Cinco Minutos/VII

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VII

 

Continuei á ler:

«Sim, meu amigo!...

Estava condemnada á morrer; estava atacada d’essa molestia fatal e traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no meio dos prazeres e dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao tumulo, depois de ter escarnecido da natureza, transfigurando as suas mais bellas creações em mumias animadas.

É impossivel descrever-te o que se passou então em mim: foi um desespero mudo e concentrado, que me prostrou em uma atonia profunda; foi uma angustia pungente e cruel.

As rosas da minha vida apenas se entreabriam, e já eram bafejadas por um halito infectado; já tinham no seio o germen da morte que devia fazel-as murchar!

Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro amor, que nem siquer ainda tinha colhido o primeiro sorriso, este horizonte, que ha pouco me parecia tão brilhante; tudo isto era uma visão que ia sumir-se, uma luz que lampejava prestes á extinguir-se.

Foi preciso um esforço sobrehumano para esconder de minha mãi a certeza que eu tinha sobre o meu estado, e para gracejar dos seus temores, que eu chamava imaginarios.

Boa mãi! Desde então só viveu para consagrar-se exclusivamente á sua filha, para envolvel-a com esse desvelo e essa protecção que Deos deu ao coração materno, para abrigar-me com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar á força de amor e de dedicação contra o destino.

Logo no dia seguinte fomos para Andarahy, onde ella alugára uma chacara, e ahi, graças á seus cuidados, adquiri tanta saude, tanta força, que me julgaria boa si não fosse a sentença fatal que pesava sobre mim.

Que thesouro de sentimento e delicadeza que é um coração de mãi, meu amigo! Que tacto delicado, que sensibilidade apurada, possue esse amor sublime!

Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada á agasalhar-me, si visses como ella presentia as rajadas de um vento frio antes que elle agitasse os renovos dos cedros do jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a primeira gotta humedecesse a lage do nosso terraço!

Fazia tudo por distrahir-me; brincava commigo como uma camarada de collegio; achava prazer nas menores cousas para excitar-me á imital-a; tornava-se menina e obrigava-me á ter caprichos.

Emfim, meu amigo, si fosse á dizer-te tudo, escreveria um livro, e esse livro deves ter lido no coração de tua mãi, porque todas as mãis se parecem.

Ao cabo de um mez tinha recobrado a saude para todos, excepto para mim, que ás vezes sentia um quer que seja como uma contracção, que não era dôr, mas me dizia que o mal estava alli, e dormia apenas.

Foi n’esta occasião que te encontrei no omnibus de Andarahy; quando entravas a luz do lampeão illuminou-te o rosto e eu reconheci-te.

Faze idéa que emoção sentiria quando te sentaste junto de mim.

O mais tu sabes; eu te amava, e era tão feliz de ter-te á meu lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como te devia parecer ridicula uma mulher que, sem te conhecer, te permittia tanto.

Quando nos separámos, arrependi-me do que tinha feito.

Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condemnar-te á um amor infeliz e obrigar-te á associar tua vida á uma existencia triste, que talvez não te podesse dar sinão os tormentos de seu longo martyrio?!

Eu te amava; mas, já que Deos não me tinha concedido a graça de ser tua companheira n’este mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém menos dedicada, teria de occupar.

Continuei á amar-te, mas impuz-me á mim mesma o sacrificio de nunca ser amada por ti.

Vês, meu amigo, que não era egoista e preferia a tua á minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.

Aproveitei o mysterio do nosso primeiro encontro, e esperei que alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e quebrassem o unico e bem fragil laço que te prendia á mim.

Deus não quiz que acontecesse assim: vendo-te só em um baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisivel, uma sombra, e querendo descobrir os seus vestigios em algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer immenso.

Conheci que tu me amavas; e, perdôa, fiquei orgulhosa d’essa paixão ardente, que uma só palavra minha havia creado, d’esse poder do meu amor, que, por uma força de atracção inexplicavel, tinha-te ligado á minha sombra.

Não pude resistir.

Approximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de ver-me; foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor, e que depois do primeiro encontro era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.

Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deos, chamo a tua imagem para pedir-te que não te esqueças de mim.

Quando tu te voltaste ao som da minha voz eu tinha entrado no toilette; e pouco depois sahi d’esse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo da minha imprudencia, mas alegre e feliz por te ter visto ainda uma vez.

Deves agora comprehender o que me fizeste soffrer no theatro quando me dirigias aquella accusação tão injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a aria da Traviata.

Não sei como não me trahi n’aquelle momento e não te disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruil-o para satisfação de meu amor-proprio offendido.

No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trahir, pude ao menos rehabilitar-me na tua estima; doia-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma idéa tão injusta e tão falsa.

Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro tinhamos voltado á cidade, e eu via-te passar todos os dias diante de minha janella, quando fazias o teu passeio costumado á Gloria.

Por detrás das cortinas seguia-te com o olhar, até que desapparecias no fim da rua, e este prazer, rapido como era, alimentava o meu amor, habituado á viver de tão pouco.

Depois de minha carta tu deixaste de passar dous dias; estava eu á partir para aqui, d’onde devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglez.

Minha mãi, incansavel nos seus desvelos, quer levar-me á Europa e fazer-me viajar pela Italia, pela Grecia, por todos os paizes de um clima doce.

Diz ella que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e cultivar o meu espirito; mas eu sei que essa viagem é sua unica esperança, que não podendo nada contra minha enfermidade, quer ao menos disputar-lhe sua victima durante mais algum tempo.

Julga que fazendo-me viajar sempre me dará mais alguns dias de existencia, como si estes sobejos de vida valessem alguma cousa para quem já perdeu sua mocidade e seu futuro.

Quando ia embarcar para aqui lembrei-me que talvez não te visse mais, e diante d’essa derradeira provança succumbi. Ao menos o consolo de dizer-te adeos!...

Era o ultimo!

Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas tinha uma quasi certeza de que havias de vir.

Não me enganei.

Vieste, e toda minha resolução, toda minha coragem cedeu, porque, sombra ou mulher, conheci que me amavas como eu te amo.

O mal estava feito.

Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me tens, que reflictas no que te vou dizer, mas que reflictas com calma e tranquillidade.

Para isto parti hoje para Petropolis sem prevenir-te, e colloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distancia de muitas leguas.

Desejo que não procedas precipitadamente, e que, antes de dizer-me uma palavra, tenhas medido todo o alcance que ella deve ter sobre teu futuro.

Sabes o meu destino, sabes que sou uma victima cuja hora está marcada, e que todo o meu amor, immenso, profundo, não te póde dar talvez dentro em bem pouco sinão o sorriso contrahido pela tosse, o olhar desvairado pela febre e caricias roubadas aos soffrimentos.

É triste; e não deves immolar assim tua bella mocidade, que ainda te reserva tantas venturas e talvez um amor como o que eu te consagro.

Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabellos e minha historia: guarda-os como uma lembrança, e pensa algumas vezes em mim; beija esta folha muda, onde os meus labios deixáram-te o adeos extremo.

Entretanto, meu amigo, si, como tu dizias hontem, a felicidade é amar e sentir-se amado; si te achas com forças de partilhar esta curta existencia, estes poucos dias que me restam á passar sobre a terra, si me queres dar esse consolo supremo, unico que ainda embellezaria minha vida, vem!

Sim, vem! iremos pedir ao bello céo da Italia mais alguns dias de vida para nosso amor; iremos onde tu quizeres, ou onde nos levar a Providencia.

Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protector de Deos, á sombra dos cuidados de nossa mãi, viveremos tanto um do outro, encheremos de tanta affeição os nossos dias, as nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja minha existencia, teremos vivido por cada minuto seculos de amor e de felicidade.

Eu espero; mas temo.

Espero-te como a flôr desfallecida espera o raio do sol que deve aquecel-a, a gotta de orvalho que póde animal-a, o halito da briza que vem bafejal-a. Porque para mim o unico céo que hoje me sorri são teus olhos, o calor que póde me fazer viver é o do teu seio.

Entretanto temo, temo por ti, e quasi peço á Deos que te inspire e te salve de um sacrificio talvez inutil!

Adeos para sempre, ou até amanhã!

Carlota»