A mão e a luva/V

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Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno não sei de que repartição do Estado, homem probo, que morreu quando ela contava apenas sete anos, legando à viúva o cuidado de a educar e manter. A viúva era mulher enérgica e resoluta, enxugou as lágrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situação e determinou-se à luta e à vitória.

A madrinha de Guiomar não lhe faltou naquele duro transe, e olhou por elas, como entendia que era seu dever. A solicitude, porém, não foi tão constante a princípio como veio a ser depois; outros cuidados de família lhe chamavam a atenção.

Guiomar anunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco travessa, decerto, mas muito menos do que é usual na infância. Sua mãe, depois que lhe morrera o marido, não tinha outro cuidado na Terra, nem outra ambição mais, que a de vê-la prendada e feliz. Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela sabia, — e a coser e bordar, e o pouco mais que possuía de seu ofício de mulher. Guiomar não tinha dificuldade nenhuma em reter o que a mãe lhe ensinava, e com tal afinco lidava por aprender, que a viúva, — ao menos nessa parte, — sentia-se venturosa. Hás de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expressão de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo à aplicação.

A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infância, — mas solitária, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos próprios da idade, infantilmente alegre, — mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de mãe, tão fundo lhe doía aquele viver, — a mãe sentia às vezes pularem-lhe as lágrimas dos olhos fora. A filha não as via, porque ela sabia escondê-las; mas adivinhava-as através da tristeza que lhe ficava no rosto. Só não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mágoas de sua mãe, para lhe descair também a alegria.

Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viúva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espírito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a princípio intermitente e rara, depois freqüente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso efeito daquela vida solitária e austera, que já lhe ia afeiçoando a alma e como que apurando as forças para as pugnas da vida?

A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecer-lhe diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre as árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as jóias que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memória o quadro que passara.

A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica, sem nada explicar à solícita curiosidade da mãe. Que explicaria ela, se mal podia compreender a impressão que as coisas lhe deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com aquilo, Guiomar domou o próprio espírito e fez-se tão jovial como nos melhores dias.

Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos seus anos. Com ela, a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo lhe permitiu desenvolver os primeiros elementos.

Aos treze anos ficou órfã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ela verdadeiramente pôde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. Já então a madrinha a fizera entrar para um colégio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita coisa mais.

Vivia ainda então a filha da baronesa, uma interessante criança de treze anos, que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha; a idade quase igual das duas meninas, a afeição que as ligava, a beleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituais que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O afeto era espontâneo; o encarecimento é que seria voluntário.

Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de Estevão, onde pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar manifestara então o desejo de ser professora.

— Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta aspiração.

— Como assim? perguntou a madrinha.

— Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão.

Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. O rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.

— Guiomar! exclamou a baronesa.

— Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.

A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, — assentimento de boca, a que já o coração não respondia, e que o destino devia mudar.

Pouco tempo depois padeceu a baronesa o golpe quase mortal a que aludiu no capítulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quase levou a mãe à sepultura.

A afeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém mostrou sentir mais do que ela a morte de Henriqueta, ninguém consolou tão dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus anos; todavia revelou ela a posse de uma alma igualmente terna e enérgica, afetuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catástrofe abatera a própria Mrs. Oswald.

O coração da pobre mãe ficara tão vazio, e a vida lhe pareceu tão agra e deserta sem a filha, que ela morreria talvez de saudade, se não fora a presença de Guiomar. Nenhuma outra criatura poderia preencher, como esta, o lugar de Henriqueta. Guiomar era já meia filha da baronesa; as circunstâncias, não menos que o coração, tinham-nas destinado uma para a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para sua casa.

— Você será a filha que eu perdi; ela não me amou mais, nem eu já agora teria outra consolação.

— Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos.

A baronesa estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e pôs-lhe a cabeça no regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lha ternamente, com os olhos naquela filha que os sucessos lhe haviam dado, e o pensamento no Céu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si.

Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, graças à nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e não breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar pôs todo o seu esforço em reproduzir pelo mesmo teor os hábitos de outro tempo, de maneira que a baronesa mal pudesse sentir a ausência da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu, e se algum ponto os alterou foi para aumentar-lhe novos. Esta intenção não escapou ao espírito da baronesa, e é supérfluo dizer que deste modo os vínculos do afeto mais se apertaram entre ambas.

Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a moça, não menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que entrara. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra, — melhor diremos, começá-la. Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moça, a origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.