Numa e a Ninfa/III

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O general Manoel Forfaible almoçava cedo e logo procurava a sede da sua comissão. Presidia a comissão de inventário do material bélico inutilizado e avaliava do proveito provável de algumas peças pelas listas que os sargentos lhe enviavam. Era uma comissão técnica e os outros seus auxiliares tinham também conhecimentos sólidos de ciência e artes militares que aplicavam nas listas, a exemplo do chefe.

Sua jovem mulher empregava o ócio matrimonial fazendo visitas, correndo casa de modas, assistindo a sessões cinematográficas. Havia ente ambos uma efusiva simpatia. Não era bem marido e mulher; eram pai e filha. Mais do que a diferença de idade, cerca do dobro entre os dois, determinava esse aspecto de suas relações a diferença de temperamento. O general era bonachão, simplório, lento de espírito, já um tanto desmilitarizado; a mulher, porém, era viva, convencida dos bordados do marido e das prerrogativas que os dourados lhe davam.

Ela o via a cavalo passando revista às tropas, garboso, ereto na sela, com um olhar de batalha; ele se via sempre em chinelas, lendo os jornais na varanda da casa.

Desde muito que D. Ana Forfaible não visitava a sua amiga Mariquinha. Era terça-feira, dia morto para a rua do Ouvidor; os cinemas não tinham mudado de programa; ela vestiu-se e resolveu-se a ir ver a amiga. Certamente estava em casa, pensou ela; Mariquinhas é caseira, tem filhos; demais, o marido ainda é tenente e não pode andar em passeios. Não tinha muito que esperar para melhorar, pois as coisas iam mudar. Mme. Forfaible desejava ardentemente a prosperidade do marido da sua amiga. Ele era engenheiro militar, tinha um bom curso, sabia bem matemática, não podia estar a lidar com soldados, a fazer serviço de quartel. O seu lugar era ocupar uma boa comissão, dessas que os paisanos têm, esses paisanos que não sabem nada....

Muito bem vestida, enluvada, fechou o rosto na sua importância, radiou a patente de seu marido e seguiu para a casa da amiga. Chegou.

— Não sabes - disse ela suspendendo a "toilette" - como tenho andado azafamada... Não te tenho podido visitar... Também tu não vais lá em casa?

— Não tenho podido, Anita; o Descartes anda só doente e ...

— Não ficou no colégio?

— Não. Aquele idiota do comandante mandou-o para casa... Se fosse filho de um coronel...

— Isso tudo vai mudar, Mariquinhas. Tem paciência....

— Qual paciência, minha filha. Aquele colégio é assim mesmo. Já nos exames é o diabo. Perseguem o pequeno... Álvaro vai lá, fala, mas o que queres?

— São os paisanos?

— Qual paisanos, minha filha! São os colegas mesmo do Álvaro...

— Vai melhor?

— Vai... lá está bom.

— E a Heloísa?

— Muito bem. Está no colégio. Não queres tomar café?

Foram para a sala e jantar. Sentando-se à mesa Mme. Forfaible descansou a bolsa, tirou as luvas, juntou tudo - lenço, luvas e carteira - e pôs do lado esquerdo. A dona da casa começou a colocar as xícaras; ia e vinha do guarda-louça, para a mesa, conversando.

— Estou sem criada, Anita. Um inferno!

— As minhas também não param.

— Não há leis...

— Esses paisanos, esses deputados não servem para nada.

— Não há quem cuide disso. Ganham um dinheirão...

— Se fossem militares...

— Hão de acabar.

— Olha, queres saber de uma coisa: o Xisto não vai.

— Corre isso.

— Pois eu lhe digo que sim. Está tudo preparado... Bastos ainda não deu o sim, mas quem vai é o Bentes.

— Ouviste dizer isto?

— O Manoel não te disse nada?

— Nada. E o Álvaro?

— Álvaro não diz coisa com coisa, mas ouço as conversas deles... Quem vai mesmo é o Bentes... Quem fez a Republica não foram eles? Então fizeram a Republica para os outros? Não achas?

— Certamente. Não nos tem adiantado nada. Os paisanos tomaram os lugares, os bons, e nos deixaram os ossos. Uma ova!

— Vê tu o que ganha o Álvaro. É soldo de um oficial, de um engenheiro? Qualquer civil aí, que não sabe o que ele sabe, ganha contos de réis! Não tem lugar nenhum!... É um desaforo!

— Mas Bentes quer?

— Bentes quer, mas tem medo. Sabes bem que quem o faz querer não é ele, é o Gomes.

— Os militares sempre provam bem.

— E são honestos!

— O que era preciso, minha filha, era melhorar também o montepio.

— De tudo isso, eles vão tratar; e agora é que são elas!

— Se o "velho" não quiser - como há se der?

— Contra a força não há resistência, Anita. Sabes bem disso.

O café foi servido e ambas deixaram um instante de conversar.

Mme. Foirfable perguntou:

— Quem será o Ministro da Guerra?

— Não sei; mas Álvaro não pode deixar de ser promovido. Agora é por antigüidade e merecimento. O Supremo já disse... Queres ver o Almanaque?

— Não é preciso... Sei bem... Não vai ser ministro o Costa?

— Qual Costa? Costa está barrado;

— Não sabes nada?

— Nada.

— Se fosse o Manoel?

— Era bom... O Álvaro estava feito... Mas ele não quer lugar no ministério, quer civil.

— Isto arranja-se

— Tudo vai ser militar.

Acabaram de tomar café e Mme. Forfaible ainda pediu que D. Anita se interessasse junto a Neves Cogominho pela nomeação de um parente. Como se fosse hora adequada, Mme. Forfaible dirigiu-se ao Senado. Não estava certa de obter, mas servia à amiga e podia ver o que havia. Não lhe foi difícil falar ao pai de Edgarda, que prometeu interessar-se; sobre política, porém, nada pode adiantar. Observou as fisionomias dos contínuos, dos solicitantes, dos jornalistas e parlamentares; notou o tom das conversas aos cantos da janela, e pareceu-lhe que havia alguma coisa de anormal. Esses rumores, esses cochichos, ela os ouvia desde muito tempo; mas agora, depois das revelações da amiga, Anita já sabia do que se tratava. Era preciso aproveitar. O marido devia esforçar-se por ser ministro e viu na coisa uma promoção.

Não tinha intenção de vir, mas as sombras, as vitrinas, a agitação da rua do Ouvidor atraíam-na como para um afago. Mergulhou nela sentindo a volúpia de um banho morno. Já pisava de outra forma, já olhava sem "morgue"; sentia-se bem no seu elemento. Não tardou a encontrar conhecimentos. Parou um pouco a falar com o poeta Albuquerque, um poeta curioso, só poeta nas salas, só conferencista nas salas, teimoso em sê-lo por toda a parte, mas mesmo os que o conheciam nos salões, não admitiam que o fosse fora deles. Mme. Forfaible gostava de falar com ele e gostava de seus versos, mas os compreendia melhor quando os recitava nas casas de família, entre moças e senhoras, de casaca ou "smoking", com o seu grande olhar negro quase parado, sem fixar-se em nenhuma fisionomia.

Sabendo como julgavam a sua poética, Albuquerque fazia o possível para desmentir esse julgamento. Empenhava-se para publicar os seus sonetos, nos grandes jornais, aos domingos; aderia às revistas "chics" e das quais se dizia redator. Todos, porém, nas rodas de literatos, como fora delas, não se convenciam de que fosse outra coisa que um poeta de salas e festas burguesas.

A sua elegância era procurada e o seu falar todo cheio de sibilos, de chiantes, que sublinhavam gestos demorados e quase sempre impróprios. A sua inspiração, a sua versificação de colegial, as suas imagens talvez fossem muito do gosto das nossas salas; mas, à luz do dia, nas revistas e jornais, provocavam risos e galhofas. Apesar de rico, era delicado e atenciosos com os pobretões dados a versos, e todos perdoavam o seu fraco, não o debochavam publicamente, e ele vivia com a sua infantil ilusão e o seu grande olhar negro que supunha fascinador.

Albuquerque ofereceu-lhe chá e foram tomar na saleta "chic".

— Tenho, minha senhora, uma nova produção. Creio que vai gostar muito dela.

— Não a recite na rua, senhor Albuquerque. Podem pensar que sou também literata....

— Não havia mal nisso. Guardarei, entretanto, para dize-la aos servirmo-nos do "tea"; e, entre um "gateau" e outro, poderei contar-lhe, minha senhora, a "história vernal dos meus amores".

— É do soneto?

— É, minha senhora.

— Logo vi.

No caminho, encontraram Benevenuto, o primo de D. Edgarda, que os cumprimentou e continuou a caminhar. Albuquerque disse por aí a D. Anita:

— Dizem que este moço tem talento... Ele faz versos, a senhora sabe?

— Sr. Albuquerque, penso que poeta aqui é o senhor...

— Não , minha senhora. Não! Perdoe-me... Ouço sempre dizer que ele tem muito talento e informava-me simplesmente.

Benevenuto não fazia versos nem coisa alguma. A sua preocupação era mesmo não fazer nada. Não tinha isso como sistema e até estimava que os outros o fizessem. Era o seu modo de viver, modo seu, porque se julgava defeituoso de inteligência para fazer qualquer coisa e inútil fazê-la desde que fosse defeituoso. Gastara uma parte da fortuna em prodigalidades e ações vulgares e ganhara a fama de extravagante. Moço, ilustrado, a par de tudo, rico ainda, podia bem viver fora do Rio, mas dava-se mal fora dele, sentia-se desarraigado, se não respirasse a atmosfera dos amigos, dos inimigos, dos conhecidos, das tolices e bobagens do país. Lia, cansava-se de ler, passeava por toda a parte, bebia aqui e ali, às vezes mesmo embebedava-se, ninguém lhe conhecia amores e as confeitarias o tinham por literato. Não evitava conversas, tinha relações em toda a parte e, por sinal, depois de passar por Mme. Forfaible e Albuquerque, encontrou o Inácio Costa, com quem foi tomar café.

A estranha mania do Costa era a política. Estava sempre a par dos reconhecimentos, das manobras, das intrigas. Benevenuto, que não lia essas coisas, que passava os olhos distraídos pelas sessões parlamentares dos jornais, a não ser quando se tratava de Numa, estimava a sua palestra por lhe informar a respeito desse aspecto de nossa vida que ele não prezava absolutamente.

— Acabo de saber que o general Bentes quer mesmo; o Bastos não se opõe, pois acha a candidatura do Xisto insólita.

Ele falava quase em segredo e o companheiro compreendia por alto o que dizia.

— Já mandei a minha adesão... O seu parente...

— Quem?

— O Salustiano.

— Não é meu parente. É parente do Cogominho e da minha prima, de quem sou parente por parte de mãe.

— Não quer dizer nada... Vamos ter um governo forte, um governo como o do grande Frederico, que conciliou a liberdade e a ditadura, realizando espontaneamente o voto sistemático de Hobbes.

Costa esquecia-se muito de quem fora Frederico e de quem era o General Bentes; mas Benevenuto não lhe quis lembrar.

— Costa - disse-lhe este - não te parece semelhante conciliação um tanto difícil.

— A ditadura não é isso que vocês pensam. É a ditadura republicana.

— Em que consiste a diferença?

— Em que consiste? Consiste em suprimir, em diminuir as atribuições desse Congresso, dessa Justiça, que perturbam o regime.

— Mas Costa, você não quer conciliação da liberdade com o governo?

— É o que diz o Mestre, o maior pensador dos tempos modernos, que completou Condorcet por de Maistre.

— Sei; se você quer isso, deve querer Justiça e Congresso, porque assim se obtém a conciliação. Todo o pensamento em criá-los e fazê-los independentes não foi senão com esse fim. Você lembre-se bem da história da revolução...

— Nada! Nada! Isto tudo entorpece a ação do governo... Esses debates, essas chicanas...

— Mas Costa, você quer é um sultanato, uma khanato oriental e pior do que isso, porque nesses há ainda uma lei: o Corão; e, no teu, não há lei alguma. Como limitar a vontade do governo, como saber os nossos direitos e deveres? Com a Politique de Comte ou simplesmente com o Lagarrigue?

— Qual lei! Lei são as naturais que são irrevogáveis.

— Nem tanto assim, meu caro, são também hipóteses possíveis...

— Como?

— São. Você deve conhecer a história das ciências. Há o exemplo muito curioso da queda dos corpos que têm tido diversas leis pelos anos em fora, desde Aristóteles e outros muitos.

— Mas agora está certa?

— Quem afirma isso a você?

— Benevenuto, você é um metafísico!

Inácio Costa despediu-se e correu atrás de um amigo a quem desenrolou o manifesto para o qual pedia assinaturas.

Benevenuto tinha vagas notícias dessa candidatura presidencial de Bentes, mas, como toda a gente, não a levou a sério. Ouvira num bonde que fora levantada pela A Cimitarra , um jornaleco do interior, e não deu atenção ao caso. A agitação do Costa, o seu entusiasmo não lhe pareceram de bom agouro. Sabia que o Costa passara pelo florianismo e essa concepção nacional de governo traz no bojo, no fim de contas, um grande desprezo pela vida humana. Numa, com quem estivera, parecia amedrontado; e fora com insistência que perguntara pelo Salustiano. Não dera o devido valor à insistência; mas, com os dados que ia colhendo, parecia que esse Salustiano aderira ao candidato improvisado para subir e galgar posições políticas, talvez mesmo retirar Cogominho da chefia.

Ainda uma vez ele não compreendia esse negócio de política e ainda uma vez sentia bem que, ao contrário dos que abraçam uma qualquer profissão, os políticos não pretendem nunca realizar o que a política supõe, e isto logo ao começarem. Singular e honesta gente! Que se diria de um médico que não pretendesse curar os seus doentes?

A esmo pôs-se a passear, a andar daqui para ali a ver as montras de jóias, o vazio das fisionomias naquela constante curiosidade aterrada que parecia dominá-las.

A satisfação que ele encontrou em Inácio Costa não era o sentimento que ele via na massa da população. Os boletins dos jornais eram avidamente lidos, embora insignificantes. Os transeuntes paravam, amontoavam-se à porta dos jornais para ler a notícia de um simples falecimento. A cidade estava apreensiva e angustiada. É que ela conhecia essa espécie de governos fortes, conhecia bem essas aproximações de ditadura republicana. O florianismo dera-lhe a visão perfeita do que eram. Um esfacelamento da autoridade, um pululamento de tiranos; e, no fim, um tirano em chefe que não podia nada. A liberdade conciliada com a ditadura! Quem regulava essa conciliação, quem determinava os limites de uma e de outra? Ninguém, ou antes: a vontade do tirano, se fosse um, ou de dois mil tiranos, como era de esperar. Os moços, os que tinham visto os acontecimentos de 93, quando meninos, no instante da vida em que se gravam bem as dolorosas impressões, anteviam as execuções, os fuzilamentos, os encarceramentos, os homicídios legais e se horrorizavam.

Benevenuto era desses, desses que aos doze anos, viram as maravilhas do Marechal de Ferro, o regime de irresponsabilidade; e não podia esquecer pequenos episódios característicos do espírito de sua governança. todos eles brutais, todos eles intolerantes, além do acompanhamento de gritaria dos energúmenos dos cafés.

Não supunha que a ressurreição fosse adiante, como profetizava Costa. Ele sabia bem que a principal função do governo é desagradar, e todos nós sempre estamos a pedir um rei; mas desta vez parecia que as rãs queriam o que estava e contentavam-se com o seu toco de pau de soberano, manso, fraco e inerte.

Continuou a caminhar, fatigou-se, não quis entrar em café conhecido. Procurou um fora da Avenida e da rua do Ouvidor. Comprou um jornal da tarde onde nada leu de novo. Era de maravilhar isto, pois corriam tantos boatos, tantas versões, havia tanta ansiedade, como as folhas não se apressavam em dizer alguma coisa? Calavam-se; calavam-se como se tivessem medo de despertar o monstro que dormitava.

O café não ficava longe, mas não era visitado pelos "habitués" da Avenida. Ocupava uma velha casa baixa, cujo andar térreo, tendo as paredes violadas em portas, aqui e ali, dava a entender que suportavam com esforço o pavimento superior. Não nascera para aquele destino e as colunas de ferro mal dissimulavam a fadiga. Benevenuto sentou-se e emendou a leitura do jornal que vinha começada. Em uma mesa próxima, um grupo conversava. O recém-chegado não os examinou bem, mas ouviu-lhes a conversa.

— É melhor ser assim... Isso de estar com negaças, não vale... Quem quer, quer mesmo!!

— A história era o Bastos.

— Ora Bastos! Bastos é tutu? Todo o mundo tem medo do Bastos.

— Ora! Enquanto mulher parir, não há homem valente. Ele tem mesmo que engolir a espada.

— É dos nossos.

— Não podia deixar de ser assim... Este chefe não pode continuar. Não dá emprego à gente e não quer jogo... A gente tem que viver de quê?

— Se o general vier...

— Se vier?! Vem mesmo!

— É um modo de falar... Tudo muda. Vocês não viram o Floriano? Estava tudo barato. Agora?

— Qual! Paisano não dá pra coisa.

Benevenuto ouvia a conversa, mas não se atrevia a examinar os vizinhos. Descansou da leitura, pôs-se a tomar café; e, por acaso, demorou o olhar sobre o grupo. Reconheceu nele Lucrécio Barba-de-Bode e foi reconhecido.

— Doutor, como está?

— Como está, Lucrécio?

Eram três e todos tinham um aspecto desembaraçado e descansado, de quem está habituado a encarar a vida em qualquer ponto de vista. Conheciam todas as misérias e todos os constrangimentos. Pareciam tranqüilos, seguros de si e esperançados. A conversa entre eles continuou:

— Era mesmo preciso mudar... As necessidades aumentam cada vez mais.... Você não viu, Lucrécio, o suicídio daquela moça?

— Foi coisa de amor.... Ora, bolas!

— É, mas pelos domingos se tiram os dias santos.

— Não há dúvida! - disse o terceiro - um preto que mascava um charuto. - Não há dúvida! O "velho" queria tomar conta de tudo, não deixava ninguém agir...

— Ele mesmo é que deu azo a tudo isso.

— Pra acabar! Vocês sabem de uma coisa: se nós não ganharmos, perder é que não perdemos... Vamo-nos embora!

Lucrécio cumprimentou Benevenuto e seguiu com os companheiros em direitura ao largo de São Francisco. Anoitecia e o largo tinha um maior movimento. Os sinos da igreja soavam Angelus ; soavam quase sem ser ouvidos pelos transeuntes apressados, correndo atrás desse ou daquele bonde. A igreja, porém, continuava imóvel, a anunciar, como fazia há séculos e tanto, as Ave-Marias. Barba-deBode lembrou-se de ir para casa, jantar e voltar. Uma força estranha o prendia no centro da cidade. Não se cansava de andar deste para aquele ponto, de subir e descer as escadas da Câmara e dos escritórios, de estar de pé horas e horas; fatigava-se da monotonia do interior, do sossego da sua rua pobre, sem bonde, sem trânsito algum, povoada à tarde pelos brincos das crianças da vizinhança.

Não foi; ficou ainda. A noite foi fechando e pelas nesgas abertas pelas ruas no horizonte, ele viu, sem demorar-se vendo, um pouco do crepúsculo rosado.

Quando de todo veio a noite, o largo tomou outro aspecto. Eram só mulheres, moças, às duas, às três, às quatro. Eram modistas, eram as costureiras. Quase todas, traindo o ofício no apuro do vestuário, fazendas pobres, mas bem talhadas e provadas; e todas elas gárrulas, louçãs, contentes, como se não tivessem trabalhado doze horas e não trabalhassem. As retardatárias passaram e o largo ficou um instante vazio. Não vinham mais homens aos magotes, nem moças aos bandos, nem dos bondes desembarcavam levas de passageiros. Havia passeantes solitários, homens e mulheres. Paravam nas vitrines, demoravam-se no ponto dos bondes, sempre marchando vagarosamente como se esperassem alguém. Por vezes um deles se encontrava com uma delas, trocavam breves palavras e o caminho de casa era encontrado. A igreja se escondia na sombra e a s Escola Politécnica, muito alta, parecia dormir filosoficamente.

Lucrécio olhou o relógio e despediu-se dos companheiros. Não gostava daquela hora ali no largo, preferia-a na Avenida, onde sempre encontrava um conhecido ou outro que lhe oferecia de beber. De resto, precisava saber o "bicho" que dera no jogo noturno; e não convinha, se tivesse ganho, que os outros soubessem. Passou em uma casa de "bookmaker" e verificou. Tinha ganho no grupo. Eram vinte mil réis. Poderia levar alguma coisa para casa. De que servia? Tinha tanta dívida... O melhor era aproveitar a "sorte", a "maré". Jantaria primeiro e depois arriscaria o restante. Tomou uma "abrideira", um cálice de cachaça; e procurou um hotel onde jantou vagarosamente, e com apetite. Acabado o jantar, adquiriu um charuto barato e deu umas voltas e, dentro em pouco, arriscava as sobras no jogo. Houve alternativas de ganho e de perda. Por fim ganhou, e, à uma hora, estava em casa.

Lucrécio morava na Cidade Nova, naquela triste parte da cidade, de longas ruas quase retas, com uma edificação muito igual de velhas casas de rótula, porta e janela, antigo charco, aterrado com detritos e sedimentos dos morros que a comprimem, bairro quase no coração da cidade, curioso por mais de um aspecto.

Muito baixo e comprimido entre as vertentes e contrafortes de Santa Teresa e a cinta de colinas graníticas - Providência, Pinto, Nheco - ainda hoje as chuvas copiosas do estio teimam em encontrar depósito naquela bacia, transformam as vias públicas em regatos barrentos, saltam dos leitos das ruas, invadem, por vezes, as casas; os móveis bóiam e saem pelas janelas ainda boiando, para se perderem no mar, ou irem ao acaso encontrar outros donos.

Irregular como é o Rio, não se pode dizer que fique bem ao centro da cidade; é, porém, ponto obrigado de passagem para a Tijuca e adjacências, S. Cristóvão e subúrbios.

O velho "aterrado" que conheceu atribulações de fidalgos em caminho do beija-mão de D. João VI, é hoje o Mangue, com asfalto e meios-fios; mas, de quando em quando, manhosamente, o canal enche desde que o céu queira, para lembrar as suas origens aos que passam por elas nos bondes e nos automóveis.

A Cidade Nova não teve tempo de acabar de levantar-se do charco que era; não lhe deram tempo para que as águas trouxessem das alturas a quantidade necessária de sedimento: mas ficou sendo o depósito dos detritos da cidade nascente, das raças que nos vão povoando e foram trazidas a estas plagas pelos negreiros, pelos navios de imigrantes, à força e à vontade. A miséria uniu-as ou acamou-as ali; e elas lá afloram com evidência. Ela desfez muito sonho que partiu da Itália e Portugal em busca de riqueza; e, por contrapeso, muita fortuna se fez ali, para continuar a alimentar e excitar esses sonhos.

Para os imitadores, nas "revistas" de ano e nos jornais, de velhos e obsoletos folhetins, a população da Cidade Nova é quase que inteiramente de cor, no que se enganam e em tudo o que mais se segue.

A Cidade Nova de França Júnior já morreu, como já tinha morrido a do Sargento de Milícias" quando França escreveu.

As mesmas razões que levaram a população de cor, livre, a procurá-la, há sessenta anos, levou também a população branca necessitada de imigrantes e seus descendentes, a ir habitá-la também.

Em geral, era e ainda é, a população de cor, composta de gente de fracos meios econômicos, que vive de pequenos empregos; tem, portanto, que procurar habitação barata, nas proximidades do lugar onde trabalha e veio daí a sua procura pelas cercanias do aterrado; desde, porém, que a ela se vieram juntar os imigrantes italianos ou e outras procedências, vivendo de pequenos ofícios, pelas mesmas razões eles a procuraram.

Já se vê, pois, que, ao lado da população de cor, naturalmente numerosa, há uma grande e forte população branca, especialmente de italianos e descendentes. Não é raro ver-se naquelas ruas, valentes napolitanos a sopesar na cabeça fardos de costuras que levaram a manufaturar em casa; e a marcha esforçada faz os seus grandes argolões de ouro balançarem nas orelhas, tão intensamente que se chega a esperar que chocalhem. Por toda a parte há remendões; e, de manhã. muito antes que o sol se levante, daquelas medíocres casas, daquelas tristes estalagens, saem os vendedores de jornais, com suas correias e bolsas a tiracolo, que são o seu distintivo, saindo também peixeiros e vendedores de hortaliças com os cestos vazios.

A nacional, branca ou não, é composta de tipógrafos, de impressores, e contínuos e serventes de repartições, de pequenos empregados públicos ou de casas particulares, que lá moram por encontrar habitação barata e evitar a despesa de condução.

Basta examinar um pouco para se verificar a verdade disso e é de admirar que os observadores profissionais não tenham atinado com fato tão evidente.

É de ver aquelas ruas pobres, com aquelas linhas de rótulas discretas em casas tão frágeis, dando a impressão de que vão desmoronar-se, mas, de tal modo umas se apoiam nas outras, que duram anos, e constituem um bom emprego de capital. Porque não são tão baratos assim aqueles casebres e a pontualidade no pagamento é regra geral. A não ser aos domingos, a Cidade Nova é sorumbática e cismadora, entre as suas montanhas e com a sua mediocridade burguesa. O namoro, como em toda parte, impera; é feito, porém, com tantas precauções, é cercado de tanto mistério, que fica tendo o amor, além de sua tristeza inevitável, uma caligem de crime, de coisa defendida.

Por parte dos país, dada a sua condição, há o temor de sedução, da desonra e a vigilância se opera com redobrado vigor sobre as filhas; e, para vencê-la, há os processos avelhantados da linguagem das flores, dos meneios do leque e da bengala, e o geral, aos bairros, do "abarracamento".

Não é verdade como fazem crer os panurgianos de "revistas" e folhetins "surrenés", que os seus bailes sejam coisas licenciosas. Há neles até exagero de vigilância materna ou paterna, de preceitos, de regras costumeiras de grupo social inferior que realiza a criação ou a invenção . Mais do que neles, nos grandes bailes luxuosos teria razão o árabe de Anatole France.

Como em todas as partes, em todas as épocas em todos os países, em todas as raças, embora se dê, às vezes, o contrário, sendo mesmo condição vital à existência e progresso das sociedades - os inferiores se apropriam e imitam os ademanes, a linguagem, o vestuário, as concepções de honra e família dos superiores. Toda invenção social é criação de um indivíduo e grupo particular propagado por imitação a outros indivíduos e grupos; e, quem disso não tem que se amofinar com os bailes da Cidade Nova ou fazer acreditar que sejam batuques ou sambas, que lá os há como em todos os bairros. É exceção.

A Cidade Nova dança à francesa ou à americana e ao som do piano. Há por lá até o célebre tipo do pianista, tão amaldiçoado, mas tão aproveitado que bem se induz que é ocultamente querido por toda a cidade. É um tipo bem característico, bem função do lugar, o que vem a demonstrar que o "cateretê" não é bem do que a Cidade Nova gosta.

O pianista é o herói-poeta, é o demiurgo estético, é o resumo, a expressão dos anseios de beleza daquela parte do Rio de Janeiro. É sempre bem vindo; é, às vezes, mesmo disputado. As moças conhecem os seus hábitos, as suas roupas e pronunciam-lhe as alcunhas e nomes com uma entonação de quase adoração amorosa. É o "Xixi", o "Dudu", o "Bastinhos".

São mais apreciados os que tocam "de ouvido" e parece que eles põem nas "fiorituras", trinados, e "mordentes", com que urdem as composições suas e dos outros, um pouco do imponderável, do vago, do indistinto que há naquelas almas.

Uma "schottisch" tocada por eles, ritma o sonho daquelas cabeças, e põe no seu pensamento não sei que promessas de felicidade que todos se transfiguram quando o pianista a toca.

Afora a modinha tão amada por todos nós, são as valsas, as polcas, que saem dos dedos de seus pianistas a expressão de arte que a Cidade Nova ama e quer.

É assim aquela parte da cidade, bem grande e cismadora, bem curiosa e esquecida, que fica entre aqueles morros e têm quase ao centro o palmeiral do Mangue que cresce no lodo e beija o céu.

Barba-de-Bode morava por uma rua daquelas em que os lajedos dos passeios fazem montanhas russas e macadame da rua dá saudades do barro batido. Era a casa comum da Cidade Nova, uma pequena casa com a indefectível rótula, janela, duas alcovas, salas, onde moravam ele, a mulher, uma irmã e um filho menor, além de um hóspede, um russo, o Dr. Bogoloff.

Não era das mais povoadas, pois outras havia em que se amontoavam no seu estreito âmbito oito e dez pessoas.

A mobília era a mais reduzida possível. Na sala principal, havia duas ou três cadeiras de madeira, com espaldar de grades, a sair de quando em quando do encaixe, ficando na mão do desajeitado como um enorme pente; havia também uma cômoda, com o oratório em cima, onde se acotovelavam muitas imagens de santos, e, cá do lado de fora, queimava uma lamparina e secavam em uma velha xícara ramos de arruda. Na sala de jantar, havia uma larga mesa de pinho, um armário com alguma louça, um grande banco e cromos e folhinhas adornavam as paredes.

De manhã, quando Lucrécio saiu do quarto, toda a família já estava de pé. A irmã lavava ao tanque, no quintal; a mulher já varrera a casa e preparava o almoço e o filho fora em busca do O Talismã , famoso jornal de palpites do "bicho", em que toda a casa tinha fé. Não havia dia que não o comprassem e bem duas horas levavam a decifrá-lo, a estudá-lo, para afinal jogarem aquelas pobres mulheres um cruzado, se tanto.

O jornal do "bicho" é procurado e lido; é o mensageiro da abundância, é a esperança de salvar compromissos e poderosamente concorre para a realização de casamentos e batizados. A nossa triste humanidade sempre pôs grandes esperanças no Acaso...

Se uma viúva, tem que casar a filha e meios não lhe sobram, só um recurso há: acertar no "bicho", na dezena e centena, com o auxílio do jornal bem informado. Os redatores desses jornais vivem assediados de cartas, pedindo palpites nas dezenas e centenas; e, nestas cartas, os missivistas, em geral do sexo feminino, confessam as suas misérias e necessidades, mais íntimas, segredos do coração.

O primeiro cuidado da mulher de Lucrécio e da irmã era comprar o jornal e, muitas vezes, sem dinheiro para jogar, compravam por prazer e devoção.

A mulher de Lucrécio, Ângela, era mulata como ele, mas franzina, um pouco mais clara, feia, avelhantada precocemente e docemente triste; a irmã era forte, mas pesada de corpo, um rosto curto e nariz grosso e uns olhos empapuçados. Era casada, mas do marido não tinha notícias e perdera os filhos em pequena idade.

Lucrécio, depois de banhar-se, pediu à mulher que lhe desse de almoçar; queria sair cedo.

— Já está pronto o que há - disse ela.

Ele acabou de vestir-se e sentou-se logo à mesa do almoço. O filho voltou com o jornal; e, um instante, Lucrécio olhou a criança com o olhar mais preocupado.

— A benção, papai?

— Deus te abençoe, meu filho.

O pai viu ainda os olhos luminosos da criança, carbunculando nas escleróticas muito brancas e pensou de si para si: que vai ser dele? Lembrou-se de dar-lhe dinheiro para os sapatos com que fosse à escola, mas estava atrasado na casa. A desordem de sua vida; antigamente... Que vai ser dele? Bem, arranjaria um emprego, fá-lo-ia estudar, e havia de tomar caminho. Que vai ser dele? E logo lhe veio o ceticismo desesperado dos imprevidentes, dos apaixonados e dos que erraram; há de ser, como os outros, como eu e muita gente. É sina!

A mulher foi pondo os pratos na mesa e Lucrécio se foi preparando para comer.

— Não fizeste arroz, Ângela?

— Não. Para quê?

— Quero arroz - fez com azedume Lucrécio.

Havia entre os dois essa necessidade de rixa e parece que cada um deles queria por esse meio manifestar ao outro as desilusões que se trouxeram reciprocamente. Às vezes, era o marido a provocá-la; em outras, a mulher; entretanto eles viviam unidos, trocando heróicas dedicações.

— Se você quer - disse-lhe a mulher - é mandar buscar.

— Por que você não mandou?

A irmã continuava a lavar no tanque e Lúcio, o filho de Barba-de-Bode, assistia encolhido a um canto a discussão entre os pais. Tinha as mãos entre as pernas e olhava um e outro quase ao mesmo tempo.

— Não mandei... Por que você não se levanta mais cedo e diz o que quer? Não adivinho!

À vista da insistência da mulher, Lucrécio fez-se calmo, pensou um pouco e disse ao filho:

— Lúcio, vai lá à venda e diz ao "seu" Antunes que mande um quilo de arroz. Ângela - ajuntou - dá o caderno.

O pequeno ficou enleado e, embora se houvesse erguido, não moveu o pé; a mulher fez que não ouvia. Barba-de-Bode insistiu com fúria:

— Você não vai rapaz? Não está ouvindo?

A mãe interveio:

— Sente-se aí!

— Como? - fez o pai.

— Então você não sabe que o Antunes não nos fia mais?

— Por quê?

— Ora, por quê? Porque você não lhe paga e não estou para o pequeno estar ouvindo desaforos!

Lucrécio ergue-se, com os olhos fora das órbitas, rilhando os dentes e expectorou:

— Aquele... Ele me paga!

E dirigiu-se para o corredor; a mulher interveio:

— Que vai você fazer, Lucrécio? Você deve...

— Deixe-me! - disse ele.

A mulher insistiu:

— Não vá lá... Você tem um filho, homem de Deus!

Desvencilhou-se da mulher; ela, porém, ainda o deteve na sala de visitas, quase chorando.

— Não vá lá, Lucrécio! Não vá!

— Deixe-me! Deixe-me! Vocês não sabem o que é ser mulato! Ora bolas!

Por aí a porta do quarto que dava para a sala de visitas foi aberta e apareceu o hóspede:

— Que é isso, Lucrécio?

— Não é nada, doutor. Não é nada!

Sentou-se a uma cadeira, pôs-se um instante com a cabeça inclinada segura entre as mãos que se apoiavam nos joelhos; e, ao fim de algum tempo, perguntou à mulher que estava de pé em frente dele, braços cruzados:

— Quantos meses devemos de casa?

— Três.

Pediu a conta da venda, considerou bem e disse para o filho, tirando o dinheiro do bolso:

— Vá pagar esse judeu, Lúcio! Doutor - fez para o hóspede, logo em seguida - vamos almoçar.

O doutor Gregory Petrovich Bogoloff era russo e tinha vindo para o Brasil como imigrante. Lucrécio conhecera-o na rua, num botequim; bebera com ele e, sabedor de que não tinha pouso, cedera-lhe um dos dois quartos de sua casa. Nesse tempo, o russo andava doente e tinha abandonado o núcleo colonial onde se estabelecera.

Com as melhores disposições para o trabalho honesto, imigrou, foi para uma colônia, derrubou o mato do lote que lhe deram, construiu uma palhoça; e, aos poucos, uma casa de madeira ao jeito das "isbas" russas.

A colônia era ocupada por famílias russas e polacas, e enquanto os seus trabalhos de instalação não se acabaram, Bogoloff não travou relações valiosas.

Ao fim de dois meses o doutor de Kazan tinha as mãos em mísero estado, se bem que o corpo tivesse ganho mais saúde e mais força. Aos administradores da colônia via pouco, e evitava vê-los, porque eram arrogantes, mas travou relações com o intérprete, que muito o orientou na vida brasileira. Havia neste certos tiques, certos gestos, que pareceu a Bogoloff ter o funcionário sofrido trabalhos forçados. Era russo, e pouco disse dos seus antecedentes. Um dia disse ao compatriota:

— És tolo, Bogoloff; devias ter-te feito tratar por doutor.

— De que serve isso?

— Aqui, muito! No Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração... Se te fizesses chamar de doutor, terias um lote melhor, melhores ferramentas e sementes. Louro, doutor e estrangeiro, ias longe! Os filósofos do país se encarregavam disso.

— Ora bolas! Para que distinções se me quero anular? Se quero ser um simples cultivador?

— Cultivador? Isto é bom em outras terras que se prestam a culturas remuneradoras. As daqui são horrorosas e só dão bem aipim ou mandioca e batata doce. Dentro em breve estarás desanimado. Vais ver!

Desprezando as amargas profecias do intérprete da colônia, pôs-se o imigrante a trabalhar na terra com decisão. Plantou milho e fez uma horta em que semeou couves, nabos, repolhos.

De fato, veio o milho rapidamente, mas as espigas, quando foram colhidas, estavam meio roídas pelas lagartas; a horta deu mais resultado; a "rosca" e piolho, porém, estragaram grande parte dos canteiros.

Tentou outras culturas, a do trigo, a da batata inglesa, mas não deram coisa que prestasse. Assim foi; e quer dizer que Bogoloff no "eldorado", continuava a viver da mesma forma atroz que no inferno da Rússia. Deitou-se com afinco à cultura da batata doce, do aipim, da abóbora e mais não fez senão pedir à terra esses produtos quase espontâneos e respeitados pelos insetos daninhos.

A colheita foi tal, que, pela primeira vez, teve lucro e satisfação. Começou a criar porcos que engordou com as batatas doces e os aipins; e, embora não encontrasse mercados fáceis para os suínos, ganhou algum dinheiro e viveu assim alguns anos. adquirindo aos poucos os hábitos do cultivador do país. Não comia mais pão, mas broa de farinha de milhos ou o aipim cozido; o açúcar com que temperava o café, era o melaço da cana que obtinha em uma engenhoca tosca de sua própria construção. Desanimara de culturas mais importantes e a base da sua vida era a batata doce, o aipim, a cana e o porco.

A terra, a sua estrutura e composição, o seu determinismo enfim, tinha levado a doutor russo a esse resultado e só obedecendo a ele é que pudera tirar alguma renda.

Quem sabe se a vida no Brasil só será possível facilmente baseando-se no aipim e na batata doce? Quem sabe se por ter querido fugir a essa fatalidade da terra, é que o país tem vivido uma vida precária de expedientes?

Durante muito tempo, a fortuna do Brasil veio do pau de tinturaria que lhe deu o nome, depois do açúcar, depois do ouro e dos diamantes; alguns desses produtos, por isso ou por aquilo, aos poucos foram perdendo o valor ou, quando não, deixaram de ser encontrados em abundância remuneradora.

Mais tarde vieram o café e a borracha, produtos ambos que, por concorrência, quanto ao primeiro, e também, quanto ao segundo, pelo adiantamento das indústrias químicas, estão à mercê de desvalorização repentina. Viu bem isso tudo.

A vida econômica do Brasil nunca se baseara num produto indispensável à vida ou às indústrias, no trigo, no boi, na lã ou no carvão. Vivia de expedientes...

Bogoloff fatigou-se de sua vida de colono, que nunca chegaria à fortuna, daquele viver medíocre e monótono, fora dos seus hábitos adquiridos. Viu a cidade, quis fugir ao sol inexorável, à gleba em que estava. Liquidou os haveres e correu ao Rio de Janeiro. Foi professor aqui e ali, ganhando ninharias. Não encontrou apoio nem procurou. Passava dias nos cafés, conheceu toda a espécie de gente, caiu na miséria e foi socorrido por Lucrécio, quando doente e sem vintém, em cuja casa estava há dois meses.

O almoço era parco e Baraba-de-Bode tornara-se jovial. O russo não se deixara contaminar pela alegria do hóspede e viu-lhe entrar o filho com um olhar compassivo agradecido.

— Doutor, tudo isso vai mudar. O "homem" vem...

— Quem?

— O Bentes.

Bogoloff não tinha fé nem estima pela política e muito menos o costume de depositar nela os interesses de sua vida. Calou-se, mas Barba-de-Bode asseverou:

— Pode ficar certo que lhe arranjarei um emprego.

O russo olhou com um ingênuo espanto o rosto jovial do antigo carpinteiro.