Através do Brasil/III

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III. A VELHA AFRICANA

De espaço a espaço, o trem diminuía a marcha, e parava numa estação onde ficava durante alguns minutos. Havia uma lufa-lufa de passageiros que entravam e saiam, despedidas ruidosas entre os que ficavam e os que partiam; carregavam-se e descarregavam-se bagagens; e o comboio seguia de novo, correndo pelo leito da estrada, entre barrancos e matos verdes.

Ao meio dia, chegou o trem a Palmares. Aí houve baldeação: os viajantes passaram-se todos para os carros de uma outra estrada de ferro, e a viagem continuou. Agora ia a linha beirando um rio. Da janela do trem, Alfredo, via-o e admirava-o. Em certos pontos, as águas muito claras, batidas de sol, corriam encachoeiradas, entre pedra, bordorinhando e espumando; além, fluíam mansamente, e o leito do rio alargava-se, formando pequenas enseadas; e, de espaço em espaço, via-se uma ilha coberta de verdura, ou uma ilhota seca, de pedra, onde a água batia raivosa. Aqui, as margens eram altas, cobertas de árvores frondosas; e Alfredo, de cima, via o rio lá embaixo, negro e fundo, formando um abismo temeroso. Mais adiante, as ribas tornavam-se baixas, e estendiam-se em frescas vargens cobertas de capim e de junco.

Carlos, absorvido na sua idéia fixa, a moléstia do pai, – ia calado e pensativo, com a fronte enrugada, sem olhar os aspectos da natureza; mas, Alfredo não se fartava de gozar o espetáculo. Em certa altura, o trem passou junto, quase rente de um velho casarão em ruinas, com um alpendre na frente e as paredes velhas, esburacadas e negras, quase caindo.

— Que é isto, Carlos? – perguntou o pequeno.

— Deve ser um engenho...

— e porque está assim tão feio?

— Porque é muito velho.

— E deve ser realmente muito velho! –disse Alfredo — Esta casa deve ter mais de mil anos!

— Que mil anos!? – Exclamou Carlos, rindo.

— Não tem?

— Está claro que não! não ha casa no Brasil que tenha mil anos! pois se ha pouco mais de quatrocentos anos que o Brasil foi descoberto...

— Ah! sim! não me lembrava!

Nesse momento, reinou repentinamente a escuridão dentro do carro. Tudo ficou inteiramente negro. Com um rumor muito mais forte, a máquina ofegava na treva. Alfredo, assombrado, agarrou-se ao braço do irmão:

— Não é nada! – disse-lhe este. — estamos atravessando um túnel; sairemos já, não te assustes!

De fato, instantes depois, o trem libertava-se da escuridão; e a luz do dia irradiou outra vez, illuminando a paizagem. Dentro do carro, a atmosphera estava quasi irrespiravel, carregada de fumaça espessa. Uma pobre preta africana, já muito velha, sentada a um canto do carro, gemia e arfava, suffocada. Carlos correu para ella, e abriu a portinhola para que ella respirasse um pouco de ar fresco e puro. A velha contemplou-o com carinho, agradeceu-lhe o serviço, e instincti’vamente, num impulso de gratidão, estendeu-lhe uma das mãos, com um punhado de amendoins torrados. Carlos não acceitou o presente, mas Alfredo, com um grito de alegria, deu-se pressa em recebel-o.

— É seu irmão, yôyô? perguntou a preta.

— É!

— Para onde vão?

— Para Garanhuns.

— Ah! é a minha terra! Ainda falta muito. Carlos e a velha começaram a conversar. O menino, sempre pensando no pae, aproveitou o ensejo, que se lhe offerecia, de obter algumas informações. Mas a preta velha pouco sabia. Sabia. apenas que tinham apparecido na cidade uns engenheiros; mas já não estavam lá: andavam pelos matos, construindo uma estrada, a muitas leguas de distancia, no sertão bravo. Para chegar lá, seria preciso alugar animaes fortes, que pudessem resistir a caminhada. Carlos, ouvindo as explicações da velha, pensava tristemente que só lhe restavam cinco mil réis... Era todo o dinheiro que possuia! Como havia de fazer, com dinheiro, tão longa viagem?

A preta falava, sem interrupção, numa tagarelice infindavel, contando a historia d’aquelles lutão pouco gares, e d’aquellas gentes... Vira nascer quasi todo o povo que alli vivia... Mas Carlos não escutava o que ella lhe dizia. Olhava com tristeza o irmãozinho, que já devia sentir fome. Como o alimentaria! como o levaria comsigo, por aquelles matos a fóra? e onde iriam dormir, quando chegassem a Garanhuns)... Pensando nisso, quasi desanimava: mas o desejo de ver o pae era tão vivo, que lhe restituia a coragem. Esta página contém uma imagem. É necessário extraí-la e inserir o novo arquivo no lugar deste aviso. 

A africana continuava a falar: de vez em quando, metia a mão num pequeno sacco, e dava a Alfredo um punhado de amendoins torrados. A tarde caiu. O crepusculo entristeceu o céo. Eram seis e meia.

O trem parou na estação de Garanhuns.