Dicionário de Cultura Básica/Religião

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"Tantum religio potuit suadere malorum!"

("Até que ponto a religião pode estimular o crime!")
(Lucrécio)

O termo "religião" é uma evolução fonética da palavra latina religionem, substantivo do verbo "religare", no sentido de ligar, indicando a ação de manter as pessoas unidas. Por evolução semântica, teria passado a significar a união entre a divindade e a humanidade, entre o Criador e suas criaturas. Mas há controvérsias. Para alguns estudiosos, este sentido de religião é tardio, encontrando a origem etimológica no verbo "re-ligar": juntar o que está desligado, reintegrar o homem à natureza. A idéia é panteísta: não existiria um Deus transcendental, sentado num trono olímpico. Deus seria a inteligência, a luz, o calor, o amor, que recompõe a todos, admitindo-se a existência de uma espiritualidade transreligiosa. Mas, para a maioria das pessoas, o fundamento de qualquer credo religioso está na necessidade de admitir a existência de um deus como resposta a perguntas que transcendem a razão humana: quem eu sou? de onde eu venho? para onde irei após a morte? por que eu vivo? Ninguém se conforma com o perecimento, a dor, a desigualdade, a injustiça, a crueldade, o desamor. Daí o apelo ao sobrenatural ser a busca de uma fonte de conforto, de cunho essencialmente psicológico, projetando para um futuro além-túmulo a felicidade que não se consegue neste mundo. Tal sentimento é natural e compreensível. Por isso, não existe nenhum povo sem uma religião. O filósofo alemão Nietzsche, embora dissesse que "o fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos", não deixou de reconhecer que o homem é um animal "venerador". A necessidade de acreditar numa divindade, especialmente nas sociedades mais primitivas, é tão importante quanto a prática das artes (música, canto, dança, narração ou representação de histórias fantásticas → Mito). Religião e Arte encontram-se juntas nos rituais de todos os povos. No dizer de Pablo Neruda,

"as religiões foram berço de poesia,
e esta se juntou a elas fertilizando os mitos,
colaborando como o incenso no entardecer das basílicas".

A faculdade de acreditar na existência de um ser superior, infinito e eterno, é uma exclusividade do gênero humano, sendo um postulado gnosiológico, psicológico e sociológico. A fé num deus, que já foi chamada de "a máquina de acreditar", remonta à era glacial, conforme descobertas arqueológicas, podendo ser encontrada em qualquer agrupamento social, por mais primitivo que seja. A religião acompanha a evolução do homem, estimulando sua capacidade racional e imaginativa. No fundo, são os homens que criam seus deuses, conforme suas necessidades e aspirações. Enquanto o filósofo Platão achava que "foi um homem sábio quem inventou Deus", o pensador francês Michel de Montaigne observou que "o homem é certamente um louco varrido, pois não pode fazer um verme e, entretanto, faz deuses às dúzias". Todas as divindades, as pagãs como orientais ou cristãs, têm um aspecto antropológico. A Virgem Maria é de cor negra para os católicos africanos! O ritual funerário, que existe desde a aurora da humanidade, comprova a crença em que o homem nunca se conformou com a morte: os corpos se encontram sepultados com seus ornamentos, armas e comidas, ferramentas consideradas necessárias para a travessia espiritual. Aos poucos, a crença religiosa em um ou vários deuses deixou de ser uma realidade apenas de grupos étnicos para se tornar um meio de coesão social. Agrupamentos humanos começaram a ser identificados por praticarem os mesmos rituais. Ser estrangeiro passou a significar venerar outros deuses, mesmo residindo na mesma cidade e obedecendo ao mesmo rei. E é aí que mora o perigo! O tipo de religião praticada, na grande maioria dos casos, não é uma escolha pessoal, mas sim uma herança cultural do meio em que o indivíduo é criado. Manobrado por alguns líderes carismáticos, o sentimento religioso de grupos sociais pode se tornar fanatismo, levando, às vezes, até a uma histeria coletiva, na crença de que apenas aquela religião é a verdadeira, tendo seus fiéis a obrigação de lutar contra os que professam outros credos, inclusive chegando ao suicídio para honrar seu deus. A História registra inúmeras perseguições, massacres e crueldades, cometidas em nome deste ou daquele deus ao longo dos séculos. A briga entre divindades é bem antiga. O poeta Paul Valéry imagina uma disputa entre os dois maiores deuses da nossa cultura:

"Afinal de contas – diz Júpiter a Jeová – você não inventou o raio!"

A obsessão religiosa pode levar ao fanatismo: do latim fanum, templo, lugar sagrado. Fanático é chamado o homem que, sentindo-se inspirado por uma divindade, acha que está com a verdade absoluta, se torna intolerante, exerce um zelo excessivo e pode até cometer atrocidades em nome do seu deus. Os primeiros fanáticos ocidentais foram os devotos do deus grego Dionísio que, durantes os ritos orgiásticos, as bacanais, devoravam as carnes do bode, animal sagrado a Baco, o nome romano de Dionísio. Do politeísmo para o monoteísmo, o fanatismo religioso apareceu na Idade Média (→ Medievalismo), especialmente na época das Cruzadas, quando cristãos e muçulmanos se digladiavam em nome de seus deuses. A partir da Contra-Reforma, os atos de fanatismo começaram a envergonhar o sentimento religioso de católicos e protestantes. Vejam-se os horrores do Tribunal da Inquisição, insituído para punir os adeptos do Protestantismo (→ Lutero). O sacrifício da heroína francesa Joana d’Arc, queimada em praça pública por uma absurda acusação de bruxaria, é um dos exemplos de insânia humana, provocada por histeria religiosa. O fanatismo adquiriu várias formas ao longo da história. Mais recentemente, na primeira década do séc. XX, na França, surgiu o integralismo, como reação ao culto das ciências, logo após o triunfo do Positivismo e do Evolucionismo. Uma encíclica do Papa Pio X condenou o movimento modernista que apregoava uma revisão dos dogmas da Igreja Romana em face do progresso das ciências naturais e biológicas. A ala mais conservadora, que se autodefiniu como dos "católicos integrais", foi ironicamente apelidada de "integrista".

No Oriente Médio, após a revolução teocrática do Irã, o termo "integrismo" passou a ser usado no mundo islâmico para indicar o intuito de integrar o poder social e político ao religioso, para recuperar a integridade dogmática da fé muçulmana (→ Maomé), ameaçada pelas tentações da moderna civilização ocidental. Nos USA, em 1919, pastores tradicionais e conservadores de várias seitas protestantes formaram a "World’s Christian Fundamental Association" para reagir às tendências liberalizantes do pensamento moderno e defender pontos da fé cristã que consideravam fundamentais: nascia, então, o chamado fundamentalismo. O movimento espalhou-se pelo Canadá e outros países, apresentando os seguintes princípios básicos: a) a teoria da evolução de Darwin deve ser banida das escolas, substituída pela história bíblica da Criação do mundo, pois os textos sagrados são inquestionáveis; 2) proscrição do aborto e do prazer carnal fora do casamento; 3) apoio à livre iniciativa e redução do poder do Estado; 4) condenação do Comunismo (→ Marx) por ser ateu e totalitário. Atuais termos árabes, como Xiita, Jihad, e Talibã, têm muitos a ver com Fanatismo, Integrismo e Fundamentalismo. Os Xiitas, diferentemente dos Sunitas, são muçulmanos tradicionalistas, que consideram autênticos apenas os ensinamentos que remontam a Ali, primo e genro do profeta Maomé. A Jihad é a "guerra santa" que todo muçulmano conservador deve fazer para defender ou estender o domínio do Islã. Como afirmou Marcel Proust, "há algo mais difícil do que fazer um regime, é não o impor aos demais". O movimento dos Talibans pode ser considerado um neofundamentalismo por defender a qualquer custo as tradições islâmicas contra a invasão da cultura ocidental. Mesmo se esta se demonstrou mais apta a proporcionar ao homem o que ele mais deseja, a felicidade! Como diria Nelson Rodrigues, numa de suas frases antológicas,

"se os fatos contradizem os profetas, pior para os fatos".

Talvez o dramaturgo carioca se referisse ao fato de que, enquanto a doutrima muçulmana afirma que Maomé, ao morrer na Cúpula Dourada de Jerusalém, foi assumido ao céu pelo arcanjo Gabriel, a história testemunha que o fundador do Islamismo nunca esteve em Jerusalém e que a tal mesquita fora construída 90 anos depois do falecimento do Profeta. Que bom sonhar com uma sociedade em que o indivíduo pudesse escolher livremente sua religião, com base na verdade histórica, no raciocínio lógico, no bom senso, sem ser vítima de líderes religiosos ou políticos. Que bonito seria ver um cristão e um muçulmano, lado a lado, fazendo suas preces, cada qual torcendo pelo seu deus, como dois torcedores de times diferentes! Ou alguém poder se declarar ateu, sem passar vexames! A observação da perfeita arquitetura do Universo tem levado cientistas a admitir uma "religiosidade cósmica". Acreditar na existência de uma inteligência criadora é relativamente fácil; difícil é tentar compreender a essencialidade deste ente superior, a que chamamos Deus. Definir o que é, como é e o que quer de nós esse Espírito infinito, é algo que supera os limites da razão humana. Entramos, portanto, no campo do mistério, que os vários credos religiosos tentam desvendar, apelando à crença em livros pressupostamente sagrados, onde estaria revelada a vontade deste ser divino. Para preservar o sentimento religioso individual e grupal dos cidadãos seus e de outros países, o governo de qualquer Estado deveria ser declaradamente laico, proibindo qualquer forma de proselitismo. Algumas Nações, como a França recentemente, já tomaram a dianteira, promulgando leis que punem quem ostenta símbolos religiosos em escolas públicas (crucifixos, véus, solidéus); já outros mandatários, como o Governador do Estado do Rio de Janeiro, no mesmo ano de 2004, indo no sentido contrário da História, cria 500 cargos públicos para professores de Religião, fomentando a briga entre padres, pastores, rabinos. O princípio da separação entre Igreja e Estado é uma conquista recente da Humanidade, que tem que ser irreversível, visto que a História nos ensina que todos os governos teocráticos estão marcados pelo atraso, pela injustiça, pela crueldade. Infelizmente, a exclamação do poeta romano Lucrécio (colocada em latim na epígrafe deste verbete), ao comentar o sacrifício da jovem Ifigênia, exprime uma verdade ainda hoje evídenciada por terroristas e homens-bomba:

"Até que ponto a religião pode estimular o crime!"

Se o ensino religioso e as rezas ajudassem para a formação do caráter do cidadão, iranianos, palestinos, judeus e outros conjuntos étnicos do Médio Oriente seriam modelos de homens cultos, pacíficos e trabalhadores, vistos que são os povos que mais tempo dedicam à prática de crinças!