Homem de Mello e B. Pinheiro – A Constituinte perante a História e Sombras e Luz

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Encetando hoje estas conversas, não posso dissimular o sentimento de tristeza que me domina.


Olho em torno de mim e não vejo mais na arena aquela plêiade ardente que vinha todas as semanas, ao rés do chão, entrar nas justas literárias. Uns, levou-os a morte, outros prendem-se a cuidados mais sérios, alguns enfim foram-se para as justas políticas, e o folhetim, o garrido, o ameno, o viçoso folhetim perdeu os seus amigos e os seus leitores.


E contudo sempre me pareceu que o folhetim era uma função obrigatória e exclusiva, para a qual nunca devia soar a hora da morte ou a hora da política. Era um erro.


Tout arrive, dizia Taleirand, e foi preciso que eu visse o fato para acreditar que também ao folhetim devia chegar a hora da política e a hora da morte.


Nos bons tempos do folhetim era digna de ver-se a luta.


O estímulo entrava por muito no trabalho de cada um, do que resultava trabalharem todos com maior proveito e gloria. Hoje a melhor vontade há de nulificar-se no meio do caminho. É uma voz no deserto, sem eco nem competidores.


E é por isso que eu ficarei mui embaraçado se os leitores me perguntarem a que venho, eu, que nem tenho as razões de talento do mais ínfimo de outrora.


Não sei, é a minha resposta; e não creio que melhor se possa dar em grande número de circunstâncias da vida.


Venho talvez para nada.


Sobre a extemporaneidade desta aparição há ainda a esterilidade dos tempos, do que se poderia tirar uma conclusão: é que se os homens não abandonassem o folhetim, o folhetim seria abandonado pelos acontecimentos.


Para conservar-se a gente segregada da repartição política, diga-me o leitor, onde irá buscar matéria?


Na imaginação, responderá, o que eu acharia bem respondido, se a imaginação fosse nestas coisas matéria-prima, e não um simples condimento especial.


O que é certo é que nas notas que tomei para organizar estas páginas apenas encontro três assuntos. E pelo tom em que eles vão escritos posso acertadamente dizer que vão mais cheios de queixas que de caixas, como das frotas de açúcar da Bahia anunciava o padre Antônio Vieira.


Mas é preciso dar de mão às queixas para tratar das coisas.


Resume-se a minha bagagem da semana em dois livros e uma estréia.


O primeiro dos livros é uma reivindicação histórica escrita pelo sr. Homem de Melo, um dos mais notáveis talentos nacionais, no qual o verdor dos anos corre de par com a erudição e a proficiência literária. O título do livro é — A Constituinte perante a história. Trata o sr. Homem de Melo de provar que o período da Constituinte ainda não foi justamente apreciado pelos contemporâneos.


Um desejo constante de acertar, tanto na ordem das idéias, como na ordem dos fatos, eis o que se nota nos escritos do sr. Homem de Melo. É o que eu tive ainda ocasião de notar no pequeno mas excelente artigo que ele publicou na Biblioteca Brasileira, a respeito do golpe de Estado de 1823. O pensamento do sr. Homem de Melo é altamente patriótico. Ele quer liquidar imparcialmente o passado para tornar mais fácil o inventário das nossas coisas aos historiadores do futuro. É difícil a tarefa, nem o sr. Homem de Melo dissimula: julgar a frio os homens de quem parece ouvir-se ainda os passos no caminho do nosso passado político, violentar as nossas afeições, modificar as nossas antipatias, é uma obra de consciência e de coragem, digna e honrosa, é certo, mas nem por isso fácil de empreender.


Compenetrado desta verdade, o sr. Homem de Melo procura e consegue evitar o perigo. Para esse resultado, em que toma parte a consciência do escritor, tenho para mim que contribui no seu tanto a índole do homem.


É o sr. Homem de Melo de natural frio e meditativo. Parece que tem medo à precipitação e à involuntariedade, medo que sempre foi uma das primeiras virtudes do historiador.


Para estudiosos tais são necessários os louvores, não somente como prêmio e animação a esses, mas ainda como estímulo a outros. Que o sr. Homem de Melo prossiga nas suas investigações histórico-políticas e que outros o imitem em trabalhos tão sérios, é o mais legítimo desejo de quem ama a vitória do pensamento e da verdade.


Falei no que o historiador pode tirar da história; passarei a falar no que a história fornece ao romancista.


“Querem romances? perguntava Guizot. Por que não encaram de perto a história?”


  • * *


Eis o que o sr. B. Pinheiro, romancista português, compreendeu desde que entrou no comércio das letras. Sombras e luz, romance histórico, que tenho diante dos olhos, é o terceiro livro deste gênero que o sr. B. Pinheiro dá à publicidade. Arzila e a Silha do povo foram os dois primeiros. Interrogar a vida pública e a vida íntima dos tempos que foram, eis a ocupação predileta e exclusiva do autor.


Ele divide o tempo entre o estudo da história e o estudo dos modelos.


Para descansar da consulta das crônicas vai ler Herculano e Walter Scot, seus autores favoritos; em se fatigando destes volta de novo aos in-fólios dos velhos tempos.


Sombras e Luz significam as glórias e os erros do reinado de Dom Manuel. Tais são as promessas que o autor nos faz no prefácio, e tal é o pensamento manifesto que domina o livro. É este livro isento de defeitos? Francamente não, e o principal defeito não é decerto o pouco desenvolvimento que o autor deu às bases indicadas no prefácio.


Declarando que o seu livro é um simples ensaio de romance histórico, como os precedentes, devia contudo o autor ter em vista uma explanação mais cabal do assunto, para o que não lhe faltava nem talento nem elemento de observação.


Disto resulta que os caracteres estão desenhados apressadamente, sem aquela demorada observação que o autor nos revela em muitas páginas. Tendo de ligar a ação imaginada à tela dos acontecimentos, o autor cuidou menos dos sentimentos morais dos seus personagens, para tratar miudamente das situações e dos fatos.


Em apoio desta observação citarei a visita que Eulália e Luiz, de volta de Hamburgo, fazem a Duarte Pacheco. É evidente que esta visita tem por único fim apresentar em cena o herdeiro da Índia; mas reparou o autor na inverossimilhança desta visita de dois jovens, raptados em criança para terra estrangeira, e voltando ao país natal não havia muitas horas? Eles, que no exílio se ocultavam para falar a língua pátria, e que, pondo o pé em Lisboa, já vinham influenciados por uma simpatia mais terna, podiam acaso sentir aquela admiração e entusiasmo por Duarte Pacheco?


Mas deixemos este pormenor e, entremos em uma apreciação mais larga. À míngua de espaço farei apenas uma observação, mas capital, no meu entender.


Eulália e Luiz, embora filhos de pais diversos, nunca tiveram conhecimento desse fato e antes se acreditavam irmãos. Como irmãos foram educados e por irmãos se tiveram em terra estranha. Que melhores elementos tinha o autor para enobrecer e fazer interessar os seus personagens? A afeição fraternal, aumentada na orfandade da pátria e da família, seria neles um vínculo nobre e apertado, legítimo e natural. Não creio que de outro modo pudessem interessar mais. Nele a proteção, nela o desvelo, em ambos a dedicação mútua, eis aí uma tela que dava lugar aos quadros mais comoventes e interessantes.


Em vez disso, o autor, apenas voltam os dois irmãos a Portugal, apresenta-os como sentindo um afeto menos desinteressado que o de irmãos. É ao princípio um sintoma, mais tarde é um fato positivo que se manifesta, não já por uma cena de enleio, mas por uma cena de paixão, com todos os pormenores, sem faltar o beijo longo e absorvente


Ora, quaisquer que sejam as razões que se apresentem em contrário, eu tenho esse amor por incestuoso. Não toma a educação grande parte nestas coisas? A fé em que estavam ambos do vínculo que os unia, não era um impedimento moral, não digo já à manifestação, mas ao nascimento de semelhante amor?


Em duas almas bem formadas, não bastaria isso para repelir tal sentimento?


É verdade que Luiz, desde o princípio, manifesta a desconfiança de que Eulália não é sua irmã; mas essa desconfiança não resulta de fato algum, é puramente uma desconfiança do coração, na qual sou forçado a ver menos involuntariedade do que parece haver.


Acontece justamente aquilo que eu não quisera ver em uma obra, por muitos títulos recomendável, como as Sombras e Luz.


Este amor é a glorificação dos instintos; os sentimentos morais não intervêm nele por modo nenhum.


O autor das Sombras e Luz, quero acreditá-lo, há de convir comigo, que esta glorificação dos instintos, a despeito da vitória que lhe dê o favor público, nada tem com a arte elevada e delicada. É inteiramente uma aberração, que, como tal, não merece os cuidados do poeta e as tintas da poesia.


Faço está observação com plena liberdade, podendo, em compensação, mencionar o muito que há para louvar nas Sombras e Luz. Abundam nesse romance as situações pitorescas, o colorido da descrição; o estilo é correto, puro e brilhante; o diálogo vivo e natural.


O que sobretudo recomenda o livro e o autor é a convicção com que este se enuncia, tanto no entusiasmo pelas boas idéias e os grandes fatos, como na repulsão dos sucessos odiosos e dos princípios errôneos. É este o meio seguro de interessar o livro e arrastar o leitor.


Falo assim por experiência. Foi-me preciso ler e reler o capítulo X e a nota correspondente, para dar o justo valor à ilusão em que o autor está acerca dessa formação de um tribunal comum a todos os povos e essa universalidade de dedicações à causa da verdade.


Entre os que acreditam isso impossível e os que, como o sr. B. Pinheiro, estão convencidos da sua praticabilidade, há um meio termo que é a minha opinião.


Todos devemos crer no progresso e na vitória da justiça; mas o que presenciamos atualmente não alimenta a esperança de ver a sociedade universal depender, como diz o autor, da vontade de um governo, do governo inglês, por exemplo.


Esse parlamento comum a todos os povos seria uma simples transformação da instituição diplomática. Haveria as mesmas cabalas, o mesmo sucesso de força numérica, a mesma violência das leis do justo e do honesto. Que o autor manifestasse a esperança de ver o mundo, após o trabalho incessante dos filósofos e dos pensadores, chegar a um estado de poder aproximar-se da realização de um tal sonho, é o que assentaria bem na sua imaginação de poeta; mas daqui até lá quantas gerações não voltarão ao pó, e quantas vezes não há de a justiça cobrir o rosto de vergonha?


Nesta crítica à convicção íntima do autor é ainda um elogio que lhe faço rendendo preito à sinceridade do entusiasmo de que ele se toma pelas idéias humanitárias e grandiosas.


Em resumo, Sombras e Luz, salvo os reparos que ligeiramente fiz, merece a atenção dos escritores; é mais uma prova que o sr. B. Pinheiro nos dá de que toma a peito aperfeiçoar-se no gênero que encetou. Estou certo de que com o talento e a observação que possui desenvolverá, mais e mais, os já tão desenvolvidos elementos que se encontram nas Sombras e Luz.


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Resta-me falar da estréia o sr. César de Lacerda, ator português, que estreou no Teatro Lírico, no papel de Carlos do Cinismo, ceticismo e crença.


A estréia do artista, o objeto do espetáculo (era uma obra de beneficência), a variedade do programa, o concurso de artistas como Arthur Napoleão e Rafael Croner, sendo que este fazia-se ouvir pela última vez, todos esses motivos deram lugar a uma enchente de espectadores.


Minhas impressões acerca do sr. César de Lacerda foram das melhores.


Dotado de uma agradável presença, sua entrada em cena foi simpaticamente recebida.


Pertence o sr. César de Lacerda a uma boa escola. O gesto natural, sóbrio, elegante, a fisionomia insinuante e móbil; a dicção correta; a gravidade, a naturalidade, eis o que faz ver no sr. César de Lacerda um minucioso e aproveitado estudo dos princípios e recursos da arte.


Fazia um papel em que uma aptidão inferior teria roçado pela exageração, e soube, sem empalidecê-lo nem exagerá-lo, dar-lhe esse tom natural e próprio que os sentidos delicados gostam de ver em tais criações.


A maneira distinta com que representou fez dissimular o timbre da sua voz, de algum modo desagradável, cujo efeito as dimensões do teatro de maneira alguma podiam atenuar.


Os aplausos que recebeu no fim da peça, mereceu-os; espero agora o seu aparecimento em um novo papel, para confirmar as impressões anteriores, ou observar o que, por ventura, me sugerir a nova estréia.


Como disse acima, era a noite em que o sr. Rafael Croner se despedia de nós. Tocou umas variações no saxofone; foi como sempre. A platéia deu-lhe nos últimos aplausos os últimos adeuses, como eu lhos dou nestas últimas linhas, lamentando a ausência de um artista que, por seu talento e proficiência, onde pisa, conquista admiradores.