O Cemitério dos Vivos/I/VII

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Dia de São Sebastião. Um dia feio, nevoento. Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão bela como sempre achei. Os longes dos Órgãos não se vêem; estão mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem o cobalto de sempre; e as manchas de cortes e chanfraduras nelas aparecem como chagas. O casario está mergulhado, confuso, não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muito baixo, cheio de fuligem, fumaça. O Pão de Açúcar está emoldurado de nuvens brancas, parecem abaixar do cume. Vê-se o chalet do caminho aéreo. A Urca, também chanfrada, é de uma estupidez diante daquele cenário! A Urca não muda. Lembro-me que já estive lá no alto. Como é diferente! O bosque é convidativo, fresco, há um lago natural no centro. As árvores ainda tinham os cipós da floresta, os pássaros chilreavam; parecia não se estar no Rio. Não me lembro de tudo visto; mas vi a Rasa e o oceano infinito, um pouco de Copacabana, da velha Copacabana. Um grande transatlântico sai. Vai vagaroso, vai para o mar largo, que se estende pelas cinco partes do mundo; beija-lhes e morde-lhes a praia. Corre perigo, mas está solto, entre dois infinitos; como diz o poeta: o mar e o céu. Vejo passar por Villegagnon, através das grades do salão. Villegagnon ainda tem muros, mas não lhes vejo as palmeiras. Acode-me pensar na fundação do Rio de Janeiro, que a data comemora. Nesta enseada houve, segundo a história, um combate com os franceses — o das canoas. Olho-a, está um tanto crespa, e as águas são turvas e dão ao olhar a impressão de que estão mais povoadas do que nas outras. Há pescadores em faina. Canoas ainda! Herança dos índios! O remo também vem deles! Quantas coisas, dos seus usos e costumes, eles nos legaram? Muitas! A farinha da mandioca, do milho, certas tuberosas, nomes de rios e lugares, muitos, adequados e expressivos. Hoje, a vaidade nacional batiza os lugares com os mais feios nomes que se podem esperar. Enseada Almirante Batista das Neves! Só falta um doutor, também. Esta nossa sociedade é absolutamente idiota. Nunca se viu tanta falta de gosto. Nunca se viu tanta atonia, tanta falta de iniciativa e autonomia intelectual! É um rebanho de Panúrgio, que só quer ver o doutor em tudo, e isso cada vez mais se justifica, quanto mais os doutores se desmoralizam pela sua ignorância e voracidade de empregos. Quem quiser lutar aqui e tiver de fato um ideal qualquer superior, há de por força cair. Não encontra quem o siga, não encontra quem o apoie. Pobre, há de cair pela sua própria pobreza; rico, há de cair pelo desânimo e pelo desdém por esta Bruzundanga. Nos grandes países de grandes invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não se vê nosso fetichismo pelo título universitário que aqui se transformou em título nobiliárquico. É o Don espanhol.

O dia é de tédio e eu procuro meios e modos de fugir dele, de voltar-me para mim mesmo e examinar-me. Não posso e sofro. Arrependo-me de tudo, de não ter sido um outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram.

Tenho orgulho de me ter esforçado muito para realizar o meu ideal; mas me aborrece não ter sabido concomitantemente arranjar dinheiro ou posições rendosas que me fizessem respeitar. Sonhei Spinosa, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoiévski, mas me faltou a sua névoa.

Aborrece-me este hospício; eu sou bem tratado; mas me falta ar, luz, liberdade. Não tenho meus livros à mão; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é minha casa. Meu filho ainda não delira; mas a toda a hora espero que tenha o primeiro ataque...

Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu tenho remorsos como se a tivesse feito morrer. Logo, porém, como vem de mim mesmo ou de fora de mim uma voz que me diz: É mentira.

Os outros deliram em redor de mim e, se não choro, é para não me julgarem totalmente louco. Imagino que essa convicção se enraíze nos médicos e me faça ficar aqui o resto da vida. Ainda agora, meu irmão veio visitar-me e, nos primeiros dias, um amigo; mas, dos que me vieram ver, na primeira vez que estive aqui, nenhum veio. Se me demorar mais tempo, ainda, ficarei completamente abandonado, sem cigarros, sem roupa minha, e ficarei como o Gato e o Ferraz, que aqui envelheceram, vivendo aquele a fazer transações de forma tão cínica, para arranjar cigarros. Troca pão por fumo e furta lápis dos companheiros, para arranjar moeda para barganhar. Todos o perseguem, o maltratam, o chasqueiam, na sua velhice, a ele que foi rico, filho de ex-ministro e senador do Império. "Sic transic gloria mundi. "

Aceito todos os fins, mas não permita Deus que o tenha um destes. Enche-me de angústia, quando este quadro se desenha a meus olhos; atribuo a mim mesmo a culpa do que me sucede, ao mesmo tempo culpo F., culpo Z., culpo X. e toda a humanidade, a sociedade em que vivo, mas não quero. Contudo, eu queria viver isolado, fora dessa paixão pela literatura, pelo estudo. Creio que ela me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em que minha inteligência pudesse trabalhar, absorver toda a minha atividade, sem comunhão com os meus semelhantes. Queria ser um geômetra, mesmo medíocre, mas da família de Arquimedes, conforme o desenha Plutarco, na vida de Marcellus, página 109.

Mas não me é possível, a minha pouco certa inteligência é de outra raça; sou levado incoercivelmente para o estudo da sociedade, para os seus mistérios, para os motivos dos seus choques, para a contemplação e análise de todos os sentimentos. As formas das coisas que as cercam, e as suas criações, e os seus ridículos, me interessam e dão-me vontade de reproduzi-los no papel e descrever-lhe a sua alma, e particularidades. Ao mesmo tempo, levado para o estudo das sociedades, da sua história, do quid que as anima, arrastado para o estudo do seu destino, sou também capaz de me emocionar diante das coisas e da natureza. Não serei nunca sociólogo, historiador, não serei nunca romancista. Falta-me amor ou ter amado. Mas... Minha mulher!

Não posso tratar dela. Não se ama uma morta; e eu não a soube amar em vida. Fui tomar café matutino, já melancólico; li os jornais, hipocondríaco; almocei, ainda pior. Não pude acabar de ler a vida de Pelópidas. À uma hora fui para o café com pão, que é a refeição mais apreciada por mim aqui.

Festa de São Sebastião. Uma enfermeira, com consentimento da alta administração do hospício, certamente uma canivetada na constituição, organizou na capela uma festa, flores, missa, sermão, etc. Na hora do café, os internos almoçaram uma bóia superfina, digna do santo do dia e da Constituição. Alguns nos olhavam naturalmente; mas outros, com a enfatuação, não tanto da idade, mas de estudantes, com a convicção que estavam muito acima de nós e se podiam permitir debochar-nos. É verdade que se limitaram ao Gato; mas, logo a uma reclamação deste, falaram poderosamente em casa-forte.

Voltei do café entediado. Um vago desejo de morte de aniquilamento. Via minha vida esgotar-se, sem fulgor, e toda a minha canseira feita, às guinadas. Eu quisera a resplandecência da glória e vivia ameaçado de acabar numa turva, polar loucura. Polar, porque me parecia que nenhuma afeição me aquecia, e turva, pois eu não via, não compreendia nada em torno de mim. Eu me comparava a um explorador das regiões árticas, que tivesse durante anos atravessado florestas lindas, cascatas, céus epinícios, lagos de anil, mares de esmeraldas, nessas paisagens mais belas da terra, as suas servências mais majestosas, e se houvesse de motu proprio atirado às banquises do pólo e se deixasse mergulhar na sua noite imensa que, para o meu caso, era infinita.

Quase me arrependia de não ter querido ser como os outros. Seguir os caminhos do burro e ter feito da minha vida um paradoxo. Quis ler ainda, mas não me era possível. Pensava e triava todos os meus sonhos que se iam esvaindo. Já tinha vivido dois terços da minha provável vida e só um pouco deles realizara. O que mais desesperava era a angústia de dinheiro. Não tinha contado com ele, como não contara com muitos elementos que eu desprezara; agora, eles se vingavam...

Sentia-me impotente por isso, e os obstáculos invencíveis. Não me quisera curvar, revoltara-me; entretanto, mais de uma vez me vira obrigado a pedir pequenos favores humilhantes aos camaradas. Curiosa independência!

Mastigava esse raciocínio, quando um colega de manicômio me chamou, para ver um doente da Seção Pinel, que fica na loja, impando no telhado. Lá fui e vi-o. Era o D. E., parente de um funcionário da casa, de real importância. Tinha o vício da bebida, que o fazia louco e desatinado. Já saíra e entrara no hospício, mais de vinte vezes. Apesar de tudo, era simpatizado, e muito, pelo pessoal subalterno. Não subira propriamente à cumeeira do edifício, mas à de uma dependência, no flanco esquerdo do edifício, onde fica a rouparia. Em chegando ao alto, começou a destelhar o edifício e atirar telhas em todas as direções, sobretudo para a rua, para as ruas, pois a tal rouparia ficava numa esquina.

Entre um e outro arremesso, prorrompia em descomposturas à diretoria e sorvia goles de cachaça, que levara num vidro de medicamentos.

Não era a primeira vez que, zombando de todos os esforços da administração, do inspetor e guardas, obtinha aguardente e se embriagava, preso, no estabelecimento.

Desta vez, ele o fazia em presença da cidade toda, pois na rua se havia aglomerado uma multidão considerável.

Jogava telhas e eles se apartavam para a borda do cais que beira o mar, no momento, turvo, e atmosfera fosca. Num dado momento, tirou o paletó. Ficou seminu; estava sem camisa. Atirava telhas e berrava. Alguém, de onde nós estávamos, um tanto próximo dele, gritou-lhe:

— Atira para aqui!

— Não, entre nós, não! Vocês são os infelizes como eu.

Continuou, durante algum tempo, nessa pantomima, quando acudiu o corpo de bombeiros com escadas. A sua fúria cresceu. Desandou a atirar pedras sobre os automóveis. Berros, palmas; e ele, como equilibrista, correu toda a cumeeira e foi buscar a flecha que lhe dava a semelhança de chalet e arrematava a cumeeira, para se armar. Os bombeiros fingiram que iam estender mangueira e obrigá-lo a descer com jactos d'água. Distraiu-se, deu pouca importância, e veio para a borda da cimalha falar à multidão.

Enquanto isso, guardas e bombeiros subiam pelo outro lado, sem que ele desse fé disso, e, surpreendendo, amarraram, não sem tenaz defesa dele a unhas e dentes.

O diretor veio ver, e os loucos amolavam-no.

O V. O. fez-lhe esta recriminação que ouvi:

— Vê Vossa Excelência isso, numa casa desta! Que escândalo!

Este V. O. não sai mais daqui. Cada dia, torna mais completo o seu depoimento de doido.

O diretor nada disse, e eu percebi; mas foi preciso ele vencer, com a sua doçura, a sua paciência e a simplicidade de sua alma, a indelicadeza desse seu hospitalizado.

Hei de falar mais longamente sobre ele, que é uma interessante figura que conheci.

A proeza do D. O. agitou todo o hospício, pôs a rua em polvorosa e suspendeu o tráfego da Light, e havia no seu procedimento muita coisa, que parecia ser ele premeditado.

Doentes lá de baixo, e outros com os quais vim a conversar depois, disseram-me que sim, que ele tinha feito veladas ameaças do que ia fazer.

Num dado momento, trepado e de pé na cumeeira, falando, cabelos revoltos, os braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem surgiu-me como a imagem da revolta... Contra quem? Contra os homens? Contra Deus? Não; contra todos, ou melhor, contra o Irremediável!