A escrava Isaura/XX

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Capitulo XX.
 

Emquanto Rosa e André espanejavão os moveis do salão, tagarellando alegremente, uma scena bem triste e compungente se passava em um escuro aposento attinente ás senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada á parede, ha dous mezes se achava encarcerada.

Miguel ahi tinha sido introduzido por ordem de Leoncio, para dar parte á filha do projecto de seo senhor, e exortal-a a acceitar o partido que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavão aquellas duas miseras creaturas, palidas, extenuadas e abatidas pelo infortunio, encerrados em uma estreita e lobrega espelunca. Ao se encontrarem depois de dous longos mezes, mais opprimidos e desgraçados que nunca, a primeira linguagem com que se saudárão, não foi mais do que um chôro de lagrimas e soluços de indizivel angustia, que abraçados por largo tempo estivérão entornando no seio um do outro.

. . . . . . . . . . . . . . . . .

— Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que é desgraçadamente o unico recurso que nos deixão. E’ com esta condição, que venho abrir-te as portas desta triste prisão, em que ha dous mezes vives encerrada. E’ sem duvida um cruel sacrificio para teo coração; mas é sem comparação mais supportavel do que esse duro captiveiro, com que pretendem matar-te.

— E’ verdade, meo pae; o meo carrasco dá-me a escolha entre dous jugos; mas eu ainda não sei qual dos dous será mais odioso e insupportavel. Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspirárão-me uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa morder-se de inveja; tenho dotes incomparaveis do corpo e do espirito; e tudo isto para que, meo Deos!?... para ser dada de mimo a um misero idiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente escarneo?!..

E uma risada convulsiva e sinistra desprendeo-se dos labios descórados de Isaura, e reboou pelo lugubre aposento, como o estridulo ulular do mocho entre os sepulchros.

— Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos soffrimentos. O tempo pode muito, e com paciencia e resignação has-de te acostumar a esse novo viver, sem duvida muito mais suave do que este inferno de martyrios, e poderemos ainda gozar dias senão felizes, ao menos mais tranquillos e serenos.

— Para mim a tranquillidade não pode existir senão na sepultura, meo pae. Entre os dous supplicios que me deixão a escolher, eu vejo ainda alguma cousa, que me sorri como uma idéa consoladora, um recurso extremo, que Deos reserva para os desgraçados, cujos males são sem remedio.

— E’ da resignação sem duvida, que queres fallar, não é, minha filha?...

— Ah! meo pae, quando a resignação não é possivel, só a morte...

— Cala-te, filha!... não digas blasphemias e palavras loucas. Eu quero, eu preciso, que tu vivas. Terás animo de deixar teo pae neste mundo sósinho, velho e entregue á miseria e ao desamparo? Se me faltares, o que será de mim nas tristes conjuncturas em que me deixas?...

— Perdoe-me, meo bom, meo querido pae; só em um caso extremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meo pae, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me case com um disforme?.. oh! isto é escarneo e opprobrio demais! Tenhão-me debaixo do mais rigoroso captiveiro, ponhão-me na roça de enxada na mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me em fim como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este ignominioso sacrificio!..

— Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo e o costume te farão familiarisar com elle. Ha muito tempo não o vês; com a idade elle vae-se endireitando, que é elle ainda muito creança. Agora o desconhecerás; já não tem aquelle exterior tão grosseiro e desagradavel, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma animo, minha filha; quando sahires deste triste calabouço, o ar da liberdade te restituirá a alegria e a tranquillidade, e mesmo com o marido que te dão poderás viver feliz....

— Feliz! — exclamou Isaura com amargo sorriso; — não me falle em felicidade, meo pae. Se ao menos eu tivesse o coração livre como outróra... se não amasse a ninguem. Oh!.. não era preciso que elle me amasse, não; bastava que me quizesse para escrava, aquelle anjo de bondade, que em vão empregou seos generosos esforços para arrancar-me deste abysmo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo mulher desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim! devo eu pensar mais nelle? pode elle, nobre e rico cavalheiro, lembrar-se ainda da pobre e infeliz captiva!...

— Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua idéa esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.

— Por que, meo pae?.. como poderei ser ingrata a esse moço?..

— Mas não deves contar mais com elle, e muito menos com o seo amor.

— Por que motivo? por ventura se terá elle esquecido de mim?..

— Tua humilde condição não permitte que olhes com amor para tão alto personagem; um abysmo te separa delle. O amor que lhe inspiraste, não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem me peza dizer-te isto, Isaura; mas é a pura verdade.

— Ah! meo pae! que está dizendo!.. se soubesse que mal me fazem essas terriveis palavras!.. deixe-me ao menos a consolação de acreditar que elle me amava, que me ama ainda. Que interesse tinha elle em illudir uma pobre escrava?...

— Eu bem quizéra poupar-te ainda este desgosto; mas é preciso que saibas tudo. Esse moço.... ah! minha filha, prepara teo coração para mais um golpe bem cruel.

— Que tem esse moço?.. perguntou Isaura trémula e agitada. Falle, meo pae; acaso morreo?....

— Não, minha filha, mas... está casado.

— Casado!... Alvaro casado!... oh! não; não é possível!.. quem lhe disse, meo pae?...

— Elle mesmo, Isaura; lê esta carta.

Isaura tomou a carta com mão trémula e convulsa, e a percorreo com olhos desvairados. Lida a carta não articulou uma queixa, não soltou um soluço, não derramou uma lagrima, e ella palida como um cadaver, os olhos estatelados, a boca entre-aberta, muda, immovel, hirta, ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir-se-hia que fôra petrificada como a mulher de Loth, ao encarar as chammas em que ardia a cidade maldita. Emfim por um movimento rapido e convulso atirou-se ao seio de seo pae, e inundou-o de uma torrente de lagrimas.

Este pranto copioso alliviou-a; ergueo a cabeça, enxugou as lagrimas, e pareceo ter recobrado a tranquillidade, mas uma tranquillidade gelida, sinistra, sepulchral. Parecia que sua alma se tinha anniquilado sob a violencia daquelle golpe esmagador, e que de Isaura só restava o phantasma.

— Estou morta, meo pae!... não sou mais que um cadaver;... fação de mim o que quiserem....

Forão estas as ultimas palavras, que com voz funebre e sumida proferio naquelle lobrego recinto.

— Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. — Não te entregues assim ao desalento; tenho esperança, de que has-de viver e ser feliz.

Miguel, espirito acanhado e rasteiro, coração bom e sensivel, mas inteiramente estranho ás grandes paixões, não podia comprehender todo o alcance do sacrificio que impunha á sua filha. Encarando a felicidade mais pelo lado dos interesses da vida positiva e material, que não pelos gozos e exigencias do coração, ousava conceber sinceras esperanças de mais felizes e tranquillos dias para sua filha, e não via que, sujeitando-a a semelhante opprobrio, aviltando-lhe a alma, ia esmagar-lhe o coração. Queria que ella vivesse, e não via que aquelle ignominioso consorcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passára, era o golpe de compaixão, que terminando-lhe a existencia, vinha abreviar-lhe os soffrimentos.

Malvina achava-se no salão, e ali esperava o resultado da conferencia, que Miguel fôra ter com sua filha. Rosa e André de braços cruzados junto á porta da entrada, tambem ali se achavão ás suas ordens.

Malvina sentio um doloroso aperto de coração ao ver assomar na porta o vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, livida e desfigurada como enferma em agonia, os cabellos em desalinho, e com passos mal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulchro, naquelle salão, onde não ha muito tempo a vira tão radiante de belleza e mocidade; naquelle salão, que parecia ainda repetir os ultimos accentos de sua voz suave e melodiosa.

Mesmo assim ainda era bella a misera captiva. A magreza fazendo sobresahirem os contornos e angulos faciaes, realçava a pureza ideal e a severa energia daquelle typo antigo.

Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancolica, erão como cirios funereos sob a arcada sombria de uma capella tumular. Os cabellos entornados em desordem em volta do collo, fazião ondular por elle leves sombras de maravilhoso effeito, como festões de hera a se debruçarem pelo marmore vetusto de estatua empallidecida pelo tempo. Naquella miseranda situação, Isaura offerecia ao esculptor um formoso modelo da Niobe antiga.

— Aquella é Isaura!.. oh! meo Deos! coitada! — murmurou Malvina ao vel-a, e foi-lhe mister enxugar duas lagrimas, que a seo pezar humedecerão-lhe as palpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemencia a seo esposo em favor da pobresinha, mas lembrou-se das perversas inclinações e máo comportamento, que Leoncio aleivosamente attribuira a Isaura, e assentou de revestir-se de toda a impassibilidade, que lhe fosse possivel.

— Então, Isaura, — disse Malvina com brandura, — já tomaste a tua resolução?.. estás decidida a casar com o marido que te queremos dar?

Isaura por unica resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no chão.

— Sim, senhora, — respondeo Miguel por ella; — Isaura está resolvida a se conformar com a vontade de Vas. Sas.

— Faz muito bem. Não é possivel, que ella esteja a soffrer por mais tempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir emquanto estiver nesta casa. Não foi para esse fim, que sua defunta senhora creou-a com tanto mimo, e deo-lhe tão boa educação.

Isaura, apezar de tua descahida, quero-te bem ainda, e não tolerarei mais semelhante escandalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e um excellente marido.

— Excellente!.. meo Deos! Que escarneo! — reflectio Isaura.

— Belchior é muito bom moço, inoffensivo, pacifico e trabalhador; creio que has-de dar-te optimamente com elle. Demais para obter a liberdade nenhum sacrificio é grande, não é assim, Isaura?

— Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-me humildemente ao meo destino. Arrancão-me da marmorra[1] — (continuou Isaura em seo pensamento), — para levarem-me ao supplicio.

— Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga docil e de juizo. André, vae chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o gosto de annunciar-lhe, que vae emfim realizar-se o seo sonho querido de tantos annos.

Creio que o senhor Miguel tambem não ficará mal satisfeito com o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma cousa sahir do captiveiro e casar-se com um homem branco e livre. Antes assim do que fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de quanto desejo o teo bem, quero ser madrinha neste casamento, que vae pôr termo a teos soffrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento, que ha muito tempo della andavão arredados.

Ditas estas palavras, Malvina abrio um cofre de joias, que estava sobre uma mesa, e delle tirou um rico collar de ouro, que foi collocar no pescoço de Isaura.

— Acceita isto Isaura, — disse ella, — é o meo presente de noivado.

— Agradecida, minha boa senhora, — disse Isaura, e acrescentou em seo coração; — é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da victima.

Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.

— Eis-me aqui, senhora minha, — diz elle, — o que deseja deste seo menor creado?

— Dar-lhe os parabens, senhor Belchior, — respondeo Malvina.

— Parabens!.... mas eu não sei por que!...

— Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vae ser livre, e.... adivinhe o resto.

— E vae-se embora de certo... oh!.. é uma desgraça!

— Já vejo, que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a casar-se com o senhor.

— Que me diz, patrôa!... perdão, não posso acreditar. Vm.ce está zombando commigo.

— Digo-lhe a verdade; ahi está ella, que não me deixará mentir. Aprompte-se, senhor Belchior, e quanto antes, que ámanhã mesmo ha-de-se fazer o casamento aqui mesmo em casa.

— Oh! senhora minha! dibindade da terra! — exclamou Belchior indo-se atirar aos pés de Malvina e procurando beijal-os, — deixe-me beijar esses péis....

— Levante-se dahi, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que deve agradecer.

Belchior levanta-se e corre a prostrar-se aos pés de Isaura.

— Oh! princeza de meo coração! — exclamou elle atracando-se ás pernas da pobre escrava, que fraca como estava, quasi foi a terra com a força daquella furiosa e enthusiastica atracação. Era para fazer rebentar de riso, a quem não soubesse quanto havia de tragico e doloroso no fundo daquella impia e ignobil farça.

— Isaura!.. não olhas para mim? aqui tens a teos péis este teo menor captivo Belchior!.. olha para elle, para este teo adorador, que hoje é mais do que um principe... dá cá essa mãosinha, deixa-me comel-a de beijos...

— Meo Deos! que farça hedionda obrigão-me a representar! — murmurou Isaura comsigo, e voltando a face abandonou a mão a Belchior, que collando a ella a boca no transporte do enthusiasmo, desatou a chorar como uma creança.

— Olha que palerma! — disse André para Rosa, que observavão de parte aquella scena tragi-comica. — E venhão cá dizer-me, que não é o mel para a boca do asno!

— Eu antes queria que me casassem com um jacaré.

— Este meo sinhô moço tem idéas do diabo! quem havia de lembrar-se de casar uma sereia com um bôto.

— Invejoso!.. você é que queria ser o bôto, por isso está ahi a torcer o nariz. Toma!.. bem feito!... agora o que faltava era que o nhonhô te désse de dote á Isaura.

— Isso queria eu!.. aposto que Isaura não vae casar de livre vontade! e depois... nós cá nos arranjariamos... havia de enfiar o bôto pelo fundo de uma agulha.

— Sahe dahi, tolo!... pensa que Isaura faz caso de você?..

— Não te arrebites, minha Rosa; já agora não ha remedio senão contentar-me comtigo, que em fim de contas tambem és bem bonitinha, e... tudo que cahe no jequy, é peixe.

— E’ baixo!... aguente a sua taboa, e vá consolar-se com quem quizer, menos commigo.

  1. masmorra