Cinco Minutos/III

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III

 

Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta.

Antes de abril-a conheci que era d’ella, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma aureola.

Eis o que dizia:

«Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher póde escarnecer de um nobre coração como o seu.

Si me occulto, si fujo, é porque ha uma fatalidade que á isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrificio, porque o amo!

Mas não devo ser egoista e trocar sua felicidade por um amor desgraçado.

Esqueça-me.

C.»

Essa assignatura era a mesma lettra que marcava o seu lenço, e á qual eu desde a vespera pedia debalde seu nome!

Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apezar da delicadeza de sentimento que parecia ter dictado suas palavras, o que para mim tornava-se bem claro é que ella continuava á fugir-me.

Fosse qual fosse esse motivo que ella chamava uma fatalidade, e que eu suppunha ser apenas escrupulo, sinão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecel-a.

Reflecti então seriamente sobre a extravagancia da minha paixão, e assentei que com effeito precisava tomar uma resolução decidida.

Não era possivel que continuasse á correr atrás de um fantasma que esvaecia-se quando ia tocal-o.

Aos grandes males os grandes remedios, como diz Hippocrates. Resolvi fazer uma viagem.

Mandei sellar o meu cavallo, metti alguma roupa em um sacco de viagem, embrulhei-me no meu capote e sahi, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.

Não sabia para onde iria. O meu cavallo levou-me para o Engenho-Velho, e eu d’ahi encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo molhado e fatigado pelos máos caminhos.

Si algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remedio soberano e talvez o unico efficaz.

Deram-me um excellente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.

Quando accordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.

Uma bella manhã, fresca e rociada das gottas do orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.

O aspecto d’esta natureza quasi virgem, esse céo brilhante, essa luz esplendida cahindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espirito.

Fiquei alegre, o que ha muito tempo não me succedia.

O meu hospede, um Inglez franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhal-o á caça; gastámos todo o dia á correr atrás de duas ou tres marrecas e á bater as margens da Restinga.

Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estupida quanto póde ser; dormindo, caçando e jogando o bilhar.

Na tarde do decimo dia, quando já me suppunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e assetinada, fiquei triste de repente.

Não sei que caminho tomáram as minhas idéas; o caso é que d’ahi á pouco descia a cerra no meu cavallo, lamentando esses nove dias, que talvez tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.

Accusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.

Que importava que ella me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ella, fraca mulher, não podia lutar?

Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoista, cobarde, irreflectido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavallo, que me levára á Tijuca, e o meu hospede, cuja amabilidade alli me havia demorado.

Com esta disposição de espirito cheguei á cidade, mudei de trajo, e ia sahir, quando o meu moleque deu-me uma carta.

Era d’ella.

Causou-me uma sorpresa misturada de alegria e de remorso:

«Meu amigo.

 

Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor á sua felicidade; mas ao menos deixe-me o consolo de amal-o.

Ha dous dias que espero debalde vêl-o passar, e acompanhal-o de longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração amigo.

Parto hoje para Petropolis, d’onde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.

Entretanto, eu desejava vêl-o ainda uma vez, apertar a sua mão e dizer-lhe adeus para sempre.

C.»

A carta tinha a data de 3; nós estavamos a 10; havia oito dias que ella partira para Petropolis e que me esperava.

No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da bahia, tão pittoresca, tão agradavel, e ainda tão pouco apreciada.

Mas então a magestade d’essas montanhas de granito, a poesia d’esse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a bahia, nada d’isto me preoccupava.

Só tinha uma idéa — chegar; e o vapor caminhava menos rapido do que meu pensamento.

Durante a viagem pensava n’essa circumstancia que a sua carta me revelára, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver si adivinhava aquella onde ella morava, e d’onde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.

Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, á ponto de merecer que a senhora, minha prima, me appellidasse de Judêo Errante, este trabalho era improficuo.

Quando cheguei á Petropolis eram cinco horas da tarde; estava quasi noite.

Entrei n’esse hotel suisso, ao qual nunca mais voltei, e emquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.

— Têm subido estes dias muitas familias? perguntei ao criado.

— Não, senhor.

— Mas ha cousa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?

— Não estou certo.

— Pois indague, que preciso saber e já; isto o ajudará á obter informações.

A physionomia sizuda do criado expandio-se ao tinir da moeda, e a lingua adquiriu a sua elasticidade natural.

— Talvez o senhor queira fallar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha.

— É isso mesmo.

— A moça parece doente; nunca a vejo sahir.

— Onde está morando?

— Aqui perto, na rua de...

— Não conheço as ruas de Petropolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me a casa.

— Sim, senhor.

O criado seguio-me, e tomámos por uma das ruas agrestes da cidade allemã.