Bom Crioulo/X

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Mais tranqüilo agora, sem receio de que Bom-Crioulo o procurasse para uma vingança, identificado com a portuguesa, esquecido mesmo de certas coisas que o faziam tímido e medroso, Aleixo ia passando uma vida regalada, ora em terra, ora a bordo da corveta, sem outros cuidados que não os da sua rude profissão. Estava gordo, forte, sadio, muito mais homem, apesar da pouca idade que tinha, os músculos desenvolvidos como os de um acrobata, o olhar azul penetrante, o rosto largo e queimado. Em pouco tempo adquirira uma expressão admirável de robustez física, tornando-se ainda mais belo e querido. A portuguesa, essa vivia dele; amava-o, adorava-o!

Ah! era muito capaz, ela, de fazer uma loucura por causa do seu bonitinho! — Quando Aleixo vinha de bordo, nada lhe faltava naquele pobre sobradinho da rua da Misericórdia. Tudo ela guardava para o seu formoso marinheirito: eram frutas, doces, comidas especiais, quitutes à portuguesa, isso, aquilo, aquilo outro... Ela mesma batia, engomava a roupa dele com um melindroso carinho de mãe amorosa, dobrando as camisas, perfumando-as de alecrim para ele mudar quando viesse do trabalho. Como tudo mudara naquela casa depois que o negro saíra! O sótão, o misterioso sotãozinho estava abandonado, Aleixo não queria saber dele, odiava-o, porque ali é que se tinha feito escravo de Bom­-Crioulo, ali é que “tinha perdido a vergonha”. O pobre quarto era como um lugar de maldições: vivia trancado à chave, lúgubre e poeirento. D. Carolina raríssimas vezes abria-o, isso mesmo quando tinha de recolher algum traste velho, algum móvel sem préstimo. O retrato do imperador, a cama de lona, os cacaréus de Bom-Crioulo e do grumete, aquilo tudo que dantes fazia o encanto dos dois amigos tinha desaparecido. Nada restava agora daquele viver comum.

— E se o negro vem por aí um belo dia? imaginou Aleixo, receoso.

— Qual vem, qual nada! fez a portuguesa com um gesto de pro­funda convicção. Bom-Crioulo já nem se lembra de ti; anda na bilontragem; o que ele queria era te desfrutar.

E logo:

— Se vier, é a mesma coisa. Ninguém morre de careta. Diz-se-lhe que os engenheiros proibiram morar no sótão; que o teto ameaça desabar.... Inventa-se...

E os objetos de Aleixo, somente os dele, foram colocados na alcova da portuguesa, embaixo, no primeiro andar. De então em diante passaram a dormir juntos, como um casal, na mesma cama larga. E ninguém pisou mais no sotãozinho, agora transformado em depósito de móveis inúteis, coberto de pó, abrigo de insetos, ninho de ratos.

Há quase um mês que isso durava, e, longe de se aborrecer, Aleixo sentia, pelo contrário, uma inabalável e profunda afeição por D.Carolina, exigindo até que ela não recebesse mais o barbaças do açougue. Queria-a para si, unicamente para si, ou estava tudo acabado!

Ela procurou convencê-lo de que o sujeito, o Man’el era um tipão “necessário” porque lhe dava mesada, pagava o aluguel do sobrado: uma pechincha! Quanto a ser homem, ora! o “bonitinho” ficasse descansado: não havia perigo... Man’el era um pobre coitado, uma criatura sem força, um porcalhão...

Mas Aleixo indignou-se: — Não senhora, não admitia outro homem... Ela bem podia trabalhar honestamente e ganhar dinheiro para o aluguel. Não senhora: ou ele, Aleixo, ou o barbaças.

D. Carolina riu e protestou não receber mais o Man’el. Haviam de viver “honradamente”!

Aleixo ficou muito satisfeito, muito orgulhoso, muito convencido.

Mas a verdade é que, se o açougueiro não continuasse a fornecer carne e a pagar o aluguel do sobradinho, tanto ele como a portuguesa teriam renunciado àquele amor...

— Nem o Man’el sabe do bonitinho, nem o bonitinho sabe do Man’el, pensava D. Carolina.

E tudo ia marchando sem atropelos — dourada embarcação em mar de rosas.

... Vai então quando chega o bilhete do negro: — Meu querido Aleixo...

D. Carolina passou os olhos com sofreguidão, correndo logo à assinatura, e, ao deparar com o nome de Bom-Crioulo, meneou a cabeça desdenhosamente. Depois releu aquelas palavras tocadas de amor e de saudade, e ficou um ror de tempo no meio da sala, em pé, como se houvesse enlouquecido.

Seriam onze horas — uma manhã quente de dezembro, cheia de luz e de poeira.

Tinha acabado de almoçar, como de costume, o seu bife e o seu café com leite, quando bateram.

Era o bilhete do negro, do “maldito”!

Aleixo tinha ido para bordo naquela manhã e só devia regressar no outro dia. — Felizmente, meu Deus, felizmente o “bonitinho” não estava em casa, porque, então, podia se impressionar...

Passou um último olhar no papel, como se quisesse decorar o recado, e fê-lo em miuçalhas atirando os bocadinhos no caixão do cisco. — Ora, adeus! aquilo não servia para nada!

Mas ficou pensativa, cheia de um vago e misterioso pressen­timento que lhe fazia bater o coração. Assaltaram-lhe idéias horrorosas de crimes, de homicídios, de sangue; relembrava casos que tinham alvoroçado o Rio de Janeiro, casos de ciúme, de traições... Na rua do Senhor dos Passos um sargento esfaqueara uma pobre “mulher da vida”; encontrara-a com outro... A polícia correu ao lugar do sinistro, mas o assassino, como era noite, evadira-se, deixando o cadáver da rapariga crivado de golpes, rubro de sangue. Lembrava-se também de outro caso medonho; fora na rua dos Arcos: o assassino cortara a mulher em bocados como se esquarteja uma rês. O povo correra em massa para ver o espetáculo; dizia-se até que a vítima era uma espanhola de alto bordo chamada Lola.

Tudo isso vinha-lhe à imaginação desordenadamente, esfriando o seu amor, enchendo-a de receios, de um medo pueril, que era como um aviso de desgraça próxima.

Passou o dia sem fazer nada, inquieta, ora na alcova, deitada, a pensar, calculando o futuro, rememorando uma coisa ou outra, suspirando pelos bons tempos da sua mocidade, ora nos fundos da casa, indo e vindo, como tonta: — “que não se podia com o calor de dezembro, uf!...”

Ficou muito admirada quando ouviu bater duas horas: — Ainda! Jesus, que dia longo! E nem roupa havia para lavar, nem um servicinho, nem uma distração... Era contra seus hábitos aquilo: não podia estar em pé sem fazer coisa alguma. Que ferro!

Não lhe saía da cabeça o bilhetinho do negro, que ela espedaçara. — E não é que o tal Bom-Crioulo ainda se lembrava de Aleixo! Grandessíssimo pederasta! Nunca supusera que uma paixão amorosa de homem a homem fosse tão duradoura, tão persistente! E logo um negro, Senhor Bom-Jesus, logo um crioulo imoral e repugnante daquele!

Entrou pela noite com a mesma inquietação, com o mesmo receio vago e indefinido, quase arrependida de se ter metido com o Aleixo. Bem que estava sossegada no seu cantinho da rua da Misericórdia, vivendo como Deus queria, sem se incomodar. Afinal de contas o grumete era uma criança e ela uma senhora de idade...

E logo, refletindo: — Ah! mas ninguém está livre: homem e mulher são como fogo e pólvora... Assim mesmo quarentona, ela era mulher, tinha sangue nas veias e um coração para sentir...

Bateu as portas, mais cautelosa que nunca, revistou o quintal, e foi-se deitar muito cedo, pensando em Bom-Crioulo, no Aleixo e nas loucuras da humanidade. Quase toda a noite ouviu rodarem os bondes. Fazia um grande calor abafado de estufa, e ela não podia conciliar o sono, adormecer tranqüilamente; fechava os olhos em vão, para tornar a abrir no mesmo instante, sufocada, agitada por um nervoso ridículo de mulherzinha histérica, ela, um mulherão daquele, gorda, forte e sadia!

Nenhuma posição lhe agradava na cama: um mal-estar, uma asma, que lhe tirava o fôlego e o sono. Era a primeira vez que tal coisa lhe sucedia. Debalde escancarou as portas da alcova — a que dizia para a sala e a do corredor. Qual! A mesma falta de ar, o mesmo inferno. E sempre a lembrança do negro e do outro atormentando-a como um pesadelo cruel. Via Bom-Crioulo entrar pela casa dentro bêbado, os olhos em chama, segurando uma navalha de marinheiro, brandindo a arma, cheio de ódio, feroz, terrível, hediondo, e, de repente, cair sobre o grumete, espumando ciúme, cortando-o de navalhadas; e parecia-lhe estar vendo o outro rolar no chão sem fala, num rio de sangue, morto!... E depois a polícia, gritos de socorro, vergonhas, curiosos que vinham ver...

Bateu duas horas da madrugada. Já se não ouviam bondes. Um silêncio absoluto na rua, e dentro, no sobrado, a mesma quietação dormente e abafada — uma calma infinita de subterrâneo.

Mais um quarto d’hora e a portuguesa caiu no sono profunda­mente — um sono de pedra, inabalável como o sono eterno...

Como de costume, Aleixo “folgou” no dia seguinte, e, como de costume, veio direto a casa, muito leve, muito desobrigado, no seu uniforme azul, capa branca no boné, oloroso e risonho. D.Carolina estava para dentro, às voltas com a cozinha. Eram três horas da tarde. O grumete estranhou que a porta da rua estivesse fechada àquela hora, e bateu com força. — Oh! Isso era novidade!...

A mulher correu para ver da janela: — Seria o bonitinho?

Houve um pequeno rebuliço na vizinhança. Embaixo, na loja, apareceu uma cabeça negra toda curiosa, fingindo que chegava ao postigo naturalmente, por acaso... O caixeiro da padaria estirou o pescoço, de dentro do balcão.

D. Carolina, mal reconheceu o marinheiro, veio abrir logo com uma exclamação de surpresa: — Oh! não o esperava tão cedo!

— Tão cedo? Pois ainda achava cedo? É boa: quase noite!

— Oh! filho, são duas horas.....

— Duas não senhora: já vai para as quatro.

E foram subindo a escada, ela com o braço no ombro do rapazinho, ele muito sério, muito desconfiado, os olhos baixos, uma expressão melancólica no rosto púbere. — Que lembrança fechar a porta da rua àquela hora!...

E a portuguesa beijando-o na face:

— Não te zangues, meu jasmim, não te zangues. Porta fechada livra de tentações... Deu-me uma coisa, um medo...

— Qual tentações, qual medo! Você já não é criança para andar se escondendo... Isso até faz a gente desconfiar.

Mas D. Carolina não queria dizer a verdade, os seus escrúpulos com relação a Bom-Crioulo, o caso do bilhete. Para que sobressaltar o Aleixo? Ele bem sabia que o outro não o abandonava facilmente: negro é raça do diabo, raça maldita, que não sabe perdoar, que não sabe esquecer... Aleixo bem conhecia o gênio de Bom-Crioulo. De resto, o caso do bilhete era uma tolice em que ninguém devia pensar: — Coisas de negro...

— Olha, Ó pequenino, juro-te que não fecharei mais a porta da rua. Sossega, ouviste? Sossega...

Estavam na alcova. O grumete corria a olhar nos móveis, na cama, pelo quarto e pela sala, como quem procurava descobrir vestígios de infidelidade. A mulher ajudava-o a se despir, tomando-lhe a roupa úmida de suor, toda cheia de cautelas para que ele não se constipasse. — Olha, muda a camisa; olha, toma um pouquinho de aguardente; olha, cuidado com o vento; olha os chinelos...

Nunca vira tanto carinho, zelo tanto. A portuguesa multiplicava-se em dedicações, em ternuras quase infantis, desejando até que ele a maltratasse, que ele a espezinhasse. O olhar azul de Aleixo tinha sobre ela um poder maravilhoso, uma fascinação irresistível: penetrava o fundo de sua alma, dominando-a, transformando-a num pobre animal sem vontade, queimando-a como uma brasa ardente, impelindo-a para todos os sacrifícios... Perto dele, fugiam-lhe todos os receios, todas as dúvidas: era capaz de atirar-se a um homem, de morrer na ponta de uma faca, de assassinar, de fazer loucuras!

Nesse dia principalmente, ao contrário da véspera, em que ela, no meio de seus temores, desejava ver-se longe do rapazinho, nesse dia principalmente achava-se de uma bondade maternal: a amizade con­vertera-se-lhe numa espécie de fanatismo, numa adoração religiosa. Beijava-o a cada instante, meiga, cariciosa e feliz, como se todas as virtudes estivessem reunidas ali, no olhar de Aleixo, nesse olhar ideal, de uma doçura infinita.

— Tu és o meu santo, ó pequenino, dizia ela; tu és a minha única felicidade neste velho mundo tão cheio de miséria...

E abraçava-o, rilhando os dentes, nervosa, excitada, oferecendo- se ao rapazinho num fúria sensual e mórbida.

— Mas, que diabo é isso, filha, estás louca? ralhava o grumete cuja fisionomia, desde que chegara, não se abrira num sorriso amável; — que desespero é esse?

— Oh! mas eu te quero tanto bem, meu queridinho, eu te amo tanto!

Ele não disse palavra. O jantar correu frio. D. Carolina retraiu-se por sua vez, humilhada com as maneiras de Aleixo, porque ele, seco e indiferente, não lhe fazia o menor agrado. Ambos permaneceram calados, como duas pessoas estranhas na mesa de um hotel. Mas, para o fim, ela não pôde suportar aquele silêncio incômodo.

— Que te fiz eu, ó filho, dize, que te fiz eu? Não me encontraste só, em casa, trabalhando, mourejando? Que te fiz eu?

Aleixo continuava mudo, os beiços agitados por um tremor convulso, o olhar na parede.

— Vamos, dize, que te fiz eu? insistiu a portuguesa tocando-lhe no braço. Hás de ter alguma razão para te zangares...

Ele, porém, não se movia, não dava resposta, impenetrável na sua mudez obstinada e cruel, que estava quase arrancando lágrimas à mulher. Então D. Carolina sentiu um desespero n’alma e, erguendo-se triste, foi-se para a alcova, maldizendo-se, lamentando “a sua desgraça”: — Que era uma infeliz, que todos a desprezavam, que estava cansada de sofrer, que a vida era um inferno, que preferia morrer!

E repetia melancolicamente:

— Que fiz eu, Senhor Bom-Jesus, que fiz eu a esse homem?

Aleixo teve um movimento de piedade, e, erguendo-se também, dirigiu-se à sala da frente.

— Para que fechou, então, a porta da rua? tomou ele. Há algum mistério nesta casa? A senhora não me esperava hoje?

— Ó filho, pois eu já não te disse que fechei por causa de um medo que me assaltou de repente?...

— Que medo, senhora, que medo! Para tudo há desculpa. A senhora não está procedendo bem...

D. Carolina tinha se deitado na cama e fungava, limpando os olhos com o avental, muito queixosa.

— Donde é que veio esse medo hoje? Todos os dias a senhora não abre a porta, não a deixa escancarada?

— Está você fazendo barulho à toa, por uma ninharia... Ou o homem tem confiança na mulher ou não tem. Você nunca me encontrou com outro, para fazer mau juízo da gente...

— Bom, mas, então, seja franca, explique-se. Por que é que fechou a porta da rua?

Havia já um princípio de reconciliação. Aleixo aproximara-se da cama, sensibilizado pela voz magoada da portuguesa que lhe botava uns olhos muito ternos, muito cheios de humildade e resignação.

— Queres que eu te diga por que é que fechei a porta da rua? Pois senta-te pr’aí que eu te vou dizer. Calei-me por tua causa mesmo, para não te dar cuidado.

O grumete imaginou logo uma série de coisas desagradáveis: tentativas de roubo, ameaças de prisão, violências, um horror! Estava longe, porém, de pensar em Bom-Crioulo; a seus olhos o negro morrera, desaparecera; ninguém lhe dava notícias dele; decididamente nunca mais voltaria; talvez andasse nalguma viagem, mar afora, nalgum cruzeiro...

E a portuguesa narrou o caso do bilhete, que ela rasgara, “porque não valia a pena a gente se amofinar...”

Aleixo ouviu tudo curioso, a face na mão, derreado na cama larga.

— E onde está ele? perguntou vivamente.

No hospital de marinha, na ilha, com alguma doença....... Quem o não conhecer que o compre.

Aleixo não quis dizer nada; mas a história do bilhete comovera-o, enchera-o de uma vaga melancolia: —Bom-Crioulo ainda se lembrava!...

Pensou em visitar o negro, talvez fosse mais prudente...

— Que acha?

D. Carolina reprovou: — Jesus, que asneira! Isso era o mesmo que uma pessoa se atirar do Corcovado. Não, nunca!

— Deixa-o lá, filho: pouco a pouco ele irá te esquecendo faze pela vida e deixa-o lá. Vamos indo muito bem sem ele. Nada!

— E se ele entrar por aqui adentro um belo dia?

— Qual!... Por isso é que eu trago a porta da rua fechada.

— Bom, murmurou o grumete erguendo-se. A vida é esta!....

E ninguém deve ir contra as leis da Providência, resumiu D. Carolina dogmaticamente.

Serenara a pequena discórdia. Estava tudo explicado. Aleixo reconhecera a sua injustiça para com a portuguesa, e ela o perdoara, sempre boa, sempre generosa. Do alto do sobradinho viam ambos, agora, aconchegados, felizes, rindo, os que passavam embaixo, na rua. Que importava Bom-Crioulo? Que importava a febre amarela? Em todo o Rio de Janeiro, em todo o mundo só havia duas criaturas felizes: ele, o grumete, e ela, a portuguesa — felizes como Adão e Eva antes do pecado, felizes como todos os casais que se amam ....

Saíram juntos, a dar uma volta, nessa noite. Aleixo propôs irem ao Passeio Público tomar um sorvete, um refresco, uma bebida qualquer. Não se podia estar em casa com o calor! D. Carolina lembrou a Guarda-Velha: — Não seria melhor irem à Guarda-Velha, à fábrica de cerveja? Havia música também...

Mas o grumete ponderou que na Guarda-Velha estava-se muito à vista, iam marinheiros de bordo, havia muita gente. O Passeio Público era maior e menos freqüentado; tinha-se mais liberdade. E depois, era só tomar o bondinho da Lapa.

— Oh! vai com a roupa de marinheiro! suplicou D. Carolina vendo-o enfiar um jaquetão à paisana. É mais fresca e dá respeito...

— O respeito não está na roupa, doutrinou Aleixo, abotoando-se; é respeitado quem procede bem. Deixa-me ao menos variar!

Ela gostava tanto de o ver em seu uniforme, “todo bonitinho” como uma pintura, chamando a atenção dos burgueses, admirado, invejado, gabado. Assentava-lhe muito mais a roupa de marinheiro; sem comparação! O que era um soldado à paisana? Um homem como qualquer outro, um pobre-diabo que ninguém respeitava. Oh! a farda!...

— Mas eu não quero, filha, não gosto. São coisas...

— Bom, não precisa brigar. Vai como quiseres.

Estava escurecendo. No interior do sobradinho já se não distin­guiam os objetos. Fora, na rua, acendiam-se os primeiros bicos de gás e havia grande calma, uma sonolência profunda no quarteirão.

— Creio que vamos ter chuva, disse Aleixo dando um salto à janela.

Com efeito, nuvens escuras alastravam-se pelo céu, baixas, pesadas, rolando como fumarada negra de incêndio. O tempo refres­cava. Corria mesmo uma aragenzinha branda e acariciadora. Uma voz humana imitava guinchos de locomotiva para os lados da Misericórdia.

Passava o bonde da Lapa. D. Carolina e Aleixo embarcaram, ela muito alegre, muito expansiva na sua toilette improvisada, que lhe dava um ar bonachão e honesto, ele um pouco triste, chapéu de palhinha derreado para a nuca, mostrando o cabelo penteado em pastas, uma gravata cor de sangue — aprumado e circunspecto.

O bonde tocou.