Ao Correr da Pena/I/IX

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Rio, 5 de novembro

Lacrimae rerum...

A religião, essa sublime epopéia do coração humano, tem um símbolo para cada sentimento, uma imagem para todos os acidentes da nossa existência.

É aos pés do altar que o homem vê abrir-se para ele a fonte de todas as supremas venturas deste mundo - a família; e, quando o sopro da desgraça vai desfolhando uma a uma as flores da vida, é ainda aos pés do altar que achamos o consolo para as grandes dores, a esperança nos maiores infortúnios.

É que nesta breve romaria que fazemos pelo mundo, a religião nos acompanha como esses guias mudos do deserto, apontando-nos umas vezes o nada de onde partimos, outras a eternidade para onde caminhamos, e mostrando-nos a espaços com um aceno a linha negra que prognostica o simoun, ou os rastos dos animais que anunciam o oásis no meio das vastas sáfaras de areia.

Quantas vezes no seio das alegrias e dos prazeres, quando nossos olhos vêem tudo cor-de-rosa, quando o ar que respiramos parece vir perfumado dos bafejos da ventura, não sentimos de chofre o coração apertar-se como tomado por um doloroso pressentimento, e a alma confranger-se numa angústia pungente?

O deslumbramento passa rápido como o pensamento que o produziu. Mas dir-se-ia que o coração, comprimindo-se, como que vertera na taça do prazer uma gota de fel, e que entre o rumor da festa e os sons alegres da música, viera ferir-nos os ouvidos um eco surdo das lamentações de Jô: Memento quia pulvis est!...

Também às vezes a fortuna nos embala docemente, e a ambição nos empresta suas asas de ouro, ao passo que a glória envolve-nos com a sua auréola brilhante. Então o homem caminha com os olhos fitos na sua estrela, e com a cabeça alta passa sem perceber as misérias do mundo. Sublimi feriam sidera vértice.

Mas lá vem um dia, uma hora, um instante em que o corpo verga com o peso de tanta grandeza, e a cabeça acurva-se para a terra. Os olhos que mediam o espaço vacilam; a vista que se dilatava pelos horizontes e ousava sondar os arcanos do futuro quebra-se de encontro a uma lousa, a um fosso, onde a pá do coveiro traçou num estreito quadrado e com um pouco de terra revolvida o emblema daquela sentença do Eclesiástico: Vanitas vanitatum et omnia vanitas!

Se, porém a religião é severa nos seus conselhos, se durante os dias de paz e de ventura fortifica o homem por meio da tristeza, na dor ao contrário é de uma bondade inefável.

Nem uma fibra palpita no corpo humano, nem uma pulsação abala o coração, nem um soluço arqueja num peito quebrado pelo sofrimento, que não ache nela um eco, uma voz que lhe responda.

Nesse grande livro da fé e da esperança, neste sublime diálogo entre Deus e o homem, todas as lágrimas têm uma palavra, todos os gemidos têm uma frase, todas as dores uma prece, todos os infortúnios uma história.

A vida humana se resume na religião; nela se acha a essência de todos os grandes sentimentos do homem e de todas as grandes coisas do mundo.

Tem a severidade e o respeito que inspira a paternidade, e ao mesmo tempo todos os zelos da maternidade. Aconselha como um pai, quando fala pelos lábios do sacerdote; é a mãe que se multiplica para seus filhos, quando abriga no seu seio todos os infelizes.

Mas, quando se folheia este livro da vida, e que se chega à última página - à morte - quando a alma, em face do nada sente-se tomada desta grande e assombrosa ameaça do completo aniquilamento, é que se sente quanto há de consolador na religião.

Entre as sombras da dúvida, entre o vago do infinito, a eternidade surge para nossa alma como uma dessas estrelas furtivas que brilham entre o Cris negro da tempestade, e que guiam o nauta perdido na vasta amplidão dos mares.

Se queres ler a legenda desta crença sublime de todos os povos e de todos os tempos, ide no dia 2 de novembro, dia que a igreja destinou à comemoração dos finados, fazer uma visita aos nossos cemitérios.

Haveis de sentir calar-vos dentro d'alma um eflúvio consolador, quando alguma s flores misturadas de lágrimas e de preces.

Este aspecto de uma multidão forte e cheia de vida prostrada ante as cinzas de alguns mortos não exprime alguma coisa de misterioso, alguma coisa de incompreensível, que decerto se prende a esse religioso culto dos túmulos sempre venerado por todos os povos?

Para que o homem venha assim cada ano avivar uma dor quase extinta, e ver refletir-se na lousa da campa os transes acerbos de uma triste provança já acalmada pelo correr dos tempos, é necessário a força irresistível da verdade revelada pelos impulsos do coração.

Sem isto, não é possível compreender-se o respeito que votamos aos mortos, nem essa melancólica poesia da saudade que inspira a religião dos túmulos.

Se nestas campas que há anos se abriram para receber um corpo houvesse apenas um pouco de terra e alguns vermes, o homem que se prostasse em face delas não cometeria uma profanação? Ajoelhando à beira da lousa e sangrando um culto ao pó, não rebaixaríamos a dignidade de um ser moral, escravizando a razão à matéria, a vida ao nada? Se outra coisa mais forte do que a recordação não nos impelisse a estes espetáculos de luto e de tristeza, não daríamos uma mesquinha idéia da natureza humana?

É verdade; mas os restos dos mortos encerram de envolta com as recordações deste mundo as esperanças de outra vida. É por isso que no meio das preces, e das lágrimas e flores que vem depor ao pé da campa a mão amiga, a cruz singela se ergue como o símbolo da fé e da religião. Os nossos cemitérios, criados há bem pouco tempo, ainda não apresentam este aspecto grave e imponente que ressumbra ordinariamente no campo dos mortos

Ainda não há aí essas longas e sombrias alamedas de árvores, essas bancadas de relva onde se destaca uma lousa branca, nem esses ciprestes e chorões plantados à beira de uma sepultura simbolizando no seu aspecto triste e melancólico a oração que se eleva ao céu, ou as lágrimas que se desfiam a tombar sobre a terra.

A nudez do campo quase despido de árvores, o desabrigo das lousas sobre cujas pedras brancas o sol bate constantemente, punge o coração, e como que torna acre e acerba aquela mágoa da saudade, que a religião repassa de tanta doçura e de tanto alívio. Naquelas quadras descampadas a morte não tem sombra, a dor não tem ecos e a religião não tem mistérios.

Entretanto este ano, cumpre dizer em honra do espírito religioso da nossa população, empregaram-se todos os esforços para fazer desaparecer aquele aspecto de nudez, e a romaria foi talvez mais numerosa do que nos anos anteriores.

O cemitério de São João Batista sobretudo estava preparado da melhor maneira possível; e, além do arranjo devido aos esforços do administrador, podia-se admirar alguns monumentos funerários de uma singeleza e de um gosto perfeito.

Sinto que não me seja possível copiar aqui algumas inscrições, cheias dessa simplicidade e dessa unção que respira uma dor verdadeiramente sentida; mas vós que lá fostes deveis tê-las lido, embora uma mão desconhecida não houvesse aí gravado aquele epitáfio antigo: Sta viator!

II

Não sei que poeta disse que a vida é um contraste. Pindaro chamou-a o sonho de uma sombra, e Byron comparou-a a uma estrela, que ora desliza docemente entre o azul do céu, ora vacila entre as nuvens escuras da borrasca.

Para mim, que não sou poeta, e que por conseguinte não aspiro à metafísica do sentimento e das imagens, se tivesse de comparar a vida a alguma coisa, seria a um buquê, do qual cada flor simbolizaria um ano, um dia ou uma hora da nossa vida.

Assim umas flores morrem ceifadas pelo ferro ou pisadas ao chão, outras murcham lentamente ao tépido contato de um seio acetinado. Umas são desprezadas e secas por lágrimas de despeito, ou depositadas numa campa como pia oferenda, outras passam de uma mão à outra mão amiga, e vem embelezar-nos alguns momentos de cisma.

De qualquer modo que se compare a vida, o que é certo é que a vida, o que é certo é que a semana que findou foi uma pequena miniatura do grande quadro da existência humana.

O dia 2 de novembro forma a sombra da tela; os claros foram lançados aqui e ali, uns mais brilhantes, outros mais desvanecidos pelo acaso, que é um grande pintor de quadros históricos.

A segunda-feira foi um dia de decepção, porque não só faltou-nos o benefício da Charton, como o espetáculo anunci ado em substituição, que não teve lugar, segundo dizem, por moléstia do Gentili.

Em compensação tivemos na terça um baile do Cassino. Caso a comparação de Byron sobre a vida humana seja exata, creio que nesta noite, se para alguns as horas correram deliciosamente, para outros nem o céu esteve azul, nem luziu a estrela (de Byron, está entendido). Provavelmente as nuvens encobriram-na.

Para outros que preferem a comparação do poeta grego, a vida foi durante essas horas não o sonho de uma sombra, mas a sombra de um nome ou de uma letra.

Estão já os leitores curiosos por saber que nome e que letra era esta que me incomodava tão seriamente, a ponto de fazer-me sonhar com ela no meio de um baile. O nome não lhes direi, mas a letra é um - C.

Este - C - memorável, com que se escreve aceio, e que eu apesar do amor que lhe consagro tive a desgraçada lembrança de substituir por dois - SS - valeu-me um quinau em ortografia dado pelo colega do Velho Brasil, que não deixa passar camarão pela malha.

Esquecia-me, porém, dizer que podem saltar este artigo, que não vale a pena de ser lido. Como é um claro do quadro da semana, acho razoável que o passem em claro.

Asseguro-lhes que nada perderão com isto, porque neste artigo não se trata de coisa séria e grande. Prometi uma vez vestir o folhetim de casaca preta e gravata branca, e tiveram logo a impiedade de chamá-lo monstro! Portanto agora, quando me vier a idéia trajar mais curialmente o meu folhetim, há de ser de casaca parda com botões amarelos e calças de ganga, como costuma sair na semana e especialmente no domingo um colega contemporâneo.

III

Estamos quase no fim do quadro. - Faz uma bela noite, a lua passe so mbra das árvores completam a vista.

Dois vultos, um amante infeliz e uma moça em desespero - um condenado e uma louca - ocupam o meio da cena. Caco trecho de música de Bellini, cantado pela Charton, que nesta fazia o seu benefício.

Todos esperavam ansiosos esta festa musical dada pela cantora predileta do público, e às oito horas a creme dos dilettanti desta corte enchia o salão com as suas pessoas, e com uma quantidade enorme de flores e versos, que oportunamente surgiram de dentro dos bolsos e dos lenços, e inundaram o teatro.

Ergueu-se o pano, e começou o coro da alvorada. De repente mudou-se a vista, e a platéia estremeceu com uma salva tríplice de aplausos quase unânimes, que anunciaram a entrada da cantora.

Vinha trajada de azul, da mais bela cor que a natureza criou para cobrir as coisas lindas deste mundo, - as montanhas, o céu, o mar, e enfim as moças bonitinhas e alvas como o lírio, que não podem deixar de compreender que o azul foi feito para moldurar o branco.

A Charton disse admiravelmente a ária do segundo ato, e, apesar de todos os contratempos que sobrevieram, teve o poder de fazer da noite de seu benefício um completo triunfo.

Algumas cenas desagradáveis tiveram lugar esta noite; porém a imprudência que as motivou foi suficiente,mente castigada, não só pela manifestação pública, como pela energia da polícia, que conseguiu reprimir muitos abusos. À sua atividade devemos ter-se evitado um fato, que calamos por vergonhoso, e que talvez produzisse conseqüências bem tristes pela exacerbação a que tinham sido levados os ânimos.

Ao terminar o espetáculo, a orquestra do teatro, executando várias músicas, conduziu triunfalmente à sua casa a Charton, que seguiu a pé no meio de um concurso de mais de quatrocentos dilettanti , entre os quais se contavam pessoas muito decentes, que o entusiasmo impelira a dar essa subida prova de diletantismo.

Eu, apesar de muito entusiasmado, retirei-me prosaicamente de carro, envergonhadíssimo de que a música não tivesse o poder de obrigar-me a andar mais de uma léguaa pé.