casa e levar á força a escrava.

— Retira-te, miseravel esbirro! — bradou Alvaro com força, não podendo mais sopear a colera. — Desapparece de minha presença, se não queres pagar caro o teo atrevimento!...

— Senhor Alvaro!... veja o que faz!

O D.r Geraldo não achando muita razão em seo amigo, por prudencia até ali se tinha conservado silencioso, mas vendo que a colera e imprudencia de Alvaro ia excedendo os limites, julgou de seo dever intervir na questão, e approximando-se de Alvaro, e punchado-lhe o braço:

— Que fazes, Alvaro? — disse-lhe em voz baixa, — Não vês que com esses arrebatamentos não consegues senão comprometter-te, e aggravar a sorte de Isaura? mais prudencia, meo amigo.

— Mas... que devo eu fazer?... não me dirás?

— Entregal-a.

— Isso nunca!... — replicou Alvaro terminantemente.

Conservárão-se todos silenciosos por alguns momentos. Alvaro parecia reflectir.

— Occorre-me um expediente, — disse elle ao ouvido de Geraldo, — vou tental-o.

E sem esperar resposta approximou-se de Martinho.

— Senhor Martinho, — disse-lhe elle, — desejo dizer-lhe duas palavras em particular, com permissão aqui do doutor.

— Estou ás suas ordens, — replicou Martinho.

— Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Alvaro em voz baixa, tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o offendeo. Está em seo direito, eu reconheço, e a somma não é para desprezar. Mas se quizer desistir completamente desse negocio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro dessa quantia.

— O dobro!... dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos.

— Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.

— Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da escrava, dei passos para esse fim, e...

— Que importa!... diga que ella evadio-se de novo, ou dê outra qualquer desculpa...

— Como, se é tão publico que ella se acha em poder de Vª. Sª.?...

— Ora!... isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca cousa!...

— Vá feito, — disse Martinho depois de reflectir um instante. — Já que Vª. Sª. tanto se interessa por essa escrava, não quero mais affligil-o com semelhante negocio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Acceito a proposta.

— Obrigado; é um importante serviço que vae me prestar.

— Mas que volta darei eu ao negocio para sahir-me bem delle.

— Veja lá; sua imaginação é fertil em recursos, e ha-de inspirar-lhe algum meio de safar-se de difficuldades com a maior limpeza.

Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando á testa o dedo indice:

— Atinei! — exclamou. — Dizer que a escrava desappareceo de novo, não é conveniente, e iria comprometter a Vª. Sª., que se responsabilizou por ella. Direi sómente, que bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que Vª. Sª. tem em seo poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado.

— Essa não é mal achada... mas foi um negocio tão publico...

— Que importa!... não se lembra Vª. Sª. de um signal em forma de queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no annuncio? direi, que não se achou semelhante signal, que é muito caracteristico, e está destruida a identidade de pessoa. Accrescentarei mais que a moça, por quem Vª. Sª. se interessa, vista de noite é uma cousa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava que se acha descripta no annuncio, e que em vez de ter vinte annos mostra ter seos trinta e muitos para quarenta, e que toda aquella mocidade e formosura era effeito dos arrebiques, e da luz vacillante dos lustres e candelabros.

— O senhor é bem engenhoso, — observou Alvaro sorrindo-se; — mas os que a virão, nenhum credito darão a tudo isso. Resta porém ainda uma difficuldade, senhor Martinho; é a confissão que ella fez em publico?... isto ha-de ser custoso de embaçar-se.

— Qual custoso!... allega-se que ella é sujeita a accessos de hysterismo, e é sujeita a hallucinações.

— Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua pericia e habilidade. E depois?

— E depois communico tudo isso ao chefe de policia, declaro-lhe que nada mais tenho com esse negocio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou capitão do mato, que se queira encarregar dessa diligencia, e em acto continuo escrevo ao senhor da escrava communicando-lhe o meo engano, com o que elle por certo desistirá de procural-a mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquizas. Que tal acha o meo plano?...

— Admiravel, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.

— Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta, a dar parte do desempenho de minha commissão.

— Aqui não, que não poderei demorar-me muito. Espero-o em minha casa, e lá receberá a somma convencionada.

— Podem-se retirar, — disse Martinho ao official de justiça e aos guardas, que se achavão postados do lado de fora da porta. — Sua presença não é mais necessaria aqui. Não ha duvida! — continuou elle comsigo mesmo; — isto vae a dobrar como no lansquenet. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.

E retirou-se esfregando as mãos de contentamento.

— Então, que arranjo fizeste com o homem, meo Alvaro? — perguntou Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.

— Excellente, — respondeo Alvaro; — a minha lembrança surtio o desejado effeito, e ainda mais do que eu esperava.

Alvaro em poucas palavras deo conta ao seo amigo do mercado que fizera com o Martinho.

— Que caracter desprezivel e abjecto o deste Martinho! — exclamou Geraldo. — De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E julgas ter conseguido muita cousa, Alvaro, com o passo que acabas de dar?...

— Não muito, porém alguma cousa sempre posso conseguir. Pelo menos consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão popular, meo Geraldo, em quanto o páo vae e vem, folgão as costas. Emquanto Leoncio, persuadido que a sua escrava não se acha aqui no Recife, a procura por todo esse mundo, ella aqui fica tranquillamente á minha sombra, livre das perseguições e dos máos tratos de um barbaro senhor; e eu terei tempo para activar os meios de arranjar provas e documentos, que justifiquem o seo direito á liberdade. E’ quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará o modo por que devo proceder.

— Como te enganas, meo pobre Alvaro!... cuidas, que arredando o Martinho ficas por emquanto livre de perseguições e pesquisas contra a tua protegida? que cegueira!... não faltarão malsins igualmente esganados por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para esses miseraveis é uma somma fabulosa, se ponhão á cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deo a alarma, e que esse negocio tem attingido a um certo gráo de celebridade, em vez de um, apparecerão cem Martinhos no encalce da bella fugitiva, e não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.

— E’s muito meticuloso, Geraldo, e encaras as cousas sempre pelo lado peor. E’ bem provavel que peguem as patranhas inventadas pelo Martinho, e que ninguem mais se lembre de descobrir a captiva Isaura nessa moça, por quem me interesso, e embora mil malsins a procurem por todos os cantos do mundo, pouco me importará. Sempre obtenho uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.

— Pois bem, Alvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês que semelhante procedimento não é digno de ti?... que assim incorres realmente nos epithetos affrontosos, com que obsequiou-te o tal Leoncio, e que te tornas verdadeiramente um seductor e acoutador de escravos alheios.?...

— Desculpa-me, meo caro Geraldo; não posso acceitar a tua reprimanda. Ella só pode ter applicação aos casos vulgares, e não ás circumstancias especialissimas em que eu e Isaura nos achamos collocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma escrava; protejo um anjo, e amparo uma victima innocente contra a sanha de um algôz. Os motivos que me impellem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitão o meo procedimento, e são bastantes para justificar-me aos olhos de minha consciencia.

— Pois bem, Alvaro; faze o que quizeres; não sei que mais possa dizer-te para demover-te de um procedimento, que julgo não só imprudente, como, a fallar-te com sinceridade, ridiculo, e indigno da tua pessoa.

Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquella cega paixão, que levava o seo amigo a actos que qualificava de burlesco desatino, e loucura inqualificavel. Por isso longe de auxilial-o com seos conselhos, e indicar-lhe os meios de promover a libertação de Isaura, procurava com todo o empenho demovel-o daquelle proposito, pintando o negocio ainda mais difficil do que realmente o era. De bom grado, se lhe fosse possivel, teria entregado Isaura a seo senhor sómente para livrar Alvaro daquella terrivel tentação, que o ia precipitando na senda das mais ridiculas extravagancias.