O Cemitério dos Vivos/I/VIII

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O hospício tem uma biblioteca; antigamente, isto é, há cinco anos, quando aqui estive, estava nos fundos da seção, em uma pequena sala. Tinha uma porção de livros, até um Dostoiévski lá havia e um excelente dicionário das literaturas, de Vapereau, que eu lia com muito agrado; atualmente, porém, conquanto tenha pequenas mesas, meia dúzia, próprias para ler e tomar notas, duas cadeiras de balanço e duas espécies de divãs (estas últimas peças já existiam), não possui mais a mesma quantidade de livros, e a freqüência é dos delirantes, que lá vão dar pasto a seu delírio, berrar, gritar, fazer bulha com as cadeiras sobre o assoalho, não permitindo nenhuma leitura.

Há ainda livros curiosos que eu queria ler, mas não é possível absolutamente. Vi uma obra em dois volumes sobre finanças de Colbert, Félix Joubleau, que me tentava lá; vi um Daniol, História das Classes Rurais na França, que devia ser interessante, apesar de um pouco antigo; vi o romance de Pedro, o Grande, de Merejcóvski; um Bohème Galante, de Gérard de Nerval; mas não me animei a ler. Às vezes, para variar, ia até lá e pegava ao acaso um volume da Biblioteca Internacional de Obras Célebres e lia. Foi aí que se me ofereceu pela primeira vez o ensejo de ler uma carta de Heloísa e a biografia de Abelardo, por Lewis, o célebre biógrafo de Goethe e amante não menos célebre de George Eliot.

O lugar era cômodo e agradável. Dava para a enseada, e se avistava doutra banda Niterói e os navios livres que se iam pelo mar em fora, orgulhosos de sua liberdade, mesmo quando tangidos pelos temporais. Às vezes, lendo, eu me punha a vê-los, com inveja e muita dor na alma. Eu estava preso, via-os por entre as grades e sempre sonhei ir por aí afora, ver terras, coisas e gentes...

Um dia, não sei se foi na biblioteca ou no salão de bilhar, vi entrar barra adentro um grande quatro mastros à vela. Há muito tempo que não via esses quadros marítimos, que foram o encanto da minha meninice e da minha adolescência. A minha literatura começou por Jules Verne, cuja obra li toda. Aos sábados, quando saía do internato, meu pai me dava uma obra dele, comprando no Daniel Corrazzi, na Rua da Quitanda. Custavam mil-réis o volume, e os lia, no domingo todo, com afã e prazer inocente. Fez-me sonhar e desejar saber e deixou-me na alma não sei que vontade de andar, de correr aventuras, que até hoje não morreu, no meu sedentarismo forçado na minha cidade natal. O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho.

Não gostava muito das viagens fantásticas, como à lua, ou que tivessem por entrecho uma coisa inverossímil, como no País das Peles; assim mesmo apreciava o César Cascabel e a Viagem ao Centro da Terra. Do que mais gostava, eram aquelas que se passavam em regiões exóticas, como a Índia, a China, a Austrália; mas, de todos os livros, o que mais amei e durante muito tempo fez o ideal da minha vida foram as Vinte Mil Léguas Submarinas. Sonhei-me um Capitão Nemo, fora da humanidade, só ligado a ela pelos livros preciosos, notáveis ou não, que me houvessem impressionado, sem ligação sentimental alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no mundo estranho que não me compreendia a mágoa, nem ma debicava, sem luta, sem abdicação, sem atritos, no meio de maravilhas.

Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o mar. Vivia numa cidade marítima, sem ir vê-lo nem contemplá-lo. Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão... Pensava bem em morrer, mas me faltavam forças para buscar a morte. Comprava livros e não os lia. Planejava estudos e não os fazia. Delineava obras e não as realizava. Minha capacidade inventiva e criadora, a minha instrução técnica e a minha pretensão eram insuficientes para fabricar um Náutilus, e eu bebia cachaça.

Lembrava-me disso, vendo a biblioteca, o mar, os paquetes, os perus e faluas, que entravam na enseada de Botafogo, os pescadores a colher as redes, em canoas quase atracadas ao cais, e sonhava o mar livre que se adivinhava, lá fora da barra, ali bem perto...

O grande veleiro, a gábia de quatro mastros, entrava por ela afora, sem auxílio de rebocador, com o terço do velame solto, sem denunciar o esforço e sem ter a arrogância dos paquetes, a vogar, sereno, parecendo de acordo com a natureza, com o céu e o mar, em que todo ele estava mergulhado. Neste momento, apareceu-me o V. O., que me veio dizer que não lhe davam a sua roupa fina, que tinha dezenove malas, que o médico estava no complot que se organizava contra ele e o inspetor também. Não sei como este último apareceu, e ele se pôs a esbravejar contra ele, gritou, chamou-o dos nomes mais feios desta vida, contra todas as suas prosápias de títulos, e acabou tirando da palmilha dos sapatos algumas notas, dizendo que ali tinha trezentos e tantos mil-réis. Dias antes, tinha me dito que tinha duzentos. Na loucura deste homem, há muita impostura. Deixei de ler a carta de Heloísa e de ver o mar, ambas as coisas me faziam sonhar.

Resolvi deixar de freqüentar a biblioteca, porque, quando não era o V. O. , eram o F. P., com suas dissertações de tico-tico e enumeração dos seus parentes doutores e bacharéis, o C. B., com o seu estardalhaço, que não me permitiam ler com atenção. Resolvi fazê-lo no dormitório e durante muito tempo sorvi sossegadamente o meu Plutarco. A minha leitura atual desse célebre livro é feita com outro olhar que o de antigamente. Noto-lhe uma porção de atributos sempre os mesmos, para os seus heróis. Ele os quer sempre belos, como filhos mais belos do seu tempo, e o paralelo entre os heróis de Grécia e Roma, às vezes, não é feliz; mas há sempre nele muita coisa que nos faz refletir. Vejam só esta observação de um antepassado dos atuais bolchevistas, do cita Anacársis, feita a Sólon: "As leis são como as teias de aranha que prendem os fracos e pequenos insetos, mas são rompidas pelos grandes e fortes". Os nossos milionários e políticos não pagam os impostos e, muitas vezes, os criados, quando os alugam, se não mandam buscá-los na polícia militar e na guarda civil; entretanto, há uma porção de leis, de fiscais, etc., etc.

Ora, a lei! Que burla! Que trabuco para saquear os fracos e os ingênuos...

Mas, como dizia, resolvi abandonar a biblioteca e vir ler no dormitório.

Infelizmente, não tenho um quarto, para mim só, nem com outro companheiro. Habito, com mais dezenove companheiros, um salão amplo, com três janelas para a frente da rua, olhando para o mar. A minha cama fica perto da janela, mas, entre ela e eu, há um colega dos mais estranhos da casa. Só sai do dormitório para as refeições, para lavar o rosto de manhã, conjuntamente com os seus trapos, na pia; e, afora disto, vive a dormir, ou à janela, dizendo uma porção de coisas desconexas, em que ele repete sempre coisas de jogo e batota. O seu acesso foi na rua, e intitulou-se capitão de polícia, e os outros aqui o chamam por esse título militar. Esquecia de dizer que ele lê um volume do Dicionário Ilustrado, do Pinheiro Chagas, ou, senão, jornais velhos, que arrepanha aqui ou ali. Todas essas coisas não me incomodariam, se não se julgasse no seu direito de estar a abrir e a fechar a janela, desde que lhe dê na telha sair dela ou de ler, para deitar-se ou ir a qualquer parte. Muda-me a luz e incomoda-me na leitura.

Meu vizinho de dormitório é um rapaz cuja loucura reagiu sobre o seu aparelho vocal a ponto dele mal falar e com esforço. Olha-me estupidamente, e com um olhar parado e de um único brilho, e tem a mania de incapacidade de ingerir qualquer alimento. Tudo se tem experimentado: leite, frutas, até um irrigador; mas é em vão. Ele não ingere nada e, se ingere à força, logo vomita, debilita-se e dá em suar às catadupas.

Esperando a sua morte próxima, a família levou-o para casa. Vai mudar de cemitério — coitado! Para esse, não houve um intervalo entre os dois. Foi substituído pelo Pinto.

Um outro companheiro de dormitório é um tal Cabo Frio. Tem os traços todos do nosso camarada roceiro, com um fundo muito forte de índio, cabelos negros e barba também grossas e luzidias.

Está completamente estúpido, não fala e vive hieraticamente esteado nas paredes, ou nos cantos, como uma estátua de templo egípcio. Em começo, era preciso, à hora de recolher, trazê-lo para o quarto; mas, dias depois, já vinha pelo seu pé. Com essa conquista sobre o seu cérebro ocluso, ele ganhou também outra atividade. Remexe os baixos dos travesseiros e colchões dos outros, carrega o que encontra e vai esconder os objetos onde cisma. Sempre antipatizei com ele — Deus não me castigue! — e depois que desapareceu, de debaixo do colchão, um livro, mais o fiquei aborrecendo. Desconfiei que fosse ele, o que me aborrece extraordinariamente. O que me aborrece é a sua inércia, a sua falta de iniciativa, e o furto do livro, como já disse, fez-me aborrecê-lo mais, conquanto suspeite de outros: um tal Veiga, o F. P., o sargento e mais um tal Gastão.

Este último, que já foi do meu dormitório, é um rapazola de seus dezoito anos, que tem uns ataques de forma epiléptica. É uma natureza de dissimulação e falsidade. Gosta de escambar, gosto que não é só dele aqui, mas que se encontra em muitos outros. O Gato é um deles. Carrega pães e troca por cigarros, estes por jornais, vende os jornais por lenços, furta camisas e livros, para cambiar por qualquer coisa, ou vender. Creio que já lhes falei na sua prosápia de família, das suas constantes alusões ao seu pai ex-ministro do Império, chama todos de negros, ladrões. Ele já me furtou um lápis. A sua mania de descomposturas lhe tem valido muitas sovas. Uma das últimas foi a do Borges, um negro pretíssimo, de pais ricos, mas façanhudo, rixento, que não pode estar na seção para que paga, pois agride todos por dá cá aquela palha. É um belo tipo de cabra ou caibra, com fortes peitorais, magníficos bíceps, deltóides. Um pouco curto de corpo, sobretudo de pernas, como ele todo, robustíssimas, respira audácia, bravura, desaforo.

Ao entrar, ele se chegou a mim e olhou-me ferozmente:

— Como é que você deixa a farda?

— Que farda? Não uso farda.

— Você não é oficial do Exército?

— Não; é meu irmão.

— Bem dizia eu.

Falou abruptamente, as suas palavras saltavam dos lábios, aos jactos, descontínuas, mas sem propósito de me ofender, mas de acariciar-me; daí a dias, deu-me biscoitos caros, que recebeu de casa.

O Gato, o Marquês de Gato, insultou-o de negro, vagabundo e ladrão. B. não teve dúvidas e intimou-o ameaçadoramente:

— Repete, se você é gente, seu este, seu aquele.

O Gato, o nobiliárquico Gato, repetiu, e o B. deu-lhe tais murros, que o pôs todo em sangue, com o nariz quebrado. Penalizei-me, porque o Gato era um velho, a roçar pelos sessenta anos, cheio de uma loucura infantil de insultar, fazer caretas e julgar-se muito, com ter sua parentela obscura, mas colocada em bons lugares, e o seu título de bacharel em Direito, por São Paulo, obtido adivinha-se como. Depois de levar os bofetes de B., andou dias com o emplasto, e o nariz, que era grande, rubicundo, proeminente até à altura da boca, encurtou um pouco e cambou para um dos lados. A sua fisionomia era cômica, com esse nariz, a sua cabeça redonda, os seus olhinhos verdes e, quando se enfurecia, com o seu falar esganiçado e rápido.

Implicava com todo o mundo; comigo, só da primeira vez que estive, quando saí para ir não sei onde, que ele disse ao passar:

— Este negro entrou ontem e já se vai embora.

Agora ele me trata muito bem.

Ontem, ele me chamou confidencialmente e me disse:

— Você sabe de uma coisa?

— Não.

— Vou para São Paulo e lá me casar com uma filha do S. L., que tem noventa milhões de contos.

Ele não se contentava com pouco.