As Pupilas do Senhor Reitor/XIII

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Ao chegar a um largo todo plantado de sobreiros, quase seculares, que havia no centro da aldeia, ainda o bom do pároco levava as algibeiras bem fornecidas.

A tarde aproximava-se do fim, estendiam-se já as sombras muito mais para o oriente, e coloriam-se de vermelho afogueado as vidraças voltadas ao ocaso.

O reitor encaminhou-se para uma das casas de mais miserável aparência que havia naquele lugar.

— Terminemos por este - dizia o velho consigo.

Empurrou adiante de si a porta desta casa, e ia entrar, quando deu de rosto com Margarida, que saia.

Os olhos vermelhos da sua pupila, a expressão de dor que trazia no semblante, chamaram a atenção do reitor.

— O que tens, Margarida? - perguntou ele, como solicitude - Esses olhos são de quem chorou.

— É que me despedaça o coração ouvi-lo.

— Então está mais doente?

— Está muito mal.

— E onde ias tu?

— A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios...

— Que não vá arruinar-se o homem. Deixa que tem de me ouvir. É pior que o pior dos seus cáusticos. Porém, não tem dúvida, que eu venho bem provido. Entra, mas antes alegra-me este rosto. Vamos.

E os dois entraram na sala. O interior da casa não contradizia o aspecto de fora.

Era a casa de um pobre.

Com a cabeça encostada nas mãos e os cotovelos apoiados na mesa, estava um homem escanecido e pálido - tão absorto, que nem deu pela chagada do reitor, o qual se aproximou dele lentamente.

Este homem era o infeliz que servia de mestre a Margarida.

O pároco ficou por algum tempo a observá-lo em silêncio; vendo porém que não era sentido, dirigiu-lhe a palavra.

— Que grande dormir é esse, Sr. Álvaro, que nem dá pela chegada de um amigo?

O velho levantou finalmente a cabeça como sobressaltado por aquela voz.

— Ah! é o Sr. Reitor? Não dormia, não ...

— Então?

— Pensava.

— Em quê?

— Em quê? E falta-me em que pensar? Na minha vida passada e na futura, que está próxima já.

— O passado - disse o reitor, sentando-se do outro lado da mesa e sem desviar os olhos do velho Álvaro - é um sonho, que se sonhou. E quando dele, felizmente, não ficaram remorsos, que peçam reparações, arrependimentos ou... penitências, perde-se muito tempo a pensar nele assim. Da vida futura... bom é ter nela sempre o pensamento, decerto; mas quem sabe lá quando nos está próxima?

— Sei-o eu. Há dois dias que me sinto fraco, muito fraco. Nem já pude sair para, como costumava, ir ver o pôr-do-sol lá acima dos degraus da capela do Calvário.

— Isso lá... todos nós temos dessas fraquezas, sem causa. Há dias assim. E então desanima por isso?

— Desanimar! - replicou o velho, sorrindo tristemente - E que ânimo tenho ainda para perder? Há muito que ele me falta na vida. Bem vê - continuou apontando para Margarida - que tenho precisado de um braço para me sustentar.

— Grande ânimo tem o que sai das grandes provações com a cabeça levantada. Para que se faz de cobarde diante de quem lhe conhece e admira a coragem? A Cristo, também houve uma mulher que lhe limpou o suor da fronte vergada; e mais era um ânimo divino, aquele.

— Não, eu não sou forte - continuou o velho doente - Colocado, como estou, entre a morte e a vida, receio-me de ambas. desfalece-me o alento diante das provações continuadas de uma; assusta-me a incerteza, o desconhecimento da outra. O meu coração é muito da terra, para poder ser forte. Os meus olhos ainda não se secaram para as lágrimas...

— Bem aventurados os que choram! - redargüiu o reitor.

— Como me há de sustentar a vida, se há muito que, onde busco a consolação, encontro só o desespero? - continuou o enfermo - Ao findar o dia, gostava eu de me ir sentar lá fora, a ver descer o sol; mas, dentro em pouco tempo, tomava-me de uma tristeza profunda e rompia em lágrimas, que não podia estancar. Aquele descimento do sol lembrava-me outros ocasos. Eu tenho visto tantos! um dia, em volta de mim, apagaram-se os esplendores da riqueza. O meu coração era de homem... padece: mas Deus sabe que não foi para ele esta a prova mais terrível. Outro dia apagou-se a luz da vida no olhar da esposa adorada; outro, nos rostos de duas crianças inocentes, que, ainda a morrer, me sorriem; então sim, fez-se noite em minha alma... Era isto que me recordavam aqueles ocasos.

— Mas então para que procurava essas ocasiões de tristeza, diga? - perguntou Margarida com afabilidade e quase sorrindo. - Olhe, se às mesmas horas se voltasse para o outro lado, para aquele onde o sol nunca vai se esconder, nem as estrelas, havia muitas vezes de avistar a lua que subia, a lua que não deixava que a sua noite fosse escura de todo. Também ela o afligiria assim?

— Também ela. As vezes a vi. Lembrava-me então que, para mim igualmente, ao apagarem-se as mais ardentes afeições do meu coração, nasceu a luz do teu afeto, melancólica e suave como a dela, Margarida; entristecia-me com a lembrança.

— Por que? - perguntou Margarida.

— Porque tentando descobrir a força misteriosa que te aproximava da minha desventurada velhice, a ti, a quem, pela idade, só alegrias deviam atrair, encontrava apenas a explicá-la a tristeza dessa alma, tristeza que é o segredo do teu coração, que a ninguém revelas, e que Deus queira que não acabe por te devorar um dia.

Margarida desviou os olhos da vista fixa e penetrante do velho, e respondeu, fingindo sorrir.

— Pois então, dessa vez, meu bom amigo, era bem sem razão que se entristecia.

— Prouvera a Deus que o fosse... que o seja. Mas, bem vêem, havia em mim muita amargura, para me ser suportável a vida. Se o pavor nos está nos lábios, não há doçura de mel que o disfarce. Vergava pois o peso da existência. Pedia fervorosamente a Deus que me tirasse deste martírio, e era sincera a prece, era! Persuadi-me eu que, ao ouvir bater a minha última hora, a saudaria com júbilo; e agora que bem sinto que chegou... e chamam-me forte ainda! agora ou ouvi-la, assusto-me, estremeço... Está próximo a revelar-se o mistério... e que segredos me descobrirá? Que verá minha alma ao rasgar-se a nuvem que caminha diante dela? Que verá minha alma depois do túmulo? Que verá minha alma no dia de amanhã?

— A glória eterna, a bem aventurança do Céu - respondeu o reitor com a firme convicção da fé.

O velho Álvaro fitou nele um olhar demorado e perscrutador, e depois, escondendo o rosto entre as mãos, exclamou quase soluçando:

— Senhor! Senhor! por que me negais o bálsamo de uma crença como esta!

O reitor contemplava com olhos de piedade. Para a sua alma, ingênua e sinceramente cristã, era desconhecida e quase inconcebível esta excitação febril, a que certa ordem de meditações arrebata alguns espíritos ilustrados. A dúvida, esse demônio inquietador, nunca dirigira às suas crenças piedosas a interrogação fria e implacável, que as faz estremecer. Elas protegiam-lhe ainda, como dantes, a cabeceira do leito contra os maus sonhos dos filósofos, e, alumiado pela sua luz, achava-se também o bondoso pároco no fim da viagem da vida, sem se lembrar de perguntar a que porto chegaria. Sabia-o de pequeno; desde então lhe repetia o nome de contínuo. Como que já aspirava as auras desses país e às vezes quase se iludia a ponto de o julgar entrever. Era feliz na sua fé.

Contudo o reitor era destes homens que têm coração para se compadecer de todos os infortúnios, daqueles mesmos que a sua inteligência não compreende bem.

A solicitude, com que se aproximava dos infelizes, não podia comparar-se à do médico, que procura sondar e conhecer o mal, para o debelar apropriadamente; era antes como a da mãe, que responde a todos os gritos do filho estremecido com beijos e lágrimas, e, se não cura assim a causa da dor, porque a desconhece mitiga-a, por as simpatias que revela.

As palavras cheias de resignação cristã, que o reitor dirigiu ao atribulado enfermo, serenaram a este um pouco as amarguras do espírito, que o espinho da dúvida pungia; e foi com verdadeira gratidão, que apertou as mãos do padre, quando este se preparava para retirar-se.

Uma das razões, que o levaram a resumir sua visita, foi o parecer-lhe ter ouvido o rumor de altercação um pouco viva, travada à porta da casa, entre Margarida, que momentos antes deixara a sala, e outra pessoa, cuja voz parecia vir da rua.

Ao aproximar-se, o reitor percebeu melhor que sua pupila falava em tom suplicante, e o interlocutor, se não com aspereza, com menos cordura, do que o pároco desejaria. Isto obrigou-o a apressar o passo.

— Mas, por amor de Deus, fale mais baixo que não vá ele ouvir. Eu lhe prometo que tudo se lhe pagará - dizia Margarida, quando o reitor chegava junto deles.

— Que é? - perguntou este com modo desabrido, saindo para a rua e fechando atrás de si as portas da casa.

O personagem que falava com Margarida baixou logo de tom ao reconhecer o reitor, e respondeu com certa timidez:

— Era uma continha que trazia; mas uma vez que aqui a menina se responsabiliza... Eu sou o senhorio. Sim, porque V.S.ª bem vê que se eu estivesse no seu caso de poder fazer esmola de boa vontade...

— Quem lhas pede? - disse asperamente o velho padre, tomando o papel das mãos do credor, que falara assim. - Para pagar aos vampiros como você, é que se pedem esmolas aos outros; aos que tem coração. Aluguer de dois meses - Olham a grande coisa! Então é o que se lhe deve? Ai tem - acrescentou, contando-lhe o dinheiro. - Não repare o ir quase todo em cobre; mas é dinheiro de esmolas, e poucas se realizam em prata cá na terra.

— Mas, Sr. Reitor, eu não exijo de V.S.ª... eu confio...

— Leve isso daqui, homem! e saia você também que me está inquietando o espírito.

O senhorio foi embolsando o dinheiro, insignificante preço de dois meses de aluguer daquele miserável casebre, e retirou-se com uma alegria profunda.

— Restam cento e dez - disse o pároco, vendo o dinheiro que lhe ficara. - Chegará para os remédios? - perguntou olhando para Margarida.

Esta fez um gesto de dúvida.

— Nesse caso, eu vou falar com o boticário, que não é mau sujeito afinal, e hei de resolvê-lo esperar até amanhã; E de caminho, irei também visitar o filho e José das Dornas, que deve já ter chegado.

Estas últimas palavras não foram escutadas com indiferença por Margarida.

— O Sr... Daniel chega hoje? - perguntou ela.

— Pelo menos o pai espera-o.

E acrescentou como para consigo

— Agora para aí vem estabelecer-se o rapaz. Deus queira que ele sossegue aquela cabeça, que, segundo me informam, não tem sido lá das mais assentes. Vai tu para casa também, Margarida. O teu mestre fica mais sossegado e espero que dormirá.

O que é preciso é mandar recado ao João da Semana que o venha ver. Acho-o muito abatido e mudado nos modos. Aquilo não está bom. não. Adeus. Eu vou avisar a Maria do Caleiro que venha tratar do doente. É uma esmola que se faz também à pobre mulher.

E o reitor saiu para realizar estes diversos intentos; Margarida, depois de se despedir do seu velho mestre, que de fato parecia mais sossegado, partiu também para casa.

Entre os pensamentos que a dominavam na volta, um dos mais persistentes era o que a anunciada vinda de Daniel lhe sugerira; e contudo nada de extraordinário havia no fato. Se quiséssemos dizer quanto lhe ocorria a este respeito, ver-nos-íamos embaraçados. São tão vagas, tão difíceis de apreender, as idéias que evocam em nós a lembrança de uma pessoa querida!