Memórias de um Sargento de Milícias/XV

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Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores, o Leonardo de modo algum queria emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia, dos granadeiros e do Vidigal esqueceu-se da cigana, ou antes só pensava nela para jurar esquecê-la; quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando, começou a renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade, em que esta última quase triunfava, quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo. Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre-de-cerimônias da Sé! Subiu-lhe com isto o sangue à cabeça:

— Pois um padre!?... dizia ele; é preciso que eu salve aquela criatura do inferno, onde ela se está metendo já em vida...

E começou de novo em tentativas, em promessas, em partidos para com a cigana, que a coisa alguma queria dobrar-se. Um dia que a pilhou de jeito à janela abordou-a, e começou ex-abrupto a falar-lhe deste modo:

— Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...

A cigana interrompeu-o:

— Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...

— Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...

— Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou, estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...

— Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem vingado.

— Ora! respondeu a cigana rindo-se.

E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.

O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:

— Faço uma estralada, dê no que der...

Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos; segundo o costume, apenas apareceu este pretexto, armou-se logo uma função: não nos daremos ao trabalho de descrevê-la; em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era: viola, modinhas, fado, algazarra, e estava a festa completa. O Leonardo soube logo do que havia, e jurou que esse seria o dia da vingança.

Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado.

Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível. Seu verdadeiro nome era Francisco, e por isso chamaram-no a princípio-Chico-; porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo, e a quem chamavam-Juca,-juntaram este apelido ao seu, como honra pela vitória, e chamaram-no daí em diante-Chico-Juca.

Este homem era o desespero do Vidigal; tinha-lhe já pregado umas poucas, porém ainda não tinha sido possível agarrá-lo. Os granadeiros conheciam-no às léguas, porém nunca conseguiram pôr-lhe as mãos.

Tendo levado todo o dia à espreita, o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre-de-cerimônias, pela volta de ave-maria, quando ainda não tinha começado a função.

— Ah! nem esta noite quer perder?! Pois há de sair-lhe cara a funçanata...

Saiu dali e foi direito procurar o Chico-Juca, que era seu antigo conhecido; achou-o em uma taverna defronte do Bom Jesus. O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vicio da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vicio da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas, e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.

Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu-lhe o Leonardo.

— Olá, mestre pataca! disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana...

— É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar.

— Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! nunca tive tal habilidade...

— Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha...

— Ui! temos dança?... vai-te embora... tu não és capaz de armar um sarilho... sempre foste um podre!...

— Bem sei, eu não sou capaz... mas tu... tu que és mestre disto...

— Eu... então por que diabo e onde queres tu que eu arme esse sarilho?. . .

— Não te hás de arrepender, disse o Leonardo batendo significativamente com os dedos no bolso do colete.

O Chico-Juca entendeu o verso; carregou o chapéu um pouco mais para o lado, e pôs-se a escutá-lo com curiosidade.

O Leonardo disse então o que queria: tratava-se nada menos do que de ir o Chico-Juca nessa mesma noite, fosse como fosse, à função da cigana, e de armar ali por alta noite uma grande desordem: preveniu-o logo que o Vidigal havia de estar por perto; e assim, apenas estivesse armada a história, era pôr-se ao fresco. A causa de tudo isto o Leonardo não lhe quis explicar, e também ele não teve grande curiosidade de saber: tratava-se de uma desordem; fosse qual fosse o motivo, estava sempre pronto. Assim, depois de se regatear um pouco o preço, chegaram os dois a um acordo, e ficou tudo tratado.

Deixando o Chico-Juca, o Leonardo foi procurar o Vidigal, e deu-lhe parte do que naquela noite havia em casa da cigana, e afiançou-lhe que a coisa acabava por força em desordem. Portanto cumpria que o Sr. major por lá aparecesse para o que desse e viesse.

— Está bem, disse-lhe o Vidigal; você quer tirar sua desforra; é justo. Lá hei de ir, e não precisava a sua advertência, pois já sabia que havia hoje por lá anos, e tinha tenção de aparecer.

O Leonardo retirou-se contente vendo que seu plano saía às mil maravilhas, e dispôs-se a gozar do resultado, pondo-se à espreita de lugar conveniente. Começou a brincadeira. Já se tinha cantado meia dúzia de modinhas e dançado por algum tempo a tirana, quando o Chico-Juca apareceu, e por intermédio de um conhecido (ele os tinha em toda parte) foi introduzido na sala, e começou a observar o que se passava. Havia na sala um quarto cuja porta estava fechada: de vez em quando a cigana lá entrava, demorava-se um pouco e saía; daí a pouco tornava a entrar levando consigo alguma das camaradas mais do peito, e tornava a sair; passado pouco tempo, entrava ainda levando outra amiga. Alguns faziam reparo nisso, outros porém não tinham desconfiança alguma. Ia a festa continuando, e lá pela meia-noite, quando começava a aferventar, foi de repente interrompida. Viu-se um dos rapazes que tocavam viola parar subitamente, e, interrompendo o estribilho da modinha que cantava, gritar enfurecido:

— Isto passa de mais... varro... menos essa, Sr. Chico-Juca; nada de graças pesadas com essa moça, que é cá coisa minha.

O Chico-Juca estava com efeito há mais de meia hora a dirigir graçolas das suas a uma moça que ele bem sabia que era coisa do rapaz que estava tocando: tanto fez, que este, tendo percebido, proferiu aquelas palavras que acabamos de ouvir.

— Você respinga?!... respondeu-lhe o Chico-Juca dirigindo-se para ele.

O rapaz, que não era peco, pôs-se em pé e replicou:

— Tenho dito, nada de graças com ela!...

Mal tinha pronunciado estas palavras quando o Chico-Juca, arrancando-lhe a viola da mão, bateu-lhe com ela em cheio sobre a cabeça; o rapaz reagiu, e começou a confusão.

O Chico-Juca foi acometido por um pouco; porém ligeiro e destemido, distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés: algumas mulheres meteram-se na briga, e davam e levavam como qualquer; outras porém desfaziam-se em algazarra. De repente o Chico-Juca embarafustou pela porta fora, e desapareceu.

Era tempo, porque não se tinha passado muito tempo quando assomou na porta, que ele deixara aberta, a figura tranqüila do Vidigal, rodeada por uma porção de granadeiros. O Chico-Juca tinha-lhes escapado, apesar de o terem visto quando saía, porque o major, sendo nessa ocasião poucos os soldados, não quis mandar segui-lo com medo que lhe faltasse gente, pois via que dentro da casa o negócio estava feio. Entrou, pois, deixando-o passar.

Apenas o viram, pararam todos aterrados.

— Então que briga é esta?... disse ele descansadamente.

Começaram todos a desculpar-se como podiam; e segundo o crédito que mereciam pela sua reputação era-lhes distribuída a justiça: se era sujeito já conhecido, e que não era aquela a primeira em que entrava ficava de lado, e um granadeiro tomava conta dele; os outros eram mandados embora. Neste ínterim a cigana muito perturbada olhava repetidas vezes para a porta do quarto, dando sinais da mais viva inquietação. Não escapou isto ao Vidigal, que no fim de tudo disse a um granadeiro:

— Revista aquele quarto...

A cigana deu um grito; o granadeiro obedeceu e entrou no quarto: ouviu-se então um pequeno rumor, e o Vidigal disse logo cá de fora:

— Traz para cá quem estiver lá dentro.

No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev. mestre-de-cerimônias em ceroulas curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela, e solidéu à cabeça.

Apesar dos aparos em que se achavam, todos desataram a rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados.

Esta última pôs-se aos pés do Vidigal, mas ele foi inflexível; e o Rev. foi conduzido com os outros para a casa da guarda na Sé, sendo-lhe apenas permitido pôr-se em hábitos mais decentes.