Cartas de Nietzsche/1884/II

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Nice, jan/fev. de 1884

Mas voltar atrás um ano, em assuntos que ocorreram antes dos meus encontros pessoais com a Srta. Salomé em Tautenburg e Leipzig – isto é um ato de brutalidade incomparável. E depois me mandar uma carta atrás da outra informando-me coisas que eram novas para mim, juntando assim sujeira a esses meses plenos de auto-sacrifício – isto para mim é insidioso. Se a srta. Salomé disse acerca de mim que por detrás da máscara dos objetivos intelectuais eu a persegui com “intenções vulgares”, deveria ter sabido disso apenas um ano depois? Eu a teria afastado com condenações e pragas, eu teria resgatado Rée dela. – Este é apenas um exemplo de centenas de casos nos quais a perversidade fatal da minha irmã em direção a mim mostrou-se. Naturalmente sei há tempos que ela não descansará enquanto não me ver morto. Agora está terminado meu Zaratustra! No momento que eu terminei, lá estava ela aportando no asilo, lá estava ela, atirando punhados de sujeira na minha cara.

Sua carta me aconselha sobre coisas que me deixam sem fala.

Não fui eu que no ano passado mostrei para vocês duas uma bondade abundante e imerecida? Vocês duas são ingratas? Ou você é tão absurdamente desonesta que nega uma simples verdade?

Quem se comportou de forma desprezível comigo, não foram vocês duas? Quem arriscou minha vida, senão vocês? Quem me abandonou totalmente, do jeito que vocês duas fizeram, e quando eu pedi consolo, responderam com escárnio e vulgaridade sobre tudo que vivo e aspiro?

Conheço bem a distância moral que me separa, desde a infância até agora, de pessoas como vocês. Eu preciso de cada grama de sutileza, paciência e silêncio que consigo reunir para tornar-lhes esta distância menos perceptível. Você não faz idéia da náusea que tenho de suportar por ser tão próximo de pessoas assim! O que é, então, que me faz vomitar quando leio as cartas da minha irmã, quando tenho que engolir sua mistura de estupidez com insolência acrescida de moralização?

Já faz muitos anos que tenho que me defender de L[isbeth], de fugir dela como um animal que esteja sendo torturando por ela até a morte; eu supliquei que me deixasse em paz, mas ela não parou de me atormentar por um instante sequer. Eu tinha medo de ir a N[aumburg] agosto passado, medo do que eu poderia fazer-lhe, e foi por isso que pedi conselhos a O[verbeck], e agora ela faz sua ceninha e age como se não tivesse culpa de nada!

Eu não sei o que é pior, a gigantesca falta de inteligência e a insolência de L[isbeth], com a qual ela tenta me instruir – a mim que conheço os seres humanos até o âmago – para com dois seres humanos que tive tempo e desejo de conhecer proximamente; ou sua desavergonhada falta de respeito que nunca cansa de jogar estrume em pessoas que, em todas ocasiões, participaram de forma importante no meu desenvolvimento intelectual e que, portanto, são cem vezes mais próximos a mim do que a infeliz e vingativa cabeça vazia que ela tem.

Minha náusea – ser parente de uma pessoa tão desprezível.

Da onde ela tirou esta brutalidade enauseante? Da onde tirou este modesto jeitinho de injetar veneno?

Quando um ser humano como eu diz “Isto-e-isto pertecence ao meu plano de vida”, como eu disse para Lisbeth acerca da srta. Salomé, ela então vem com uma burrice obtusa, vingativa e o desejo de vingar-se de uma natureza superior. E então trabalha contra mim dessa maneira infame. No final, é claro, consegui o que eu queria.

Esta tola doente foi tão longe que me acusou de invejar Rée! E comparou a si e Gersdorff com Malwida!

Você não pode simpatizar, não faz idéia do consolo que Rée foi para mim durante anos – faute de mieux [falta de superioridade], obviamente; e que benção incrível para mim foi conviver com a srta. Salomé.

Em relação a carta de Lisbeth – seus julgamentos acerca de mim não me preocupam. Acredito que já os ouvi antes. Foi de Lisbeth? Ou foi da srta. Salomé? Neste quesito, ao menos, elas concordam sobre mim. Bem, então, quem está enganando quem?

Não acredite, querida mãe, que estou de mau humor. Muito pelo contrário! Mas quem não for fiel a mim, deixo ir para o inferno – ou, ao que me concerne, para o Paraguai.