A mão e a luva/XIII

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Luís Alves compreendera toda a expressão dos olhos de Guiomar; era, porém, homem frio, resoluto. Inclinou o busto com toda a graça correta e de bom-tom, e disse-lhe na voz mais branda que lhe permitia o seu órgão forte e severo:

— Parece-lhe que fui um pouco audaz, não é? Fui apenas sincero; e ainda que a sua delicadeza me condene, estou certo de que há em seu coração misericórdia de sobra...

Guiomar tinha readquirido toda a posse de si mesma.

— Está enganado, disse ela, não o condeno, pela simples razão de que não o entendi.

— Tanto melhor, redargüiu Luís Alves sem pestanejar; o meu delito nesse caso não passou da esfera da intenção.

— Mas... referia-se à viagem?

— Referia-me; perguntava quando iam.

Esta presença de espírito de Luís Alves ia muito com o gênio de Guiomar; era um laço de simpatia. A moça respondeu que o comendador viria buscá-las daí a quinze ou vinte dias.

— Três meses apenas? perguntou o advogado.

— Três ou quatro.

— Quatro meses não é a eternidade, mas Cantagalo, para uma carioca da gema, há de ser um degredo, ou quase... Oxalá, — continuou Luís Alves, concluindo mais depressa do que queria, ao ver que Jorge se aproximava da janela, — oxalá não lhe faça esse exílio esquecer o que solenemente lhe digo neste momento: que a senhora tem uma alma grande e nobre, e que eu a admiro!

Jorge chegara; a conversa tinha de acabar ou tomar diferente rumo.

As últimas palavras de Luís Alves eram singularmente dispostas para deixar sulco profundo na memória da moça. Não era uma declaração de amor, nem uma cortesania de sala, coisas todas que ela ouvira muita vez, que podiam lisonjeá-la, e decerto a lisonjeavam; era mais que um cumprimento e não chegava a ser uma declaração. Comoção, não a havia na voz do advogado; firmeza, sim, e um ar de convicção profunda. Guiomar olhou para ele quase sem dar pela presença de Jorge; mas Luís Alves voltara-se para o recém-chegado e falava-lhe em tom jovial, bem diferente daquele que empregara pouco antes.

Se esse contraste era premeditado, — não sei se o era, — não podia vir mais de feição ao espírito de Guiomar. De quantos homens a moça tratara até ali, era o primeiro que lhe inspirava curiosidade, e também, naquela ocasião, a primeira pessoa que se compadecia dela. Veja o leitor: — curiosidade e gratidão; — veja se há duas asas mais próprias para arrojar uma alma no seio de outra alma, — ou de um abismo, que é às vezes a mesma coisa.

Eu disse — compadecia — e esta só palavra, desacompanhada de outra coisa, pode fazer crer ao leitor que, durante aqueles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar uma criatura desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma anteriormente à carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ela a recebeu, situação, decerto, assaz sombria e carregada para um coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem angustiosa.

A baronesa, se soubera dos fatos, ou se pudera ler na alma da moça, seria a primeira a dar-lhe todas as consolações. Mas não sabia. Seu desejo, — ou antes o sonho da velhice, como ela dizia num dos anteriores capítulos, — era deixar felizes a afilhada e o sobrinho, e entendia que o melhor meio de os deixar felizes era casá-los um com o outro. A notícia que tinha do coração da moça, a este respeito, era incompleta ou inexata; pintavam-lhe como frieza o que era repugnância. Mrs. Oswald dava-lhe sempre esperanças de êxito feliz e próximo, as cóleras da moça não lhas contava nunca. Da carta de Jorge não soube, nem da cena havida na alcova. O casamento continuava a aparecer-lhe com todas as probabilidades de uma esperança realizável.

Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baronesa não são os da leitora; ela só lhe via o lado bom, — que era realmente bom, — ainda que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via nem podia ver-lhe a frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto que se lhe gerava no coração.

Jorge era o seu único parente de sangue, — filho de uma irmã que vivera infeliz e mais infelizmente morrera, não repudiada, mas aborrecida do marido, circunstância que lhe tornava caro aquele moço. Mais do que a afilhada, não; nem tanto, decerto; o coração não chegaria para dividir-se igualmente em tão grandes porções; queria-lhe, porém, muito, quanto bastava para desejá-lo feliz, e trabalhar por fazê-lo. Acrescentemos que o destino da irmã sempre lhe estava presente ao espírito, e que ela receava igual sorte a Guiomar; em Jorge parecia-lhe ver todos os dotes necessários para torná-la venturosa.

Infelizmente, Mrs. Oswald, sabedora daqueles secretos desejos e mais ou menos confidente dos sentimentos de Jorge, achara azada ocasião esta para patentear toda a gratidão de que estava possuída e a profunda amizade que a ligava à família da baronesa. Interpôs-se para servir aos outros, e mais ainda a si própria. Viu a dificuldade, mas não desanimou; era preciso armar ao reconhecimento da baronesa. Por isso não hesitou em confiar a Guiomar o desejo da madrinha, exagerando-o, entretanto, — porque nunca a baronesa dissera que "tal casamento era a sua campanha", e Mrs. Oswald atribuiu-lhe esta frase mortal para todas as esperanças e sonhos da moça. Mas, se falava demasiado ao pé de uma, era muito mais sóbria de palavras com a outra, e da exageração ou da atenuação da verdade resultara aquele perene estado de luta abafada, de receios, de indecisão e de amarguras secretas. Convém dizer, para dar o último traço ao perfil, que esta Mrs. Oswald não seguia só a voz do seu interesse pessoal, mas também o impulso do próprio gênio, amigo de pôr à prova a natural sagacidade, de tentar e levar a cabo uma destas operações delicadas e difíceis, de maneira que, se houvesse uma diplomacia doméstica, — ou se se criassem cargos para ela, Mrs. Oswald podia contar com um lugar de embaixatriz.

Vindo agora à narração dos sucessos da história, cumpre que o leitor saiba, que a carta de Jorge não teve resposta escrita nem verbal. No dia seguinte ao da entrega, foi ele jantar a Botafogo; mas Guiomar não saíra do quarto, a pretexto de uma dor de cabeça; a baronesa passou o dia com ela; Jorge apenas conseguiu saber, quando de lá saiu, que a moça ia melhor. Nos subseqüentes dias nenhuma resposta foi às mãos do pretendente, nem ele conseguiu haver uns cinco minutos de conversa solitária com a moça; Guiomar esquivava-se sempre, com aquela arte suma da mulher que aborrece, e que é nem mais nem menos igual à da mulher que ama.

Um dia, porém, não houve meio de fugir; e Jorge, que não tinha nenhuma comoção na voz, porque não tinha muita no coração, olhou para ela com olhos direitos e francamente lhe pediu uma palavra de esperança ou de desengano. A moça hesitou alguns segundos; contudo era preciso responder. Venceu a repugnância dizendo-lhe com um frio sorriso:

— Nem uma nem outra coisa.

— Nem desengano? perguntou Jorge alvoroçado.

— Ninguém pode dar nem uma coisa nem outra, disse ela; costumamos aceitá-las do nosso destino.

Não era responder, como vê o leitor; Jorge ia pedir uma decisão mais transparente, mas a moça aproveitara-se da primeira impressão e esquivara-se. Quando ele recobrou a voz não viu mais que a fímbria do vestido, que se perdia na volta de uma porta.

Guiomar encurtou as rédeas à familiaridade que existia entre ela e Jorge; mas, se o tratava com mais reserva, não o fazia com sequidão nem frieza, nem deixava de ser polida e afável. A dignidade natural que havia em toda a sua pessoa servia-lhe, além disso, como de uma torre de marfim, onde ela se acastelava e mantinha em respeito o pretendente.

Dos dois homens que lhe queriam, nenhum lhe falava à alma; ela sentia que Estevão pertencia à falange dos tíbios, Jorge à tribo dos incapazes, duas classes de homens que não tinham com ela nenhuma afinidade eletiva. Não igualava, decerto, os dois pretendentes; um era simplesmente trivial, outro sentimental apenas; mas nenhum deles capaz de criar por si só o seu destino. Se os não igualava, também os não via com os mesmos olhos; Jorge causava-lhe tédio, era um Diógenes de espécie nova; através da capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Estevão inspirava-lhe mais algum respeito; era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá. O sentimento de Guiomar em relação a Estevão não podia nunca chegar ao amor; tinha muito de superioridade e perdão.

Com outra índole, aspirações diferentes e vivida em diversa esfera, amá-lo-ia com certeza, do mesmo modo que ele a amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a desviar dos gozos puramente íntimos. Pedia amor, mas não o quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da Terra seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num ermo. Criança, iam-lhe os olhos com as sedas e as jóias das mulheres que via na chácara contígua ao pobre quintal de sua mãe; moça, iam-lhe do mesmo modo com o espetáculo brilhante das grandezas sociais. Ela queria um homem que, ao pé de um coração juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos. Voluntariamente, só uma vez aceitara a obscuridade e a mediania; foi quando se propôs a seguir o ofício de ensinar; mas é preciso dizer que ela contava com a ternura da baronesa.