Marília de Dirceu/I/XXV

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O cego Cupido um dia
Com os seus Gênios falava
Do modo, que lhe restava
De cativar a Dirceu.
Depois de larga disputa,
Um dos Gênios mais sagazes
Este conselho lhe deu:

As setas mais aguçadas,
Como se em rocha batessem,
Dão no peito seu, e descem
Todas quebradas ao chão.
Só as graças de Marília
Podem vencer um tão duro,
Tão isento coração.

A fortuna desta empresa
Consiste em armar-se o laço,
Sem que sinta ser o braço,
Que lho prepara, de Amor:
Que ele vive como as aves,
Que já deixaram as penas
No visco do caçador.

Na força deste conselho
O raivoso Deus sossega,
E à tropa a honra entrega
De o fazer executar.
Todos pretendem ganhá-la;
Batem as asas ligeiros,
E vão as armas buscar.

Os primeiros se ocultaram
Da Deusa nos olhos belos:
Qual se enlaçou nos cabelos,
Qual às faces se prendeu.
Um amorinho cansado
Caiu dos lábios ao seio,
E nos peitos se escondeu.

Outro Gênio mais astuto
Este novo ardil alcança,
Muda-se numa criança
De divino parecer.
Esconde as asas, e a venda;
Esconde as setas, e quanto
Pode dá-lo a conhecer.

Ela que vê um menino
Todo de graças coberto,
Tão risonho, e tão esperto
Ali sozinho brincar,
A ele endireita os passos;
Finge Amor ter medo, e a Deusa
Mais que empenha em lhe pegar.

Ela corria chamando;
Ele fugia, e chorava:
Assim foram onde estava
O descuidado Pastor.
Este, mal viu a beleza,
E o gentil menino, entende
A malícia do traidor.

Põe as mãos sobre os ouvidos,
Cerra os olhos, e constante
Não quer ver o seu semblante,
Não o quer ouvir falar.
Qual Ulisses noutra idade
Para iludir as Sereias
Mandou tambores tocar.

Cupido, que a empresa via,
Julga o intento frustrado,
E de raiva transportado
O corpo na chão lançou.
Traçou a língua nos dentes;
Meteu as unhas no rosto,
E os cabelos arrancou.

O Gênio, que se escondia
Entre os peitos da Pastora,
Ergueu a cabeça fora,
E o sucesso conheceu.
Deixa o sossego em que estava,
E vai ligeiro meter-se
No peito do bom Dirceu.

Apenas do brando peito
Lhe tocou a neve fria,
Com o calor, que trazia,
Lhe abrasou o coração.
Dá o Pastor um suspiro,
Abre os seus olhos, e solta
Do apertado ouvido a mão.

Logo que viram os Gênios
Ao triste Pastor disposto
Para ver o lindo rosto,
Para as palavras ouvir,
Cada um as armas toma,
Cada um com elas busca
Seu terno peito ferir.

Com os cabelos da Deusa
Lhe forma um Cupido laços,
Que lhe seguram os braços,
Como se fossem grilhões.
O Pastor já não resiste;
Antes beija satisfeito
As suas doces prisões.