Memórias de um Sargento de Milícias/XXXII

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A comadre correra toda a cidade, e em parte alguma encontrara o Leonardo; enquanto cansava-se assim a procurá-lo, estava ele tranqüilo e descansado mirando-se nos olhos de Vidinha, regalando-se a ouvir modinhas, como sabem os leitores, sem se lembrar do que ia pelo mundo.

A pobre mulher, depois de muito cansada, foi ter à casa de D. Maria. Era já noite fechada.

Quando ela entrava saía o mestre-de-reza que acabava de dar a sua lição às crias de casa. A comadre há algum tempo que andava desconfiada do mestre-de-reza; combinando o que por aí se dizia do seu crédito com certas coisas que tivera ocasião de presenciar, estava quase a concluir que era ele emissário de José Manuel junto à corte de D. Maria. Não gostou portanto do encontro, e doeu-lhe o cabelo vê-lo sair àquela hora, pois que de ordinário as lições não se demoravam até tão tarde; e para metê-lo à bulha disse-lhe:

— A lição hoje foi comprida, devoto... as raparigas parece que gostam mais? da lambetice do que da reza.

— Não, respondeu o velho com sua voz fanhosa, elas não vão mal, empacam em alguns lugares, mas sempre vão indo; bem sabe também que sempre trago comigo o santo remédio.

E afagou o cabo da palmatória com que sempre andava armado.

— Ah! então esteve o devoto de conversa; gosta também de dar à língua...

— Não desgosto; mas também não digo senão aquilo que sei, isto é, aquilo que ouço; os outros gastam o seu tempo a ver e a ouvir; eu, como não posso senão ouvir, emprego a falar o que os mais empregam a ver; falo, e falo muito; mas que quer se me sobra tempo para isso; e demais, bem sabe que não é trabalho que canse. Meus pais eram Algarves, e eu não quero desmentir a minha paternidade.

— Então já sei que hoje desenterraram-se mortos e enterraram-se vivos; pois eu não posso fazer outro tanto, porque vou aqui muito e muito zangada de minha vida. Se o devoto, como é homem que muito gira por toda esta cidade, souber por aí notícias de meu afilhado Leonardo, queira vir dar-me parte, pois saiu-nos ele hoje de casa lá por causa de umas histórias, e não sei por onde andará dando com os ossos.

— Ora, isto fica por minha conta; não há nada mais fácil do que dar com ele.

E aqui terminou esta conversa que tinha lugar na porta da rua, e com a qual não ficara a comadre muito contente. D. Maria, que ouvira tudo, veio ao encontro da comadre, e foi-lhe logo dizendo antes de lhe dar tempo de tirar a mantilha:

— Então já o rapaz não está em casa? Senhora, aquilo é gênio, nasceu com ele, e com ele há de ir à sepultura. Bem me diziam o que ele era, e apesar do seu ar sonso nunca lhe fiz fé.

— Adeus que me está a senhora a pôr culpas em quem não as tem; o rapaz desta vez tem toda a razão...

— Ora, histórias da vida; isso diz você porque o estima como se fosse sua mãe; mas vá com esta que eu lhe digo: os rapazes de agora andam de cabeça levantada... Mas o defunto padrinho-Deus lhe fale n’alma,-foi o próprio que teve culpa de tudo isso com aquelas fumaças de Coimbra que lhe meteu na cabeça...

— Mas, senhora de Deus, se o bruto do pai até chegou a corrê-lo de espada na mão...

— Que tal não faria ele! mas que tinha isso? o pai não o havia esquartejar... por certo, que eu bem lhe conheço o gênio; aquilo era raiva, e havia de passar; devia ele sujeitar-se... sempre é seu pai.

— Com a Virgem Santa! pois se tudo isso foi por uma coisa de nada, por causa de uma almofada de renda... Isto é coisa em que se creia?!... E agora para onde é que há de ir aquele coitado?...

— Há de estar por aí metido em algum fado de ciganos; não se lembra do que ele fez quando o padrinho era vivo?

— Ora, criançadas... para que falar nisso?

Este diálogo ia continuando interminável sobre o mesmo assunto, quando D. Maria, mudando repentinamente de conversa, disse à comadre:

— Ora é verdade, sente-se para cá que temos contas que ajustar...

— Contas!...

— E muito compridas, começo por dizer, acrescentou D. Maria, que não parecia estar nesta ocasião de muito bom humor; começo por dizer-lhe mesmo na bochecha que quando for à confissão este ano trate de desobrigar-se de um grande pecado que cometeu.

— E eu que já não tenho poucos: mas então o que é?

— É um aleive, senhora, um aleive muito grande que levantou a pessoa que tal não merecia.

A comadre não precisou de mais nada para conhecer onde é que tudo aquilo ia parar; o aleive mais moderno de que a acusava a sua consciência bem sabia ela qual era. Começou a ver tudo claro como o dia; viu José Manuel justificado completamente aos olhos de D. Maria a respeito da história do roubo da moça no Oratório de Pedra, e viu também como medianeiro dessa justificação o cego mestre-de-reza. Ficou pois visivelmente incomodada; volvia-se de um para outro lado, como se estivesse cheia de espinhos a banquinha em que estava sentada, e teve um forte acesso de tosse quando D. Maria acabou de pronunciar aquelas últimas palavras.

— Tudo quanto me disse a respeito de José Manuel naquela história do roubo da moça, continuou D. Maria fazendo-se vermelha, o que era nela mau sinal, é falso, e muito falso. Sei isto de parte muito certa...

Novo acesso de tosse acometeu a comadre.

— Pois olhe, prosseguiu D. Maria, tinha eu dado todo o crédito, tanto que havia rompido por um excesso com o pobre do homem, mas não caio noutra; esta me serviu de emenda.

A comadre viu que o vento se lhe ia tornando absolutamente contrário; compreendeu que D. Maria estava muito bem informada, e que inútil seria qualquer sustentação que pretendesse fazer de tudo quanto havia avançado; isso só serviria para agravar-lhe a posição.

Forjou pois repentinamente um novo plano e disse:

— Não me dá nada de novo, senhora; sei muito bem de tudo; o homem está nesse negócio como Pilatos no Credo.

— Mas lembre-se que me havia dito que tinha visto com seus próprios olhos.

— Ah! senhora, era o diabo por ele; nunca vi coisa assim tão parecida. Outro dia porém soube de tudo, e agora estou arrependida.

— Mandei por isso chamar o pobre homem, continuou D. Maria, que de ofendido que estava com o modo por que eu o tratava custou muito a vir, e abri-me aqui com ele. E uma coisa lhe digo, é que a comadre não está bem no negócio; ele expôs-me certas coisas... a que eu enfim não quis dar crédito.

— Pois então a senhora disse-lhe que eu é que...

— Não fui eu quem lhe disse; ele já o sabia, e não era possível negar-lho. Foi então que ele me quis abrir os olhos sobre outros pontos...

A comadre, que via todo o caldo entornado naqueles outros pontos, tratava de desviar a conversação, fazendo que não dera atenção a essas últimas palavras.

— Mas então, perguntou, por quem foi que soube como tinha sido o negócio? quero ver se combina cá com o que sei.

— Ainda há pouco acabou de sair daqui quem me pôs o negócio todo em pratos limpos.

— Ah! disse a comadre.

E mordeu os beiços, fazendo um gesto que queria dizer: "nunca me enganei!"

D. Maria prosseguiu contando à comadre que tendo falado em semelhante negócio ao mestre-de-reza, ele lhe havia negado tudo quanto esta lhe dissera a respeito de José Manuel; que muito tempo lutara com o velho para que lhe dissesse o que sabia a respeito e em que fundava a denegação que fazia; que finalmente, depois de grande resistência, tinha-lhe ele trazido à casa, mesmo no dia antecedente, o pai da moça, que tudo confessara, declarando até o nome da pessoa com quem se achava sua filha, que ele já conhecia, e com quem tinha feito as pazes.

— É exatamente o que eu sabia, disse a comadre no fim da narração; foi tudo assim mesmo. Veja, senhora, a que está sujeita a gente nesta vida: a levantar falsos aos mais.

Agora informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito obra do mestre-de-reza. Pouco a pouco se tinha instruído do que se passava em casa de D. Maria a respeito do seu cliente José Manuel; tinha conseguido saber quem havia armado a intriga; indagou também o que se passava em casa de Leonardo-Pataca; e como lá se falava um pouco alto a respeito das pretensões de Leonardo, combinando umas coisas com outras, chegaram à conclusão certíssima daquilo que com efeito se passara.

D. Maria pareceu dar crédito ao arrependimento da comadre, e começou-lhe a aplacar o humor um pouco desabrido em que se achava.

Voltaram à questão da saída do Leonardo de casa, e desta vez já D. Maria não se mostrou tão inflexível para com o rapaz. Entretanto à comadre não lhe saíram da cabeça aquelas palavras de D. Maria: "abriu-me os olhos sobre outros pontos"; e depois que viu D. Maria mais apaziguada, tentou chamar de novo a conversa para esse ponto, e como que pedir explicações. Ela previa a significação daquelas palavras, sem dúvida nenhuma que se referiam às suas pretensões ou às de seu afilhado sobre Luisinha, porém queria saber as cores com que esse negócio tinha sido pintado a D. Maria por José Manuel.

Isso foi-lhe porém fatal, porque soube (o que lhe não foi nada agradável) que o negócio estava muito mal parado a respeito do seu afilhado, e pelo contrário muito adiantado a favor do seu adversário. D. Maria, depois de declarar que José Manuel se tinha queixado da comadre, atribuindo-lhe tudo que se havia passado, que não era mais do que uma intriga urdida com o fim de o apartar de sua casa, porque tinham sobre ele caído suspeitas, que confessava justas, acrescentou finalmente que José Manuel, completamente justificado, graças à intervenção do mestre-de-reza, acabara por lhe dar a entender alguma coisa a respeito de Luisinha, o que D. Maria confessou não lhe ter sido totalmente desagradável, porque enfim, segundo alegava, José Manuel era um homem sisudo e de juízo, tinha corrido mundo, e não era nenhuma criançola (esta palavra doeu à comadre) que não fosse capaz de tratar bem de uma moça. A comadre descoroçoou completamente com estas últimas declarações; porém o que fazer na ocasião? Ela mesma tinha há pouco confessado o risco em que se está a cada momento de ser injusto com o próximo, e não podia sem risco aventurar, pelo menos naquela ocasião, alguma coisa contra José Manuel, tanto mais que tão mal se havia saído da primeira intriga que armara. Contentou-se pois com repetir uma observação que D. Maria mesma lhe havia feito há pouco tempo, e disse, referindo-se a Luisinha:

— Gente, pois aquela criança já está para essas!...

— Sim, respondeu D. Maria, está ainda verdezinha, mas também isso não é sangria desatada.

A comadre respirou, pois viu que ainda havia tempo a ganhar.