Noite na Taverna/IV

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Meurs ou tue!
Corneille


— Gennaro, dormes, ou embebes-te no sabor do último trago do vinho, da última fumaça do teu cachimbo?

— Não: quando contavas tua historia, lembrava-me uma folha da vida, folha seca e avermelhada como as do outono, e que o vento varreu.

— Uma historia?

— Sim: e uma das minhas historias: sabes, Bertram, eu sou pintor, e uma lembrança triste essa que vou revelar, porque e a historia de um velho e de duas mulheres, belas como duas visões de luz.

Godofredo Walsh era um desses velhos sublimes, em cujas cabeças as cãs semelham o diadema prateado do gênio. Velho já, casara em segundas núpcias com uma beleza de vinte anos. era pintor: diziam uns que este casamento fora um amor artístico por aquela beleza Romana, como que feita ao molde das belezas antigas — outros criam-no compaixão pela pobre moca que vivia de servir de modelo. O fato e que ele a queria como filha — como Laura, a filha única de seu primeiro casamento — Laura, corada como uma rosa, e loira como um anjo.

Eu era nesse tempo moço era aprendiz de pintura em case de Godofredo. Eu era lindo então! que trinta anos lá vão! que ainda os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar infantil, pensativo e melancólico como o Rafael se retratou no quadro da galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. — Nauza tinha vinte — e eu tinha dezoito anos.

Amei-a, mas meu amor era puro como meus sonhos de dezoito anos. Nauza também me amava: era um sentir tão puro! era uma emoção solitária e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos embalavam aos céus da Itália...

Como eu o disse — o mestre tinha uma filha chamada Laura. Era uma moca pálida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez era branca, e só as vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se destacavam no fundo de mármore. Laura parecia querer-me como a um irmão.. Seus risos, seus beijos de criança de quinze anos eram só para mim. A noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro com minha lâmpada, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas faces, nas trevas.

Muitas noites foi assim.

Uma manhã — eu dormia ainda — o mestre saíra e Nauza fora a igreja — quando Laura entrou no meu quarto e fechou a porta: deitou-se a meu lado. Acordei — nos braços dela.

O fogo de meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza, ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater sobre 0 meu: isso tudo ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu...

Todas as manhas Laura vinha a meu quarto...

Três meses passaram assim. Um dia entrou ela no meu quarto e disse-me:

— Gennaro, estou desonrada para sempre... A principio eu quis-me iludir — já não o posso — estou de esperanças...

Um raio que me caísse aos pés me assustaria tanto.

— E preciso que cases comigo — pai, ouves, Gennaro?

Eu calei-me.

— Não me amas então?

Calei-me ainda.

— Oh! Gennaro, Gennaro!

E caiu no meu ombro desfeita em soluços. Carreguei-a assim fria e fora de si para seu quarto.

Nunca mais tornou a falar-me em casamento.

Que havia de eu fazer? contar tudo ao pai e pedi-la em casamento? Fora uma loucura... Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua casa...: E Nauza? cada vez eu a amava mais. Era uma lute terrível essa que se travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso.

Laura não me falara mais. Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se mais pálida, mas a gravidez não crescia, antes mais nenhum sinal se lhe notava.

O velho levava as noites passeando no escuro. Já não pintava. Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma harmonia de morte, que empalidecia cada vez mais, o misérrimo arrancava as cãs.

Eu contudo não esquecera Nauza, nem ela se esquecia de mim. Meu amor era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e de sede que me banhavam de lágrimas o travesseiro. Só as vezes a sombra de um remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas névoas...

Uma noite... foi horrível... vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas e confusas lhe soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face úmida de um suor copioso: chamou-me. Sentei-me junto do leito dela. Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meus ouvidos:

— Gennaro, eu te perdôo: eu te perdôo tudo...Eras um infame... Morrerei... Fui uma louca... Morrerem... por tua causa... teu filho... o meu... vou vê-lo ainda... mas no céu... Meu filho que matei... antes de nascer...

Deu um grito: estendeu convulsivamente os braços como para repelir uma idéia, passou a mão pelos lábios como para enxugar as ultimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, lívida, fria, banhada de suor gelado, e arquejou... Era o ultimo suspiro.

Um ano todo se passou assim para mim. O velho parecia endoidecido. Todas as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura: levava ai a noite toda em solidão. Dormia? ah que não! Longas horas eu o escutei no silêncio arfar com ânsia, outras vezes afogar-se em soluços.

Depois tudo emudecia: o silencio durava horas — o quarto era escuro: e depois as passadas pesadas do mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes como de um bêbedo que cambaleia.

Uma noite eu disse a Nauza que a amava: ajoelhei-me junto dela, beijei-lhe as mãos, reguei seu colo de lágrimas. Ela voltou a face: eu cri que era desdém, ergui-me

— Então Nauza, tu não me amas, disse eu.

Ela permanecia com o rosto voltado.

— Adeus, pois: perdoai-me se vos ofendi: meu amor e uma loucura, minha vida e uma desesperança — o que me resta? Adeus, irei longe — longe daqui talvez então eu possa chorar sem remorso.

Tomei-lhe a mão e beijei-a.

Ela deixou sua mão nos meus lábios.

Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava debulhada em lágrimas.

— Nauza — Nauza — uma palavra, tu me amas?



Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre os vidros da janela aberta, e batia nela: nunca eu a vira tão pura e divina!



E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza.

Uma noite houve um fato pasmoso.

O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e chorava aquela voz cavernosa e rouca: tomou-me pelo braço com força acordou-me, e levou-me de rasto ao quarto de Laura.

Atirou-me ao chão: fechou a porta. Uma lâmpada estava acesa no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. — Era Laura moribunda! E eu macilento como ela tremia como um condenado. A moca com seus lábios pálidos murmurava no meu ouvido...

Eu tremi de ver meu semblante tão lívido na tela: e lembrei-me que naquele dia ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda pendurado a janela, eu me horrorizara de ver-me cadavérico...

Um tremor, um calafrio se apoderou de mim. Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era Laura que se erguia dentre os lençóis do seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito.

Por Deus! que foi uma agonia!

No outro dia o mestre conversou comigo friamente. Lamentou a falta de sua filha — mas sem uma lágrima: sobre o passado na noite, nem palavra.

Todas as noites era a mesma tortura, todos os dias a mesma frieza.

O mestre era sonâmbulo...

E pois eu não me cri perdido...

Contudo lembrei-me que uma noite, quando eu saia do quarto de Laura com o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por perto, roçaram-me uns cabelos soltos, e nas lájeas do corredor estalavam umas passadas tímidas de pés nus. Era Nauza que tudo vira e tudo ouvira, que se acordara e sentira minha falta no leito, que ouvira esses soluços e gemidos, e correra para ver...



Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh tomou sua capa e uma lanterna, e chamou-me para acompanhá-lo. Tinha de sair fora da cidade e não queria ir só. Saímos juntos: a noite era escura e fria. O outono desfolhara as arvores e os primeiros sopros do inverno rugam nas folhas secas do chão. Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhávamos pelas montanhas, cada vez o caminho era mais solitário. O velho parou. Era na fralda de uma montanha. A direita o rochedo se abria num trilho: a esquerda as pedras soltas por nossos pés a cada passada se despegavam e rolavam pelo despenhadeiro, e instantes depois se ouvia um som como de água onde cai um peso...

A noite era escuríssima. Apenas a lanterna alumiava o caminho tortuoso que seguíamos. O velho lançou os olhos a escuridão do abismo e riu-se.

— Espera-me ai, disse ele — já venho.

Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o cume da montanha: eu sentei-me no caminho a sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer entre os arvoredos nos ziguezagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho bateu a porta de uma cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que ai se passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher lívida e desgrenhada apareceu com um facho na mão.

A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre estava comigo.

O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a capa e disse-me:

— Gennaro, quero contar-te uma história. E um crime, quero que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moca bela. De outras núpcias tinha uma filha bela também Um aprendiz — um miserável que ele erguera da poeira, como 0 vento as vezes ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela quando quisesse...

Eu estremeci, os olhares do velho pareciam ferir-me.

— Nunca ouviste essa história, meu bom Gennaro?

— Nunca — disse eu a custo e tremendo.

— Pois bem — esse infame desonrou o pobre velho: traiu-o como Judas ao Cristo.

— Mestre, perdão!

— Perdão! E perdoou o malvado ao pobre coração do velho?

— Piedade!

— E teve ele dó da virgem, da desonra, da infanticida?

— Perdão! — e perdoou o malvado ao pobre co-ração do velho?

— Piedade!

— E teve ele dó da virgem, da desonra, da infanticida?

— Ah! — gritei.

— Que tens? conheces o criminoso?

A voz de escárnio dele me abafava.

— Vês, pois, Gennaro— disse ele mudando de tom — , se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse despenhadeiro! E medonho! se o visses de dia. teus olhos se escureceriam e ai rolarias talvez — de vertigem! E um túmulo seguro: e guardara o segredo, como um peito o punhal. Só os corvos irão lá ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, se tens ainda no coração maldito um remorso, reza tua ultima oração: mas seja breve. O algoz espera a vitima: a hiena tem fome de cadáver...

Eu estava ali pendente junto a morte. Tinha só a escolher o suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Uma luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais, ele estava armado. Eu — eu era uma criança débil: ao meu primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava... Só me restaria morrer com ele — arrastá-lo na minha queda. Mas para que?

E curvei-me no abismo: tudo era negro: o vento lá gemia embaixo nos ramos desnudos, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá chocalhava no fundo escumando nas pedras.

Eu tive medo.

Orações, ameaças, tudo seria debalde.

— Estou pronto — disse.

O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios estalados de febre. Só vi aquele riso Depois foi uma vertigem... o ar que sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se cai de uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa. fraqueja, sua, esfria... Era horrível: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas mãos, as raízes secas que saiam pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso e meu peito sangrava nos espinhais. A queda era muito rápida ...De repente não senti mais nada...Quando acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me tinham apanhado junto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o rio.

Era depois de um dia e uma noite de delírios que eu acordara. Logo que sarei, uma idéia me veio: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquela morte horrível, pode ser que se apiedasse de mim, que me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu cão, tudo 0 que houvesse mais abjeto num homem que se humilha — tudo! - contanto que ele me perdoasse. Viver com aquele remorso me parecia impossível. Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me então uma idéia de vingança e de soberba. Ele quisera matar-me, ele tinha rido a minha agonia, e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces, e amanha procurar outra vingança mais segura?... Eu humilhar-me quando ele me tinha abatido! Os cabelos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava pelo rosto.

Quando cheguei a casa do mestre achei-a fechada. Bati — não abriram. O jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as portas que davam para ele estavam também fechadas. Uma delas era fraca: com pouco esforço arrombei-a. Ao estrondo da porta que caiu só o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas e contudo era dia claro fora. Tudo estava escuro: nem uma lamparina acesa. Caminhei tateando ate a sala do pintor. Cheguei lá — abri as janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei então ao quarto de Nauza — abri a porta e um bafo pestilento corria daí. O raio da luz bateu em uma mesa. — Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa, e os cabelos caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles um copo onde se depositara um resíduo polvilhento. Ao pé estava um frasco vazio. Depois eu o soube — a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno: era ela de certo que o vendera, porque o pó branco do copo parecia sê-lo...

Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça . Era Nauza, mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e colo de neve Era um corpo amarelo...Levantei uma ponta da capa do outro — o corpo caiu de bruços com a cabeça para baixo — ressoou no pavimento o estalo do crânio. Era o velho — morto também e roxo e apodrecido: eu o vi — da boca lhe corria uma escuma esverdeada.