Bom Crioulo/VIII

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O comandante do couraçado, bela estampa de militar fidalgo, irrepreensível e caprichoso, era o mesmo, aquele mesmo de quem, na frase tosca de Bom-crioulo, “falavam-se coisas...”

Uma lenda obscura e vaga levantara-se em torno do seu nome, transfomando-o numa espécie de Gilles de Rais menos pavoroso que o da crônica, cheio de indiferença pelo sexo feminino, e cujo ideal genésico ele ia rebuscar na própria adolescência masculina, entre os de sua classe.

Calúnia, talvez, insinuações de mau gosto.

Os marinheiros narravam entre si, por noites de luar e calmaria, quando não tinham que fazer, lendas e histórias muitas vezes forjadas ali mesmo no fio da conversa...

O comandante, diziam, não gostava de saias, era homem de gênio esquisito, sem entusiasmo pela mulher, preferindo viver a seu modo, lá com a sua gente, com os seus marinheiros...

E havia sempre uma dissimulação respeitosa, um pigarrear malici­oso, quando se falava no comandante.

Fosse como fosse, ninguém o desrespeitava, todos o queriam assim mesmo cheio de mistério, com o seu belo porte de fidalgo, manso às vezes, disciplinador intransigente, modelo dos oficiais.

Bom-Crioulo, porém, nunca o estimara verdadeiramente: olhava-o com certa desconfiança, não podia se acostumar àquela voz untuosa, àquele derretido aspecto protetoral que ele sabia fingir nos momentos de bom humor. Evitava-o como se evita um inimigo irreconciliável. Por quê? Ele próprio, Bom-Crioulo, ignorava. Repugnância instintiva, natu­ral antipatia — forças opostas que se repelem...

— Esse homem nasceu para me fazer mal, pensava o negro supers­ticiosamente.

Metido em ferros no mesmo dia do “rolo”, a imagem do coman­dante brilhou na caligem de sua embriaguez e o perseguiu toda a noite sem trégua, sem o deixar um instante, ora terrível, ameaçadora, implacável, outras vezes doce, meiga e complacente...

Dormiu essa noite numa sepultura de ferro, espécie de jaula estreita e sem luz, onde só cabia um homem. Trancado ali dentro, imóvel, porque os pés e as mãos estavam presos, adormeceu quando os outros acordavam, ao primeiro toque d’alvorada, quase dia. Durante o sono viu a figura do português inchando para ele com uma faca, desafiando-o: “Vem, negro, vem, que eu te mostro!” Era um homem reforçado, em cuja roupa havia manchas de sangue — barba longa, olhar atrevido.

Iam se pegar, mas Aleixo não consentiu dizendo que a polícia vinha-os prender, que não valia a pena brigar por uma coisa à-toa... Então Bom-Crioulo, como gostava do pequeno, fugiu, deixando o português no meio de uma praça muito grande, cheia de arvoredos.

A realidade, porém, veio despertá-lo. Eram onze horas. Tinha-se aberto a porta da solitária e, mesmo em jejum, ele ia ser castigado. Faltava o comandante para se dar princípio à solenidade. Uma onda de luz banhou a prisão iluminando o rosto do marinheiro.

— Levante-se! ordenou o sargento da guarda.

Bom-Crioulo não podia se mover: foi preciso que o segurassem. Apertava-lhe a boca uma mordaça de ferro. Havia no seu olhar uma indignação muda e triste.

Ergueu-se trôpego, bambo, os olhos como duas tochas, uma equimose roxa na face, porque adormecera com a cabeça no joelho em posição de múmia indígena. Fez-lhe bem o ar livre da manhã; a luz que se esperdiçava no espaço reanimou-o; todo ele sentiu-se vibrar; oferecia-se ao castigo sem medo, impávido e sereno, odiando intimamente, lá no fundo de sua natureza humana, aquela gente que o cercava exultando, talvez, com a sua desgraça. Não tinha ninguém por ele — era um abandonado, um infeliz ....... O próprio Aleixo onde estaria?

Essa lembrança o comoveu. Sim, o Aleixo era a causa de tudo... Enquanto vivera na companhia do grumete, nunca se embriagara positivamente: bebia, de longe em longe, um golezinho de cachaça, para aquecer, e ficava satisfeito. Agora não, só se contentava com a terça e gostava de repetir. — Ah! seu Aleixo, seu Aleixo!...

Como da outra vez, na corveta, houve “mostra geral”, a guarnição inteira formou à ré, na tolda.

O castigo foi tremendo.

— Não se iluda a guarnição deste navio! perorou o comandante. Desobediência, embriaguez e pederastia são crimes de primeira ordem. Não se iludam!...

E, como da outra vez, Bom-Crioulo emudeceu profundamente sob os golpes da chibata. Apanhou calado, retorcendo-se a cada golpe na dor imensa que o cortava d’alto a baixo, como se todo ele fosse uma grande chaga aberta, viva e cruenta..... Morria-lhe na garganta um grunhido estertoroso e imperceptível, cheio de angústia, comprimido e seco; dilatavam-se-lhe os músculos da face em contrações galvânicas; o sangue, convulsionado, rugia dentro, nas artérias, no coração, no íntimo da sua natureza física, palpitante, caudaloso, numa pletora descomunal!

Ele sofria tudo com aquele orgulho selvagem de animal ferido, que se não pode vingar porque está preso, e que morre sem um gemido, com o olhar aceso em cólera impotente!

Errava na luz intensa do meio-dia uma tristeza vaga e universal. Lá de fora, da barra, vinha, encrespando a água, um arzinho fresco impregnado de maresia. A cidade, em anfiteatro, cintilava entre monta­nhas na lânguida apatia daquela hora calmosa. O vulto do couraçado, largo e imóvel no meio da baía, com o seu enorme aríete, com a sua cobertura de lona, resplandecia destacado, longe dos outros navios, longe de terra, fantástico, arquitetural!

À última chibatada, Bom-Crioulo rodou e caiu em cheio sobre o convés, porejando sangue. Ah! mas não havia no seu dorso uma nesga de pele que não fosse atingida pelo vime. Caiu fatalmente, quando já lhe não restava a menor energia no organismo, quando se tornara desumano o castigo e a dor sobrepujara a vontade.

Só então apareceu o médico, trêmulo e nervoso, dizendo que “não era nada, que não era nada; que trouxessem o vidrinho de éter e água, um pouco d’água...”

O comandante aproximou-se também, mas retirou-se logo com o seu desdenhoso aspecto de fofa nobreza: — “Não se iludam, não se iludam!”

E daí a pouco largava um escaler sem flâmula, conduzindo o marinheiro para o hospital.

— Fica-te, malvado, fica-te! exclamou Bom-Crioulo, voltando-se para o couraçado, em caminho: — Fica-te!

Aleixo nesse dia estava de folga, e muito cedo, coisa de uma ho­ra, veio a terra impelido por uma grande saudade que o fazia agora escravo da portuguesa. Receava encontrar Bom-Crioulo, ter de o suportar com os seus caprichos, com o seu bodum africano, com os seus ímpetos de touro, e esta lembrança entristecia-o como um arrependi­mento. Ficara abominando o negro, odiando-o quase, cheio de re­pugnância, cheio de nojo por aquele animal com formas de homem, que se dizia seu amigo unicamente para o gozar. Tinha pena dele, compadecia-se, porque, afinal, devia-lhe favores, mas não o estimava: nunca o estimara!

Subiu devagar, pé ante pé, a escada do sobradinho, meticuloso, agarrando-se à parede, ouvido alerta, comprimindo a respiração. —Felizmente a porta de cima estava aberta...

De vez em quando pisava em falso e os coturnos de bezerro gemiam surdamente. — Era o diabo se Bom-Crioulo estivesse...

Foi andando sempre cauteloso, té à sala de jantar. Ninguém! Enfiou pela cozinha; e, da janela que abria para o quintal, viu lá baixo, vergada sobre um montão de roupa úmida, a portuguesa em tamancos, arregaçada e sem casaco, às voltas, cantarolando. O instinto fê-la voltar-se e olhar pra cima; seu primeiro movimento foi um grito de surpresa e alegria: — Oh! o pequenino, o meu pequenino! já lá vou. Espera, sim?

Aleixo pediu silêncio, com o dedo na boca, e, indicando o sótão, perguntou, debruçando-se à janela, se Bom-Crioulo estava...

— Qual Bom-Crioulo! rompeu D. Carolina alto, sem mistério, estabanadamente. Qual Bom-Crioulo! Tua negra está só, meu peque­nino! Deixa-me enxugar esta roupinha, ouviste? Já lá vou...

Mas o grumete não se conteve: desceu ao quintal para examinar aquela fartura de mulher em trajos de lavadeira, que seus olhos viam extasiados.

Com efeito, a portuguesa estava irresistível para um adolescente nas condições de Aleixo, bisonho em aventuras dessa ordem, e cuja virilidade apenas começava a destoucar-se

D. Carolina vestia camisa e saia curta que lhe dava pelo joelhos: a cabeça estava coberta com um grande lenço de chita amarrado por baixo do pescoço.

— Não venhas, meu pequeno, disse ela percebendo as intenções de Aleixo. Olha, deixa-me acabar isto, sim?

O grumete formalizou-se: — “Oh! podia acabar, podia acabar...”

E logo, aproximando-se:

— Vim apenas vê-la de perto...

— Estás caçoando, hein! estás caçoando com a tua velha...

— Caçoando, não. Estou falando sério.

A portuguesa desatou numa risada límpida e gostosa, de uma sonoridade vibrante, sacudindo os quadris, cabeceando histericamente:

— Ora meu pimpolho! Ora o meu rico pimpolhozinho!

E ria, ria num desespero.

Aleixo encavacou:

— Está bom, vou-me embora...

— Oh! não, não... Brincadeira! Se vais, fico zangada. Vê lá, hein! vê lá...

E com fingida ternura, ameigando a voz:

— Fica, meu bonitinho, fica, junto da tua negra.....

Ele sorriu vagamente e entraram a conversar como bons amigos.

— Estiveram ali, debaixo do telheiro de zinco, um ror de tempo — o grumete sentado à beira do tanque, perna trançada, a portuguesa muito açodada na faina de concluir a lavagem.

Fora daquele pequeno espaço refrescado pela água, brilhava o sol com uma intensidade rútila e abrasadora. O capim seco do corador ardia, muito raso, muito desolado e outoniço. Na vizinhança, um papa­gaio de estima berrava estridentemente. Havia grande calma. A água da bica não cessava de cantar no tanque, escorrendo, escorrendo...

Aleixo dependurou a jaqueta de flanela azul e deixou-se ficar em camisa de meia, ouvindo cantar a água, enquanto D. Carolina ia enxaguando a roupa.

Falaram em Bom-Crioulo e riram à custa do negro, baixinho, à socapa.

— Boa criatura! sentenciou a portuguesa com um quê de ironia.

— Para o fogo! acrescentou Aleixo.

Não sabiam do “rolo”. A portuguesa disse apenas que o outro saíra na véspera, depois de meio-dia, e não regressara. — Naturalmente fora preso...

Um relógio deu horas.

— Quantas? perguntou a mulher.

— Quatro, disse o grumete.

— Jesus! Vou acabar, vou acabar! Fica pr’amanhã o resto.

— É! Basta de trabalho, isso não vai a matar, disse Aleixo erguendo-se.

E seus olhos pousaram traiçoeiramente sobre o colo nu, sobre a espádua nua de D. Carolina, cheios de desejo, ávidos de gozo.

Ela, como se sentisse no próprio corpo as ferroadas daquele olhar, como se lhe experimentasse o calor vivo, a força magnética, o poder físico, material e irresistível, chegou-se ao grumete e disse-lhe ao ouvido estas palavras, que produziram nele o efeito indizível e vago de um estremecimento nervoso. — Vamos tomar banho?...

— Aqui?

— Por que não?

— Podem ver...

— Fecha-se a porta da rua. Não tenho inquilinos agora...

Aleixo não disse que sim nem que não. Espreguiçou-se todo, contorcendo-se num espasmo incompleto, sentindo um friozinho bom, extraordinariamente bom, uma comoçãozinha maravilhosa percorrer-­lhe as fibras, descendo pelo espinhaço e espalhando-se por todo o organismo.

A portuguesa foi depressa lá cima, ao sobrado, e voltou, sem demora, com a face radiante.

Quis ela mesma despir o rapaz, tirar-lhe a camisa de meia, tirar-lhe as calças, pô-lo nu a seus olhos. Bom-Crioulo já lhe havia dito que Aleixo “tinha formas de mulher”.

Depois começou a se despir também...

O tanque estava cheio a transbordar. Via-se-lhe o fundo claro através da água límpida e fresca.

Ninguém os via naquela nudez primitiva, frente a frente — o corpo largo e mole da portuguesa em contraste com as formas ideais e rijas do efebo —, escandalosamente nus, pecadoramente bíblicos no silêncio do quintalejo ao abrigo do sol que vibrava em torno do pequeno alpendre a sua luz de ouro fulvo!

O que eles fizeram, antes e depois do banho, ninguém saberá nunca. Os muros do quintal abafaram toda essa misteriosa cena de erotismo consumada ali por trás da rua da Misericórdia num belíssimo dia de novembro.

D. Carolina realizara, enfim, o seu desejo, a sua ambição de mulher gasta: possuir um amante novo, mocinho, imberbe, com uma ponta de ingenuidade a ruborizar-lhe a face, um amante quase ideal, que fosse para ela o que um animal de estima é para seu dono — leal, sincero, dedicado té ao sacríficio.

Aleixo remoçava-a como um elixir estranho, milagrosamente afrodisíaco. Sentia-se outra depois que se metera com o pequerrucho: retesavam-se-lhe os nervos, abria-se-lhe o apetite, entrava-lhe n’alma uma extraordinária alegria de noiva em plena lua-de-mel, toda ela vi­brava numa festiva exuberância de vida, numa eclosão torrencial de feli­cidade — o corpo leve, o espírito calmo... Aleixo pertencia-lhe, enfim; era seu, completamente seu; ela o tinha agora preso como um belo pás­saro que se deixa engaiolar tinha-lhe ensinado segredinhos de amor, e ele gostara imenso, e jurara nunca mais abandoná-la, nunca mais!

O grumete, por sua vez, experimentava o que experimentaria qualquer adolescente — uma tendência fatal para a portuguesa, um forte desejo de possuí-la sempre, sempre, a toda hora, uma vontade irresistível de mordê-la, de cheirá-la, de palpá-la num frenesi de gozo, num grande ímpeto selvagem de novilho insaciável.

A tarde passou rapidamente. Depois do jantar (sopa, cozido e bananas de S. Tomé, fora o vinho fornecido pelo açougueiro) dirigiram-se à sala da frente. Aleixo quis ver o álbum de retratos; a portuguesa trouxe-lho. E sentados no velho sofá, num quase abraço — ele muito curioso, desejando saber de quem eram as fotografias, ela meio derreada, o cabelo úmido e solto, explicando minuciosamente cada figura, paisagens da Europa, trechos de Portugal e das ilhas —, esperaram a noite.

Escureceu. D. Carolina foi acender o bico de gás, queixando-se do calor, “que a sua vontade era não sair d’água, viver dentro d’água, morrer n’água, flutuando...”

Aleixo riu, achou graça, lembrando-se, talvez, da semelhança que havia entre a portuguesa e uma grande corveta bojuda...

— Ora, dize uma coisa, ó pequerrucho, tu me queres bem mesmo ou isso é uma esquisitice, uma pândega?

E risonha, sentando-se:

— Mas olha, dize a verdade! Vê lá se me vens com história...

Ele então disse que estimava-a do fundo do coração e tornou a jurar que havia de morrer junto dela, na mesma cama — juntinho, lado a lado...

— E se morreres a bordo, no mar?

— Paciência, murmurou o grumete num tom de tristeza.

Mas, arrependida, ela o cobriu de beijos:

— Não, ele não morreria no mar. Brincadeira, brincadeira...

Havia no rosto imberbe e liso do grumete uns tons fugitivos de ternura virginal, o quer que era breve e delicado, a branca melancolia de certas flores, o recolhimento ingênuo e discreto de uma educanda; e era isso justamente, era esse quê indefinível, essa poesia inocente derramada no semblante de Aleixo, que provocava a portuguesa, ferindo a corda sensível do seu coração abandonado e gasto. Era uma pena, decerto, ver aquele rosto de mulher, aquelas formas de mulher, aquela estatuazinha de mármore, entregue às mãos grosseiras de um marinheiro, de um negro..... Muita vez o pequeno fora seduzido, arrastado. Ela até fazia um benefício, uma obra de caridade... Aquilo com o outro, afinal, era uma grossa patifaria, uma bandalheira, um pecado, um crime! Se Aleixo havia de se desgraçar nas unhas do negro, era melhor que ela, uma mulher, o salvasse. Lucravam ambos: ele e ela...

Mas Aleixo não podia esquecer Bom-Crioulo. A figura do negro acompanhava-o a toda parte, a bordo e em terra, quer ele quisesse quer não, com uma insistência de remorso. Desejava odiá-lo sincerarnente, positivamente, esquecê-lo para sempre, varrê-lo da imaginação como a um pensamento mau, como a uma obsessão insólita e enervante; mas, debalde! O aspecto repreensivo do marinheiro estava gravado em seu espírito indelevelmente; a cada instante lembrava-se da musculatura rija de Bom-Crioulo, de seu gênio rancoroso e vingativo, de sua natureza extraordinária — híbrido conjunto de malvadez e tolerância —, de seus arrebatamentos, de sua tendência para o crime, e tudo isso, todas essas recordações o acovardavam, punham-lhe no sangue um calefrio de terror, um vago estremecimento de medo, qualquer coisa latente e aflitiva... Suas expansões com a portuguesa eram incompletas, vibravam-lhe os lábios em sorrisos de falsário, cada vez que ela o exaltava para deprimir o outro...

Toda a noite foi um delírio de gozo e sensualidade. D. Carolina cevou o seu hermafroditismo agudo com beijos e abraços e sucções violentas...