Dicionário de Cultura Básica/Sartre

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SARTRE (filósofo e escritor francês) e Simone → Existencialismo

"O inferno são os outros".

Jean-Paul Sartre (1905–1980), além de filósofo e crítico, é também dramaturgo e romancista. A formação humana e cultural do grande erudito francês está marcada pelos princípios filosóficos da Fenomenologia de Husserl e do Existencialismo de Heidegger. Seu pensamento filosófico (O ser e o nada, O Existencialismo é um Humanismo) influencia fortemente sua produção dramática (Entre quatro paredes, Mortos sem sepultura, A prostituta respeitosa, Os dados estão lançados) e sua narrativa ficcional (o romance A náusea, o conto O muro e a trilogia Os caminhos da liberdade, composta dos romances A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma). Em verdade, a denominação mais exata para a narrativa sartreana seria a de romance "existencialista". Mas ele sempre considerou o Existencialismo uma ideologia e não uma filosofia ou uma práxis de vida. Por isso, recorreu ao Marxismo (→ Marx), estimado por ele a única filosofia do século XX capaz de associar o pensamento reflexivo á atividade prática, com o intuito de promover o progresso intelectual, social e moral da humanidade. Os princípios de sua estética existencial-marxista encontram-se expostos na sua volumosa obra O que é a literatura.

As profundas reflexões de Sartre sobre a existência humana, além de estarem registradas nas obras filosóficas e na narrativa ficcional, são perceptíveis também na sua dramaturgia. Seu teatro é classificado como "de situação", diferentemente do anterior a ele, que era de costumes, de tese ou de psicologia das personagens. Teatro de situação é a peça em que a personagem assume sua responsabilidade perante a comunidade em que vive. A liberdade do homem é vista não egoisticamente, mas no sentido de sua participação no convívio humano. A primeira peça de Sartre, As moscas, é uma adaptação do mito de Agamenão.

Alegoricamente, Argos simboliza a França ocupada pelos nazistas; Agamenão, o governo anterior deposto; Egisto, a violência nazista; Orestes, a resistência francesa; as moscas, o pavor que atormenta os cidadãos. A ação de Orestes que mata Egisto, antes que como uma vingança familiar, é representada como uma necessidade patriótica, pois a situação de tirania era insustentável. A mesma temática antinazista encontra-se em Mortos sem sepultura. Anti-racista é a peça A prostituta respeitosa, em que uma jovem leviana defende um negro injustamente acusado por um crime cometido por brancos. Em As mãos sujas, Sartre ataca outro tipo de tirania, a do Partido Comunista (→ Marx). A hipocrisia social é o tema de O Diabo e o bom Deus. Contra as guerras de expansão do Imperialismo escreve As troianas, livre adaptação da peça de Eurípides. Mas o drama mais famoso de Sartre é Entre quatro paredes. A peça tem apenas um ato e quatro personagens: Inês, Estelle, Garcin e o Criado; o cenário é um salão, estilo Segundo Império, com três poltronas, uma lareira e uma estátua de bronze. Esse espaço representa o inferno eterno, onde são conduzidas pelo Criado as almas dos outros três personagens. O sofrimento desses "mortos" reside na obrigatoriedade da convivência: cada qual tem que suportar a presença do outro. Inês é uma jovem homossexual, agressiva, sádica; Estelle, uma burguesa luxuriosa que matara uma criança que teve do amante; Garcin, um covarde, que desertara do serviço militar em nome do pacifismo. O diálogo entre esses personagens põe a nu suas fraquezas existenciais, sua hipocrisia, desmascarando toda a impostura. Sendo impossível o isolamento, um ser é posto frente ao outro, que lhe devolve a sua imagem verdadeira, como se fosse um espelho. Daí a expressão de Garcin que sintetiza o sentido mais profundo da peça: "O inferno são os outros". Uma consciência que foge de suas responsabilidades terá que enfrentar outra consciência que a denuncia!

A grande sorte de Sartre foi ter encontrado na sua vida uma figura feminina maravilhosa, Simone de Beauvoir (1908–1986), sua companheira em todas as batalhas. Também ela grande escritora de formação existencialista, combativa e polêmica. Além de compartilhar com o marido o pensamento filosófico e a causa social, ela escreveu sobre outros assuntos vitais: feminismo (O Segundo Sexo), problemática da idade (A Velhice), comportamento ético (Para uma moral de ambigüidade), política (A longa marcha), além de estudos biográficos sobre Sartre e ela própria (A cerimônia do adeus). O sentimento da necessidade da participação do homem na sociedade, está sintetizado nesta frase de Simone: "não há uma só pegada do meu caminho que não passe pelo caminho do outro".