Critica (Machado de Assis, 1910)/Fagundes Varela

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Meu prezado colega. — Ainda não é tarde para falar de Varela. Não o é nunca para as homenagens póstumas, se aquele a quem são feitas as merece por seus talentos e ações. Varela não é desses mortos comuns cuja memória está sujeita à condição da oportunidade; não passou pela vida, como a ave no ar, sem deixar vestígio; talhou para si uma larga página nos anais literários do Brasil.

É vulgar a queixa de que a plena justiça só começa depois da morte; de que haja muita vez um abismo entre o desdém dos contemporâneos e a admiração da posteridade. A enxerga de Camões é cediça na prosa e no verso do nosso tempo; e por via de regra a geração presente condena as injúrias do passado para com os talentos, que ela admira e lastima. A condenação é justa, a lástima é descabida porquanto, digno de inveja é aquele que, transpondo o limite da vida, deixa alguma coisa de si na memória e no coração dos homens, fugindo assim ao comum olvido das gerações humanas.

Varela é desses bem-aventurados póstumos. Sua vida foi atribulada; seus dias não correram serenos, retos e felizes. Mas a morte, que lhe levou a forma perecível, não apagou dos livros a parte substancial do seu ser; e esta admiração que lhe votamos é certamente prêmio, e do melhor.

Poeta de larga inspiração, original e viçosa, modulando seus versos pela toada do sentimento nacional, foi ele o querido da mocidade do seu tempo. Conheci-o em 1860, quando a sua reputação, feita nos bancos acadêmicos, ia passando dali aos outros círculos literários do país. Seus companheiros de estudo pareciam adorá-lo; tinham-lhe de cor os magníficos versos com que ele traduzia os sonhos de sua imaginação vivaz e fecunda. Havia mais fervor naquele tempo, ou eu falo com as impressões de uma idade que passou?

Parece-me que a primeira hipótese é a verdadeira. Vivia-se de imaginação e poesia; cada produção literária era um acontecimento. Ninguém mais do que Varela gozou essa exuberância juvenil; o que ele cantava imprimia-se no coração dos moços.

Se fizesse agora a análise dos escritos que nos deixou o poeta das Vozes da América, mostraria as belezas de que estão cheios, apontaria os senões que porventura lhe escaparam. Mas que adiantaria isto à compreensão pública? A crítica seria um intermediário supérfluo. O "Cântico do Calvário", por exemplo, e a "Mimosa", não precisam comentários, nem análises; lêem-se, sentem-se, admiram-se, independente de observações críticas.

"Mimosa" que acabo de citar, traz o cunho e revela perfeitamente as tendências da inspiração do nosso poeta. É um conto da roça, cuja vida ele estudou sem esforço nem preparação, porque a viveu e amou. A natureza e a vida do interior eram em geral, as melhores fontes da inspiração de Varela, ele sabia pintá-los com fidelidade e viveza raras, com uma ingenuidade de expressão toda sua. Tinha para esse efeito a poesia de primeira mão, a genuína, tirada de si mesmo e diretamente aplicada às cenas que o cercavam e à vida que vivia.

Adiantando-se o tempo, e dadas as primeiras flores do talento em livros que todos conhecemos, planeou o poeta uni poema, que deixou pronto, embora sem as íntimas correções, segundo se diz.

Ouvi um canto do Evangelho nas Selvas, e imagino por ele o que serão os outros. O assunto era vasto, elevado, poético; tinha muito por onde seduzir a imaginação do autor das Vozes da América. A figura de Anchieta, a Paixão de Jesus, a vida selvagem e a natureza brasileiras, tais eram os elementos com que ele tinha de lutar e que devia forçosamente vencer, porque iam todos com a feição do seu talento, com a poética ternura de seu coração. Ele soube escolher o assunto, ou antes o assunto impôs-se-lhe com todos os seus atrativos.

O Evangelho nas Selvas será certamente a obra capital de Varela; virá colocar-se entre outros filhos da mesma família, o Uruguai e Os Timbiras, iras, entre os Tamoios e o Caramuru.

A literatura brasileira é uma realidade e os talentos como o do nosso poeta o irão mostrando a cada geração nova, servindo ao mesmo tempo de estímulo e exemplo. A mocidade atual, tão cheia de talento e legítima ambição, deve pôr os olhos nos modelos que nos vão deixando os eleitos da glória, como aquele era, da glória e do infortúnio, tanta vez unidos na mesma cabeça. A herança que lhe cabe é grande, e grave a responsabilidade. Acresce que a poesia brasileira parece dormitar presentemente; uns mergulharam na noite perpétua; outros emudeceram, ao menos por instantes; outros enfim como Magalhães, Porto Alegre, prestam à pátria serviços de diferente natureza. A poesia dorme, e é mister acordá-la; cumpre cingi-la das nossas flores rústicas e próprias, qual as colheram Dias, Azevedo e Varela. para só falar dos mortos.