Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Mysterios de um Phosphoro

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Mysterios de um Phosphoro

 

Pego de um phosphoro. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Tumulos dentro de um carvão promiscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psychê humana tece e
O outro é o do sonho altruistico da especie
Que é o substractum dos sonhos do individuo!

E exclamo, ébrio, a esvasiar bácchicos odres:
— «Cinza, synthese má da podridão,
«Miniatura allegorica do chão,
«Onde os ventres maternos ficam pôdres;

«Na tua clandestina e erma alma vasta,
«Onde nenhuma lampada se accende,
«Meu raciocinio sóffrego surprehende
«Todas as fórmas da materia gasta!»

Raciocinar! Aziaga contingencia!
Ser quadrupede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Christo e ser Moysés
Porque é ser animal sem ter consciencia!

Bebedo, os beiços na amphora infima, harto,
Mergulho, e na infima amphora, harto, sinto
O amargor especifico do absintho
E o cheiro animalissimo do parto!

E afógo mentalmente os olhos fundos
Na amorphia da cytula inicial,
De onde, por epigénese geral,
Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, atravez ovoide e hyalino
Vidro, apparece, amorpho e lúrido, ante
Minha massa encephalica minguante
Todo o genero humano intra-uterino!

É o cháos da ávita viscera avarenta
— Mucosa nojentissima de pús,
A nutrir diariamente os fétos nús
Pelas villosidades da placenta! —

Certo, o architectural e integro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nelle
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquelle
Que vem de um ventre inchado, infimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abysmos
— Zooplasma pequenissimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. —

Depois, é o ceu abscóndito do Nada.
É este acto extraordinario de morrer
Que ha de, na ultima hebdómada, attender
Ao pedido da céllula cansada!

Um dia restará, na terra instavel,
De minha anthropocéntrica matéria
Numa concava chicara funerea
Uma colher de cinza miseravel!

Abro na treva os olhos quasi cégos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pae me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dynamo despota, sósinho,
Sob a morphologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibrateis.

Então, do meu espirito, em segredo,
Se escapa, dentre as ténebras, muito alto,
Na synthese acrobatica de um salto,
O espectro angulosissimo do Medo!

Em scismas philosophicas me perco
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na amphigonia que me produziu
Nonilliões de moleculas de esterco.

Vida, mónada vil, cosmico zéro,
Migalha de albumina semi-fluida,
Que fez a bocca mystica do druida
E a lingua revoltada de Luthero;

Teus gyneceus prolificos envolvem
Cinza fetal!. Basta um phosphoro só
Para mostrar a incognita de pò,
Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o connúbio incestuoso
Dessas affinidades electivas,
De onde chimicamente tu derivas,
Na acclamação symbiótica do gozo!

O enterro de minha ultima neurona
Desfila... E eis-me outro phosphoro a riscar,
E esse accidente chimico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise arthritica não tarda.
Adeus! Que eu vejo emfim, com a alma vencida,
Na abjecção embryologica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!

 

Parahyba, 1910