Dicionário de Cultura Básica/Drummond

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DRUMMOND (o "poeta maior" da Literatura Brasileira)

Quando eu morrer, morre comigo uma certa forma de ver

O mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902–1987) é o nosso "poeta maior", a melhor produção do gênio literário no campo da poesia brasileira, comparável ao que foi Machado de Assis na prosa ficcional. Entre os dois mestres da literatura nacional, há algo em comum: o senso de humor com que retratam o triste espetáculo da vida. Em Drummond podemos distinguir várias linhas poéticas:

1) A poesia saudosista da família e da terra natal. Em 1934, nomeado chefe de gabinete do ministro da Educação Gustavo Capanema, deixa Minas Gerais e transfere-se para o Rio de Janeiro, onde permanece até sua morte, exercendo a profissão de funcionário público e de jornalista. Da primeira coletânea de poemas, AIguma poesia (1923–1930), transcrevemos o início do poema "Infância":

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo,
minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

2) A poesia intimista do "eu retorcido". A fina inteligência e a sensibilidade apurada levam Drummond a uma percepção da realidade de uma forma mais autêntica e subjetiva, afastando-se dos padrões impostos pela opinião comum. Eis a primeira estrofe do poema-título da coletânea "Sentimento do mundo" (1935–1940):

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

3) A poesia política, de participação social, que se encontra especialmente na coletânea Rosa do povo (1943–1945). Exemplificamos com o poema "Nosso tempo":

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

4) A poesia metafísica, de reflexão sobre a essencialidade do ser humano, que inclina Drummond para um existencialismo niilista. Da coletânea Claro enigma (1948–1951), cujo título oximórico já indica o tema da indagação sobre o mistério do Universo, escolhemos o soneto abaixo. O lexema "ingaia", qualificativo de "ciência", não se encontra dicionarizado e, portanto, exige uma explicação. A nosso ver, o poeta mineiro formou o termo a partir do adjetivo "gaio", de étimo provençal, que significa "alegre", "iovial", acrescentando-lhe o prefixo latino in, marca da negação. A relação do título com o corpo do poema seria essa: quando o homem consegue o dom de chegar à maturidade, à compreensão profunda da realidade, essa sabedoria o torna infeliz, pois lhe mostra o mundo como um "círculo vazio", uma "cela", destruindo-lhe o "sonho da existência". Uma estrofe de A ingaia ciência:

A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.

5) O poema-objeto, em que predomina o estilo sintético, telegráfico, à moda do futurista italiano Marinetti. A linguagem poética é reduzida a um puro nominalismo, em que os substantivos, privados de qualquer adjetivação, são justapostos sem nenhum nexo sintático ou semântico. A relação é estabelecida apenas por elementos fônicos: aliterações, ecos, assonâncias, rimas internas e externas. Tal artifício técnico teria a intenção de representar esteticamente a coisificação da vida humana, o dinamismo da era da máquina. O próprio título do conjunto de poemas escritos entre 1959 e 1962, Lição de coisas, parece sugerir tal interpretação. Vejamos a primeira estrofe do poema Isso é aquilo:

O FÁCIL o fóssil
O míssil o físsil
a arte o enfarte
o ocre o canopo
a urna o farniente
a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avó
a ave o mocotó
o só o sambaqui

Seu poema antológico, José, é um interrogativo sobre a busca de solução neste beco sem saída que é a nossa vida. Transcrevesmos aprimeira estrofe:

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?

6) A poesia-prosa: a lírica de Carlos Drummond de Andrade é uma profunda e lúcida indagação sobre a essência e a existência humana, feita através da apresentação de quadros do cotidiano, usando uma linguagem coloquial, simples, acessível ao grande público. Vejamos a não menos famosa Quadrilha, onde o poeta mineiro trata do amor não correspondido, ilustrando o famoso adágio popular "Quem eu amo não me ama e quem me quer não me convém":

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.