O Cemitério dos Vivos/II/I

Wikisource, a biblioteca livre

Quando minha mulher morreu, as últimas palavras que dela ouvi, foram estas, ditas em voz cava e sumida:

— Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga, num livro.

Ainda durou cerca de dois dias, mas quase sem fala. Balbuciava unicamente; em geral, não entendia o que queria por aí, mas pelos gestos e sinais que fazia.

Nas ocasiões em que me aproximava dela, nos seus últimos momentos, o seu olhar de moribunda tinha uma doce e transcendente expressão de piedade. Era como se ela dissesse: "Vou morrer! Que pena! Vou deixá-lo só por este mundo afora".

Para o filho, que andava próximo dos quatro anos, não lobriguei nos seus olhos uma tão profunda manifestação de comiseração. Parecia-lhe, certamente, que ele seria mais feliz do que eu. Não sei, não me recordo se, logo após a sua morte, pus-me a pensar nas suas palavras, a bem dizer as últimas, e no meu casamento e outros fatos domésticos. Mas o certo é que elas me ficaram gravadas; e nunca mais se foi de mim a imagem daquela pobre moça a morrer, com pouco mais de vinte e cinco anos, e o sentimento da dor que se lhe estampava no olhar místico, por me deixar no mundo, dor que não era bem de mulher, mas de mãe amantíssima.

O melhor é contar como foi o meu casamento, um pouco da minha vida, para que se possa bem compreender porque esse espetáculo doméstico, em geral de tão pouco alcance, trouxe para mim conseqüências desenvolvidamente dolorosas, um verdadeiro drama psicológico e moral, que todas as satisfações posteriores não puderam dar termo na minha consciência, nem tampouco o trabalho e o vício.

A minha história de casamento é singular. Vou narrá-la. Como toda a gente, quis ser "doutor" em alguma coisa. Não tendo quem me custeasse os estudos, logo pelos dezessete anos, com uma falsa certidão de idade, fiz um concurso em uma repartição pública e obtive um pequeno lugar de funcionário. Minha família vivia fora do Rio de Janeiro; e eu, apresentado por outro colega, fui morar na pensão da viúva Dias, à rua XXX. Canhestro e tímido, apesar de ter vivido fora do ambiente doméstico, em internatos, no meio de meninos e rapazes desenvoltos, nunca fui dado à sociabilidade feminina, muito menos a namoros, e sempre que, por esta obrigação ou aquele obséquio, me impunham a tomar parte em sociedade de moças e senhoras, saía daí aborrecido. No dia seguinte, fazia um exame retrospectivo dos fatos da véspera e verificava, com amargura e vexame, que tinha dado tal "rata", tinha sido ridículo, por isso, por aquilo, e jurava não mais me meter em semelhantes rodas.

Crente da minha irremediável inabilidade para tratar com damas de todo o jaez, evitava-lhes o comércio o mais que podia. Se minha irmã me pedia, lá donde estava, que comprasse qualquer coisa em loja servida por moças, dava a encomenda a outrem, para executá-la, mediante ou não gratificação. Até agora, ainda de todo não perdi essa cisma, pois evito comprar selos a funcionários de saias.

Com esse gênio, não me agradou muito quando deparei na pensão uma moça de pouco menos idade do que eu, vivendo familiarmente com os fregueses. Era dona Efigênia, a filha da dona da casa, que superintendia o serviço na sala das refeições. Guiava o copeiro, ralhava-o, atendia as reclamações dos fregueses; enfim, como já disse, vigiava na marcha das refeições das pensionistas, no salão a elas destinado.

A velha, sua mãe, dona Clementina, ficava lá nos fundos, dosava os pratos, racionava, como se diz hoje, e fazia outras miudezas da copa.

A descoberta da moça quase me fez abandonar o hotel de dona Clementina Dias, no fim do primeiro mês; mas temi agastar o meu colega e parecer-lhe ao mesmo tempo ridículo, se confessasse o motivo. Contudo, no começo, envergonhado, quer para uma, quer para outra refeição, esperava-o sempre para tê-lo como companhia.

Dona Efigênia, que deu com o meu embaraço, veio ao meu encontro. Respondi-lhe às perguntas, mas temia encará-la. Com quase vinte anos, habituado a todas as troças de rapazes, ficava que nem um seminarista diante daquela moça.

Furtivamente, eu a observava. Não era feia, nem bonita. Pequena, mesmo miúda, com uma cabecinha minúscula de cabelos escassos, parecia uma gatinha, com os seus olhos estriados muito firmes de mirada, agachada na escrivaninha alta, donde dirigia o serviço do refeitório e aonde ficava melhor, com mais elegante figura, do que de pé, quando a isto era obrigada, para providenciar sobre qualquer coisa em cima das mesas, às importunações e reclamações de um dos fregueses de sua mãe.

Assim, nessa postura, ficava inteiramente insignificante, e o seu lindo olhar de força e penetração se sumia todo na justeza de sua figurinha; e na rua, então, ainda mais...

Não gostava de vê-la senão na escrivaninha alta, sobre um estrado; e era onde, positivamente, apreciava os seus olhos pardos, pequenos, penetrantes, como que estriados, ao redor das pupilas negras.

De onde em onde, ela os punha sobre mim, denotando uma grande vontade de me adivinhar, e eu fugia deles com medo de me trair.

No fim de dois meses, ela me fez as perguntas do costume sobre os meus estudos e os meus avanços neles. Aborrecia-me com isto, porque já começava a aborrecer-me com eles. O que os estudos normais e consagrados do Brasil me podiam dar, eu já supunha ter obtido; o mais era ter um título de que me não iria servir e só me serviria de trambolho e enfeite de botocudo.

Não me queria absolutamente ignorante nas ciências físico-matemáticas e estava seguro de que as noções que tinha eram suficientes. As carreiras especiais, em uso na nossa terra, não me tentavam, tanto mais que sabia eu, pois tinha percebido logo após a minha matrícula, que em nenhuma delas se enriquece ou mesmo se sobe em honrarias, sem ter nascimento ou fortuna, ou senão empregando muita abdicação de suas opiniões, ou — o que é pior — perdendo muito de sua autonomia e independência intelectual na gratidão por seu protetor.

O meu esforço em "formar-me", como se diz por aí, era para atender a um capricho de meu pai, que, até o último momento de vida, desejou isso, para vingar-se.

É caso que ele tinha um parente ou contraparente, com quem viera às mãos por causa de uma questão de herança do avô, meu bisavô, portanto, e dera-lhe uns tiros. Processado, fora absolvido, mas não deixou de passar um ano na cadeia e sofrer o suplício moral do júri. Nunca me contara isso, mas todos que ouvi a respeito eram unânimes em dizer-me que esse tal meu primo era um fanfarrão, presunçoso de seu título de engenheiro pela Bélgica ou Estados Unidos. Tratava com muito desprezo o meu pai, e este o suportava, porque fora amigo do irmão, pai dele, de quem não tirara a bondade e o carinho.

Antes do doloroso fato, demonstrava publicamente não querer relações estreitas com meu pai e, a quem o inquirisse sobre a natureza de seu parentesco com o meu genitor, respondia desdenhoso:

— É, é meu parente; mas muito longe.

Acredito que dissesse isso, porque meu pai ainda tinha em muita evidência traços de raça negra; e o meu primo, o doutor belga, como todos os antropologistas nacionais, põe os defeitos e qualidades da raça nos traços e sinais que ficam à vista de todos.

No suspeito doutor americano, eles se haviam detido muito, apesar do cabelo liso e cor de fogo.

Apesar dos tiros terem todos errado o alvo, o seu ódio se sentiu cevado. Casou-se meu pai, vindo eu a nascer em breve, e todo o seu esforço foi encaminhar-me para a formatura, numa escola nacional, bem direitinho, para dar uma outra lição no filho do seu irmão mais velho, que o era em muitos anos sobre ele, numa diferença de quase vinte.

Comecei cedo a fazer os preparatórios, senão com brilho, ao menos com muita segurança; e cedo acabei-os; mas sobrevieram dificuldades de família, meu pai enfermo veio a morrer, fiquei sobre mim, longe de minha mãe e dos meus irmãos.

Tinha grandes ambições intelectuais, um grande orgulho de inteligência, mas não sentia nenhuma atração pelo "doutorado" nacional, eu visava o Kamtchatka, os países exóticos, as regiões defesas à inteligência.

Ainda mais: era meu propósito ambicioso de menino examinar a certeza da ciência e isto — vejam só os senhores — porque, lendo um dia, nos meus primeiros anos de adolescência, uma defesa de júri, encontrei este período:

"O réu, meus senhores, é um irresponsável. O peso da tara paterna dominou todos os seus atos, durante toda a sua vida, dos quais o crime de que é acusado, não é mais do que o resultado fatal. Seu pai era um alcoólico, rixento, mais de uma vez foi processado por ferimentos graves e leves. O povo diz: tal pai, tal filho; a ciência moderna também."

Muito menino, sem instrução suficiente, entretanto, semelhante aranzel me pareceu abstruso e sobretudo baldo de lógica e em desacordo com os fatos. Conhecia filhos de alcoólicos, abstinentes; e abstinentes pais, com filhos alcoólicos.

Demais, um vício que vem, em geral, pelo hábito individual, como pode de tal forma impressionar o aparelho da geração, a não ser para inutilizá-lo, até o ponto de determinar modificações transmissíveis pelas células próprias à fecundação? Por que mecanismo iam essas modificações transformar-se em caracteres adquiridos e capazes de se constituírem em herança?

Não sabia responder isto e até hoje não sei responder, e ainda mais se me perguntava, nesse caso de alcoólico: no ato da geração, dado que fosse a verdade essa sinistra teoria da herança de defeitos e vícios, o pai já seria deveras um alcoólico que tivesse as suas células fecundantes suficientemente modificadas, igualmente, para transmitir a sua desgraça ao filho virtual?

Menino, pouco lido nessa coisa, como ainda hoje sou, a afirmação daquele advogado de júri me pareceu menos certa do que se ele dissesse que um desvario, um mau gênio, tinha feito o seu constituinte errar, pecar, roubar ou assassinar. É mais decente pôr a nossa ignorância no mistério, do que querer mascará-la em explicações que a nossa lógica comum, quotidiana, de dia a dia, repele imediatamente, e para as quais as justificações com argumentos de ordem especial não fazem mais do que embrulhá-las, obscurecê-las a mais não poder.

Sou, e hoje posso afirmar sem temor, sujeito a certas impressões duradouras, tenazes, que me acodem todos os dias à lembrança, por estas ou aquelas circunstâncias aparentemente sem relação com o fundo delas. Não sei nunca por que me ficaram e, as mais das vezes, não posso verificar o instante em que elas me ficaram.

Lembro-me de um grande pé de eucalipto que havia na estrada da casa de um amigo de minha família, e isto vi quando tinha sete anos ou menos; lembro-me de uma cadeira de jacarandá, estilo antigo, com um alto e largo espaldar, em que minha avó materna sentava-se, tendo os pés num tamborete e todos os netos sentados no chão a ouvir-lhe histórias ou a responder as suas perguntas afetuosas, e ela morreu antes de completar eu vinte anos; entretanto, não tinha a menor lembrança de fatos importantes que se deram depois, quer domésticos, quer particulares a mim, quer públicos.

Não me recordo mais quais foram os meus examinadores de História Universal, dos seus nomes, nem das suas fisionomias. Só me lembro de que todos os três eram velhos, bem velhos, e me tratavam filialmente.

Tinha, entretanto, já treze anos de idade.

Esse fraseado de advogado, que mais acima citei, jamais me saiu da memória. De mim para mim pensei: se um simples bêbedo pode gerar um assassino; um quase-assassino (meu pai) bem é capaz de dar origem a um bandido (eu). Assustava-me e revoltava-me. Seria possível que a ciência tal dissesse? Não era possível. Havia ali, por força, uma ilusão científica, um exagero, senão uma verdadeira imperfeição; e o meu pensamento de menino foi estudá-la, mas bem depressa, depois que a freqüência das prédicas positivistas deram-me, por negação, algumas vistas sobre as bases metafísicas das ciências, planejei estudá-las, decompô-las e marcar o grau de exatidão dos seus métodos, a sua conexão com o real, a deformação que ele trazia ao que passava de fato bruto para o dado na teoria científica; havia de aquilatar a colaboração da fatalidade da nossa inteligência nas leis, na contingência delas, as idéias primeiras — todo um programa de alta filosofia, de alta lógica e metafísica eu esboçava nas voltas com o cálculo de "pi".

Parecia-me que estávamos, quanto à experiência, ao método experimental, caindo nos mesmos erros e exageros que os escolásticos medievais com os seus princípios aristotélicos, seus silogismos e outras ilusões e preconceitos lógicos, bem etiquetados, enfileirados e disciplinados. Sobretudo, no que tocava aos confins da biologia e do que chamam sociologia ou estudos sociais, havia vícios insanáveis de pensar, e tudo o que parecia indução, resultado de experiências honestas e conclusões de documentos que os eqüivaliam, devia merecer uma crítica rigorosa, não só dessas experiências e documentos, como também dos instrumentos de observação e de exame — crítica que, neste e naquele ponto, já vinha sendo feita por espíritos mais livres, mais ousados, libertos das tiranias da tradição das academias e universidades.

Tinha firme o propósito, quando pisava a pensão, de abandonar o que vulgarmente se chama, entre nós, estudos superiores e fazer com todo o afinco, segundo programa meu e o destino que tinha em vista, o que entendesse e da forma que entendesse.

Por isso eu me aborrecia, como já disse, quando dona Efigênia, com toda a sua unção de mulher e de moça, me perguntava pelos meus estudos oficiais.

De acordo com o meu sistema, a ninguém fizera confidência dessas minhas tenções. Tinha para mim que todos, admitindo que eu fosse capaz de tudo ser, até poeta, haviam de rir-se do meu singular e estupendo plano de trabalhos intelectuais. Se não me julgassem totalmente incapaz, certamente haviam de aconselhar-me:

— Bem! Está direito! Mas você pode formar-se, pois uma coisa não impede outra.

Impedia, sim. Com o diploma, o "pergaminho" da superstição popular, não permitia a censura geral que havia de reagir sobre mim, que ficasse eu copiando ofícios numa repartição do governo. Tinha que obter um emprego adequado ao meu título, para isto era necessário dar passos que me repugnavam: arranjar pistolões, mendigá-los mesmo, para me colocar e, de acordo com a alta conta em que então tinha as minhas faculdades mentais, para não fazer feio, estudar, estar ao par das coisas da profissão de que o Estado me investira solenemente, num canudo de folhas-de-flandres, curtindo um papel encorpado e uma caixa de prata com selo de lacre.

Sobretudo este último passo não me convinha dar. Queria depender, o menos possível, das pessoas poderosas, as únicas capazes de me darem um emprego, e, conquanto elas nada exigissem, eu ficava tacitamente obrigado a não expender umas certas opiniões radicais sobre várias questões que as podiam interessar proximamente. De resto, aplicar-lhe, ao estudo de uma profissão liberal, o que exigia o meu amor-próprio, se a fosse exercer, seria desviar da aplicação normal, da inclinação natural e espontânea da minha inteligência, que não me levava para isso.

Sem nenhuma autoridade moral sobre mim, pois a única que tinha era meu pai, que morrera, estava firmemente decidido a executar o meu plano de vida, sem atender a conselhos quaisquer.

Mandaria às urtigas o "pergaminho", o canudo, o lacre, o grau, o retrato de tabuleta, numa casa de modas na Rua do Ouvidor, e resignar-me-ia a ser tratado desgraciosamente por "seu fulano".

Aquele ano em que fui para a pensão da viúva Dias, ainda resolvi freqüentar, por minha conta e risco, sem cuidar da seriação oficial das matérias, certas aulas da escola, para aprender umas dadas noções e idéias que julgava necessário tê-las; mas, no ano seguinte, não mais lá iria. Foi quando apareceu dona Efigênia.

Apesar de fugir dela, a moça estava sempre a puxar-me pela língua. Não sabia a que atribuir essa irresistível simpatia que se denunciava assim por mim. Não me tinha como repelente, julgava-me mesmo simpático para os rapazes e homens; mas supor que o mesmo fosse para raparigas e moças, era vaidade que não penetrava em minha pessoa.

Ao menor pretexto, conversasse ela qualquer coisa com outro comensal da pensão, voltava-se para mim e indagava:

— Não é, seu Mascarenhas? Não é assim? Não é isso?

E deitava sobre mim aquele seu olhar de flecha, que fazia baixar o meu, timidamente.

Estava sempre a procurar jeitos e modos para que eu falasse. Ora falava-me na guerra russo-japonesa, ora sobre os méritos de uma dessas efêmeras celebridades que os jornais noticiavam a sua estadia; e eu respondia com muito acanhamento e timidez, e até, em começo, com certo mau humor.

Aos poucos, porém, fui perdendo o medo; e, por fim, já dava respostas mais longas, sustentava a palestra, levantava o olhar, não me limitando a respostas secas e curtas.

Seguiu-se o capítulo dos livros emprestados: romances, livros de versos. Com as minhas fumaças de filósofo e sabichão adolescente, desdenhava tudo isso, muito tolamente, porque ainda não houve sábio ou filósofo de verdade que os desdenhasse, a não ser os do Brasil, que o são em família e, mal morrem, todos se esquecem deles e da sua portentosa mentalidade inovadora.

As minhas leituras literárias eram poucas. Em menino, lia os autores nacionais: Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio, Machado de Assis; e também os poetas: Gonçalves Dias, Varela, Castro Alves e Gonzaga, de quem soube de cor várias liras da Marília de Dirceu. Júlio Verne, porém, era o meu encanto, pois me fazia sonhar no concreto de novas terras, novos mares, novos céus e até novos meios diferentes dos possíveis de admitir, mesmo imaginando.

Depois dos dezesseis anos, pouco procurei literatura, a não ser o Paulo e Virgínia, o D. Quixote, o Robinson, que são livros geralmente conhecidos e universalmente prezados.

Não os tinha porém, para emprestar à moça, e tive que os pedir, por empréstimo, para ser galante e serviçal.

A mos emprestar, era um meu colega, Nepomuceno, positivista simpático, pela mão do qual fui às conferências do senhor Teixeira Mendes e a outras festividades da Religião da Humanidade. A minha passagem pelo positivismo foi breve e ligeira. Freqüentei o apostolado cerca de um ano; mas, apesar de me ter convencido de muita coisa da escola, eu, até hoje, nunca pude acreditar que aquele conjunto de doutrinas, capazes de falar e seduzir inteligências, fosse capaz de arrebatar corações com o ardor e o fogo de uma fé religiosa.

Deu-me, entretanto, a freqüência daquela curiosa igreja, o gosto pelas leituras de autores antigos, dos mestres que todos nós, em geral, só conhecemos de nome ou por citações de citações.

Lembro-me bem que lá adquiri uma brochura do Discours de la Méthode, de Descartes, em tradução. Lia-a com atenção, sem fadiga, antes com prazer. O que me encantou no livrinho do filósofo francês foi preconizar ele a dúvida metódica, senão sistemática, a tábua rasa preliminar, para se chegar à certeza. Quando, mais tarde, pude ler, nos resumos, as suas Meditações Metafísicas, a minha admiração cresceu ainda muito, aumentou sobremaneira, não tanto que o seguisse tão rápido quanto ele, da análise e da crítica, à construção final... Demorava-me na análise...

Além disto, gostava de História e dos estudos históricos e sociológicos das civilizações; dos filósofos franceses do século XVIII, constituí durante muito tempo minha leitura predileta. Tive mesmo, por aqueles tempos, um magnífico exemplar da Esquisse d'un tableau du progrés de l'espirit humain, seguido de vários opúsculos de estudos sociais de Condorcet, exemplar que não sei que sumiço teve.

Com tais leituras rebarbativas, senão pedantes, e a biblioteca ortodoxa do Nepomuceno, via-me às vezes muito embaraçado, quando dona Efigênia me pedia:

— Doutor Mascarenhas, o senhor não tem os versos do Bilac?

Não me vinha felizmente a burrice de dizer que os não lia; mas, constrangido, dizia que não tinha. Se dissesse mesmo que não lia, seria rematada hipocrisia, pois o fazia com emoção e gozo, em toda a parte que os encontrava.

A moça, porém, insistia:

— Veja se me arranja.

— Vou ver.

Dava-me com um rapaz do Ceará, meu colega de curso, de nome Chagas, vadio que nem ele, mesmo estróina e desregrado, mas inteligente, bom camarada e dado a versos e a poetas, em cujo meio vivia. Possuía muitos livros de versos e outros de autores literários que eu me abstinha de ler. Morava na mesma casa de cômodos que eu, à rua do Lavradio, o famoso 69, que conheceu gerações e gerações de estudantes. Era um sobradão de dois andares e loja, que devia ter sido construído nos fins da Regência ou no começo do Segundo Reinado, forte, com amplas salas, áreas, mas assim mesmo escuro, iluminado somente por aquela meia-luz dos templos e dos mosteiros. Chagas levava na troça o meu positivismo, mas éramos amigos. Pedi-lhe o livro de Bilac. Ele sorriu e disse-me, entre malicioso e contente:

— Você está namorando, Mascarenhas?

— Porquê? Homessa!

— Qual! Você, positivista, lendo Bilac — não é possível! Isto é para "alguém", seu manata! Vou emprestar a você o Bilac e é já!

Nunca me tinha passado semelhante coisa pela cabeça, pois me julgava completamente inapto para semelhante atividade e conformava-me orgulhosamente, por julgar tal incapacidade de bom augúrio, para realizar os estudos que meditava. Chagas, porém, fez-me ver melhor a mim mesmo, examinar mais detidamente as minhas atitudes diante da moça e as modificações que elas tinham sofrido, naqueles oito meses de convivência pelo jantar e pelo almoço. Não deixava de ter ele razão, em parte...

Não me assustei com a descoberta e, daí por diante, as minhas relações com a moça, filha da dona da pensão, se estreitaram; e a minha solicitude pelas suas leituras chegou a tal ponto, que eu mesmo comprei livros para emprestar-lhe e até lhe dar. Ela passou a chamar-me somente por "doutor"...

Uma manhã, levei Chagas a almoçar comigo. Chagas era um excelente rapaz de coração, generoso, cavalheiro, poeta sem verso nem prosa, mas tomava para mexer comigo, no dizer familiar, uma atitude satânica e cínica. Logo que entrou e deu com a moça, disse-me em vez baixa:

— Olha que ela não é má, Mascarenhas. Para Musa é pouco escultural, tem muito pouco de Deusa; na rua das Marrecas, há mais perfeitas; mas, para o fabrico dos feijões e dos bebês, deve ser excelente.

Fechei a cara e Chagas não continuou nesse diapasão.

Veio o Pinto, um dos fregueses da viúva Dias, e, não havendo lugar nas outras mesas, sentou-se na nossa, justamente na cabeceira. Empenhou-se em uma conversa com Chagas, sobre Zola. Esse Pinto era um rapaz do comércio, que vim encontrar mais tarde em circunstâncias bem tristes e de que falarei com vagar no decorrer desta narração; era inteligente, curioso, razoavelmente lido, tendo feito a sua educação e instrução por si. Gostava de Zola, mas Chagas, que era nefelibata, decadente, símbolista ou coisa parecida, detestava o romancista francês.

Tanto eu como o Pinto, pouco ou nada sabíamos dessas coisas de escolas literárias; e Chagas, apesar de enfronhado e devoto desses assuntos de literatura, não explicava claramente, nitidamente, a diferença ou as diferenças que existiam entre elas. Falava nevoentamente, com grande calor, frases bonitas e novas; mas não as definia cabalmente. A discussão foi absolutamente inócua, mas a moça seguiu-a com atenção e, com algum travo de ciúme, observei que ela bebia, saboreando, o palavreado de Chagas.

No dia seguinte, ou no jantar desse mesmo dia — não me recordo bem — ela, mal me sentava à mesa para tomar a refeição, ela se dirigiu a mim e perguntou-me:

— Doutor Mascarenhas, aquele seu camarada que almoçou consigo, falou nos Cegos, de um autor belga, cujo nome...

— Maeterlinck.

— É isto. Ele terá?

— Não sei; mas, se tiver, há de ser em francês.

— Não faz mal; serve assim mesmo.

Muito indelicadamente, perguntei sem reflexão:

— A senhora lê francês?

— Com dificuldade, respondeu ela, mas leio. Aprendi com as irmãs, no colégio.

Trouxe o livro que, de fato, Chagas possuía; e esse episódio me passou com muitos outros que, por aqueles tempos, me pareceram sem importância.

Escrevendo estas linhas hoje e percorrendo na lembrança toda a minha vida passada, causa-me assombro de que, em face de todos esses episódios, a minha atitude fosse de completo alheamento. Mais do que os grandes acontecimentos, na nossa vida, são os mínimos que decidem o nosso destino; e esses pequenos fatos encadeados, aparentemente insignificantes, vieram influir na minha existência, para a satisfação e para o desgosto. Entretanto, quando se davam, eu me limitava a responder o que ela me perguntava e, sem força de consciência, fazia uma observação banal.

Foram precisos muitos e dolorosos acontecimentos, erros e guinadas, na minha vida, para que eu os reunisse todos na imaginação e reconstituísse com eles a figura excepcional de minha mulher, que eu não soube ver quando viva.

Não era menino, mas o meu sonho interior, o meu orgulho, o pavor de parecer ridículo, de mistura com uma forte depreciação a que, à minha personalidade, eu mesmo tinha levado, tudo isso e outros fatores difíceis de registrar contribuíram para que eu não visse, ou mal visse, a alma excepcional daquela pobre moça, cujo olhar, onde não havia ódio, me amedrontava como se não fosse humano.

Arrependo-me, embora não me sinta em nada culposo para com ela; arrependo-me por não a ter bem visto e não a ter extremado da massa humana, onde só via indiferença e incapacidade para o amor e para a bondade.

Expiei bem duramente essa minha falta íntima, que tantos sentimentos desencontrados fez surgir em mim, tantas dores deu nascimento, como verão no decorrer destas páginas, que são mais de uma simples obra literária, mas uma confissão que se quer exteriorizar, para ser eficaz e salutar o arrependimento que ela manifesta.

O abismo abriu-se a meus pés e peço a Deus que ele jamais me trague, nem mesmo o veja hiante aos meus olhos, como o vi por várias vezes...

Como ia dizendo, porém, continuei a emprestar livros a dona Efigênia e mesmo lia alguns dos que emprestava, para poder conversar com ela sobre as suas leituras. Assim, pouco a pouco, fui vencendo o fingido desprezo que tinha pela literatura; e, quase sem sentir, dei em me interessar pelas suas coisas. Deixei aquela falsa e tola atitude positivista de só falar em Shakespeare, Dante e Moliêre; e falei sem fingido pudor em outros autores, alguns menores, mas alguns tão grandes quanto aqueles. De há muito eu percebia, mas minha toleima infantil não queria dar o braço a torcer, confessá-la. A convivência com a moça tirou-me afinal desse empacamento de muar letrado.

Deu-se um incidente, por aí, que muita influência teve ao depois no desenvolvimento da minha existência: comecei a escrever.

Animou-me a isto um outro colega meu, camarada íntimo de Chagas, com quem morava e discutia dia e noite literatura.

Era ele dado a escrever versos satíricos aos professores e a coisas de estudantes, para o que demonstrava singular habilidade e uma virtuosidade invejável. Tinha mesmo fundado um jornalzinho de estudante e arrastou-me a escrever nele. Colaborava com artiguetes tímidos, vacilantes, tratando de assuntos adequados ao meio, troças a este ou àquele, pequenos comentários sobre este ou aquele fato. Foi assim que comecei. Houve quem apreciasse e gabasse mesmo; e tratei de aperfeiçoar-me. Tratei de ler os autores com cuidado, de observar como dispunham a matéria, como desenvolviam, a procurar teorias de estilo, e isto, como todo principiante, fui procurar no enfado dos clássicos; mas, bem depressa, abandonei esse sestro e o meu escopo foi unicamente vazar o melhor possível o pensamento que queria vazar no papel.

Tinha um grande medo da gramática, dos galicismos, da regência dos complementos, das concordâncias especiais, por isso os escritos saíam-me cautelosos, numa prosa um pouco dura, sem fluência; mas os outros, assim mesmo, achavam graça no escrito.

Apurei-me, afinei-me, escrevendo duas, três e mais vezes a mesma coisa; e estendi a minha colaboração a jornaizinhos equivalentes ao do amigo de Chagas e, por intermédio dele, meti-me na roda de estudantes literatos que abandonam as letras mal se formam, e também na de profissionais.

Esqueci-me um momento dos meus propósitos de alto debate metafísico, de ferir a Ciência nas suas bases e contestar-lhe esse caráter de confidência dos Deuses, que os pedantes querem dar-lhe, para justificarem a vaidade de que tresandam, por saber dela um poucochito, levando, com as suas asserções arrogantes, tristeza no coração dos outros e discórdia entre os homens.

Certo dia em que me pus a pensar nisso, veio-me a reflexão de que não era mau que andasse eu a escrever aquelas tolices. Seriam como que exercícios para bem escrever, com fluidez, claro, simples, atraente, de modo a dirigir-me à massa comum dos leitores, quando tentasse a grande obra, sem nenhum aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial ou um falar abstrato que faria afastar de mim o grosso dos legentes. Todo o homem, sendo capaz de discernir o verdadeiro do falso, por simples e natural intuição, desde que se lhe ponha este em face daquele, seria muito melhor que me dirigisse ao maior número possível, com auxílio de livros singelos, ao alcance das inteligências médias com uma instrução geral, do que gastar tempo com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados, abarrotados de títulos e tiranizados na sua inteligência pelas tradições de escolas e academias e por preconceitos livrescos e de autoridades. Devia tratar de questões particulares com o espírito geral e expô-las com esse espírito.

De resto, é bem sabido que os especialistas, sobretudo de países satélites, como o nosso, são meros repetidores de asserções das notabilidades européias, dispensando-se do dever mental de examinar a certeza das suas teorias, princípios, etc., mesmo quando versam sobre fatos ou fenômenos que os cercam aqui, dia e noite, fazendo falta, por completo, aos seus colegas da estranja. Abdicam do direito de crítica, de exame, de livre-exame; e é como se voltássemos ao regímen da autoridade.

A verdade, porém, é que, raciocinando assim, eu não fazia senão justificar-me, iludindo-me, de um desfalecimento no caminho que tinha prometido a mim mesmo trilhar. Não só abandonei os meus estudos particulares, satisfeito como sucesso de estima que tinha obtido no estreitíssimo círculo de estudantes, como também não liguei importância alguma mais às disciplinas escolares.

Adiei os exames e deixei passar as duas épocas, sem prestar nenhum. Pouco demorou que Efigênia não soubesse de minha estréia nas letras; e instasse comigo para que lhe trouxesse os jornais. Trouxe um ou outro e percebi que ela não tinha entendido as croniquetas. Não era possível ser de outra forma. Eram momentos, observações sobre episódios de uma classe, de vida muito à parte, com costumes muito seus e sempre a variar. Um dia, porém, tentei um conto. Havia já uma certa naturalidade na narração, alguma lógica no encadeamento e no desenlace, mas sem frescura de emoção diante das coisas vivas e mortas, e uma falta de ingenuidade doce, que precisava acentuar-se na heroína.

Era a tal história da rapariga que Efigênia me falou na hora da morte... A dar-lhe o continho, não fui eu; e até hoje não sei como lhe chegou às mãos. O certo é que sempre me falou nele, fazendo observações a respeito, como se o tivesse de cor. Ainda me lembro que um dia, já estávamos casados, ela, aludindo ao conteco, me perguntou:

— Por que você não descreveu mais o amor da rapariga?

— Por que você pergunta isto? fiz eu.

— Ora, porquê! Porque ficava mais bonito...

— Tive vergonha.

Ela dardejou sobre mim o seu olhar de malícia, em que não havia o menor sinal de raiva, mas só esforço de penetração, e inquiriu:

— Vergonha de quê?

— Não sei.

Disse isso, vexamos e nos calamos, como não precisando mais de palavras para nos entendermos.

Tenho me alongado em detalhes que parecem não ter interesse algum para o meu primitivo objetivo; mas espero que, quem tiver a paciência de me ler, há de achá-los necessários para a boa compreensão desta história de uma vida sacudida por angústias íntimas e dores silenciosas.

Havia quase dois anos que eu comia na pensão da viúva Dias, quando ela caiu doente. Um ataque prostrou-a, e perdeu movimentos, e tudo levava a crer que morresse ou ficasse paralítica. Parecia não ter parentes no Rio; e, a tal respeito, pouco sabia, pois nunca foi dos meus hábitos essa nacional bisbilhotice doméstica. Daqui e dali, uma frase hoje ou uma recordação amanhã, tinham-me feito crer que ela tinha ainda dois filhos, mas em Mato Grosso. Um, o mais velho, era oficial do Exército e lá vivia muito bem casado, interessado na política local e de lá não queria afastar-se; o outro era o mais moço, mais moço ainda que Efigênia, e vivia com o irmão que, por não poder dar-lhe caminho qualquer, o fizera soldado, depois cabo, mas não conseguindo, por mais que se esforçasse, fazê-lo sargento do seu batalhão.

Só isso sabia sobre a família da velha Dias e, conforme o meu gênio, dei-me por satisfeito.

Durante alguns dias ainda, a moça sua filha, fazendo todos os sacrifícios, dirigiu a pensão; mas, ao chegar o fim do mês, avisou a todos nós que ia fechá-la. Não podia mais; a mãe exigia todos os cuidados, e ela não podia atender as duas coisas ao mesmo tempo: à mãe e ao negócio. Tivéssemos paciência e desculpássemos.

— Por que não vende? perguntou alguém.

— Não posso perder tempo em esperar quem apareça para comprar. Faremos leilão de tudo. Eu, mamãe e Ana vamos morar nos subúrbios, onde talvez minha mãe melhore.

Ana era uma crioula de meia-idade, que chefiava a cozinha. Não era bem uma criada; era uma espécie de agregada desse tipo especial de negras e pretas, criado pela escravatura, que seguem as famílias nos seus altos e baixos, são como parte integrante delas e morrem nelas.

Reparei que, quando Efigênia respondeu daquela forma, olhou para mim, com menos afinco do que lhe era habitual, e que seu olhar, sempre enxuto e polido, tinha alguma névoa úmida, uma angustiosa expressão de dor de quem não sabe ou não quer chorar.

Aquele pequeno drama doméstico, embora seja eu de natural bom, naquela ocasião, não me feriu muito, porque tinha ainda o coração dessecado por disparatadas ambições; agora, porém, relembro, censurando-me a mim mesmo, por não ter sabido avaliar logo o tormento daquela pobre moça, só no mundo, a acompanhar a mãe que mal se movia no leito.

Acabada a pensão, deixei de saber notícias delas, durante três ou quatro meses. Já me passavam mesmo da lembrança, iam ficando no rol das fracas impressões da vida, quando, com espanto, recebo um bilhete de Efigênia, pedindo-me fosse vê-las, numa estação dos subúrbios. "Minha mãe, dizia-me ela, tem melhorado; mas, mesmo assim e por isso, talvez, pede que o senhor venha até cá, em atenção a ela".

Não enxerguei no bilhete coisa alguma de extraordinário. O que me passou pela idéia foi que precisassem de algum recurso de dinheiro e, em falta de outrem, apelassem para mim. Isto me punha em sérios embaraços, porquanto não dispunha de pronto de qualquer quantia e ser-me-ia doloroso negar-lhes o que me pedissem, pois era fácil de supor as suas necessidades. Em todo o caso, disse de mim para mim, vou lá.

Uma tarde, tomei o trem de subúrbios e fui em demanda da casa das pobres senhoras. Viajei despreocupado, sem dar nenhuma importância ao caso. O meu pensamento ia vagabundo para todos os lados, sem me deter em coisa alguma. A observação mais demorada que fiz, foi a da grotesca e imprópria edificação dos subúrbios, com as suas casas pretensiosas e palermas, ao jeito das dos bairros chics, a falta de jardins e árvores, realçada pelos morros pelados, pedroucentos, que, de um lado, correm quase paralelamente ao leito da estrada e quase nele vêm tocará Não parecia aquilo subúrbios de uma grande e rica cidade; mas uma série de vilarejos pedantes, a querer imitar as grandes cidades do país. Totalmente lhes fazia falta de gracilidade e de frescor de meia roça.

Destarte, cheguei à estação em que moravam e fui ter à casa de dona Clementina Dias. Ficava longe da estação, numa rua improvisada, mal delineada pelas casas escassas que se erguiam, tendo de permeio terrenos baldios, onde cresciam árvores de capoeira de certo porte. Por toda a parte, jaqueiras, mangueiras, sebes de maricás, além das essências silvestres de que falei, enfim, muita árvore e muita sombra doce e amiga. Se os arredores da estação tinham um ar pretensioso, de pretender-se um pequeno Rio de Janeiro, aquela rua longínqua, simplesmente esboçada, ensombrada de grandes árvores, atapetada de capim e arbustos, tinha a parecença de uma estrada, ou antes, de um trilho de roça.

Bati na porteira, pois tinha uma, ficando o chalezinho afastado da cerca que bordeava a rua. Era começo de março e os espinheiros dela estavam em flor, tocados de um branco flocoso e macio. Olhei as montanhas distantes; a tarde ia adiantada e elas se enegreciam e douravam-se e prateavam-se...

Abriu-me a porta a moça e, juntos, entramos na casa modesta, cuja planta é conhecida de todos na sua simplicidade mais que elementar. Um quadrado, ou quase isso, divide-se em quatro partes desiguais, as menores são quartos e as maiores salas que se comunicam entre si por uma porta. Um quarto fica do lado esquerdo e dá para a sala de visitas; e outro, do lado direito e tem comunicação para a sala de jantar. Há um puxado, aos fundos, para a cozinha.

Descansei o chapéu na sala de visitas e logo Efigênia me disse:

— Venha ver mamãe.

Abriu a porta do quarto que dava para onde estávamos e nele deparei a velha dona Clementina.

Pareceu-me melhor. Tinha a fisionomia mais repousada. Estava deitada, não bem deitada, assim como que meio sentada, com o busto reclinado sobre grandes almofadas. Os olhos estavam bons e, ao contrário da filha, que tinha nos seus sempre uma grande firmeza, os dela eram incertos, distraídos e erradios, humildes sempre de bondade e não sei de que vaga e indeterminada cisma.

Perguntando-lhe se ia melhor, ela me disse lentamente:

— Sim, vou melhor, doutor; mas vivemos tão sós...

— Nem tanto, dona Clementina. Tem a companhia de sua filha, da Ana, que...

— E do Nicolau, fez a moça.

— Que Nicolau? perguntei eu.

— Aquele que carregava marmitas, explicou a velha senhora. Ele não pára aqui.., vai trabalhar.

— Qual trabalhar! acudiu a Ana, que chegava naquele momento. Não sai das vendas e dos botequins... Uma vez ou outra faz um carreto, um biscate...

— Não digas isso, Ana. Sempre foi bom para nós... Soube da minha moléstia e veio logo nos ver... Que seríamos nós, neste deserto, sem um homem em casa. Ele nos serve e nos ajuda nas medidas de suas posses...

Este Nicolau não era bem preto; tinha a tinta do rosto azeitonada, cabelos lisos e negros, embora a barba e o bigode fossem crespos. Fora praça do Exército e muito chegado ao pai de Efigênia, que morrera capitão. Tendo baixa, quando cismava e deixava os seus empregos de ocasião, procurava a casa da viúva, ajudava-a nisto ou naquilo e um belo dia desaparecia, pois arranjava um trabalho neste ou naquele ponto da cidade e arredores. Corria o Rio de Janeiro, da Penha à Gávea, da Praça do Mercado a Santa Cruz; conhecia-o todo, pois o palmilhava a pé, de bonde, de carroça, de automóvel, só não empregava o cavalo, e, assim mesmo, não se sabe se o fazia nas freguesias rurais.

Nicolau era nortista, do Piauí ou do Ceará, mas viera muito moço para um corpo do Exército, estacionado no Rio de Janeiro, e nunca mais quis sair da capital do país.

— Por que você não vai para sua terra, Nicolau, comer buriti e mangaba?

— Pra que? dizia ele. Aqui tem também boa fruta; o carioca é que não sabe... Olhe: eu sempre acho.

De fato, ele sempre descobria frutas, que trazia a dona Clementina, se não lhe acontecia achar comprador pelo caminho. Era fiel como um cachorro, serviçal, prestável, mas despido de toda a ambição na vida. Não procurava outro prazer na vida senão servir e beber cachaça. Só bebia cachaça; não suportava outra bebida.

Ouvindo o que a mãe dizia a respeito de Nicolau, Efigênia observou com certa dureza:

— Ora, qual! Mamãe! Nicolau não serve pra nada... Se fôssemos fiar nele, estávamos bem arranjados. Ele chega à noite, deita-se e dorme que nem uma pedra até o dia seguinte. De que serve?

— Não diga isso, Efigênia; é sempre um companheiro. Tenha pena.

— Tenho, mas a verdade deve se dizer.

Com intuito de variar de conversa, perguntei de chofre:

— E os seus filhos, dona Clementina?

Ela me olhou com espanto, e eu, atônito, olhei dela para a moça, que parecia censurar-me amargamente com os olhos.

A velha, afinal, falou, e com raiva:

— Não me fale neles! Deixe-me... Deixe-me...

Efigênia chamou-me:

— Venha cá, doutor Mascarenhas. Mamãe quer descansar.

Anoitecia. Ainda havia cigarras retardatárias a chilrear dentro da melancolia do fim do crepúsculo. Quando íamos saindo, a velha chamou:

— Efigênia, endireita-me na cama.

A sua voz já era outra; a filha apressou-se em ajustá-la, em posição conveniente nos travesseiros. Paralítica de um lado, precisava a todo o instante de quem a auxiliasse para tudo. Mesmo com a mão esquerda, que já tinha ganho alguns movimentos, ela não podia afastar os cabelos, quando lhe caíam sobre os olhos, senão com auxílio de alguém. Ao contrário de Efigênia, que os tinha escassos, os da mãe eram ainda abundantes e tinham poucos fios brancos.

Logo que se viu em posição, disse-me:

— Ah! Meu filho! Que suplício! Tenho que, a toda a hora e todo o instante, incomodar os outros... Estar parada não me incomoda tanto, mas... ter que aborrecer todos... e eu... e eu que só tenho essa filha! Coitada!

Sossegou um pouco e continuou:

— O que me aborrece também... O que me aborrece, doutor, é deixá-la só por aí... Se, ao menos, ela...

— Mamãe, sossega! Vamos falar em outra coisa! observou-lhe com alguma rispidez a filha.

Eu e a Ana não dizíamos nada. Nós ambos adivinhávamos que daquele diálogo entre mãe e filha sairia alguma coisa que interessava o Destino.

— Não! Não! fez a velha com teimosia. Disseste que falavas, que confessavas... E tua mãe que te pede, diz a verdade...

— Mas, mamãe!

A velha tinha falado com uma energia pouco comum, com um forte acento de desespero; e a filha, súplice e vexada. Eu não entendia nada daquela cena e a Ana, a quem interroguei com olhos, parecia sem espanto. Sorria a meio até.

Depois do balbucio, dirigindo-se a mim e à Efigênia, dona Clementina continuou com entono de ordem:

— Vocês devem se entender para o meu sossego.. Vão para a sala conversar, enquanto eu descanso um pouco. Ana, acende as lâmpadas.

Não havia meio de eu atinar com o sentido de tudo aquilo. Estava no ar e me parecia ao mesmo tempo estar entre doidos. A viúva ainda ordenou:

— Vão.

E obedeci ao convite de Efigênia:

— Venha para a sala, "seu" Mascarenhas.

Notei a mudança de tratamento e segui-a. Sentou-se ela e uma cadeira e eu também. A porta do quarto estava fechada. A preta Ana ficara do lado de dentro. Ficamos uns instantes calados. A fisionomia de Efigênia era de opressão, de vergonha, de angústia... Parecia sofrer por não poder chorar. Já tinha percebido nela essa dificuldade para o pranto. Não dizia nada. Ao fim de instantes, ousei:

— Mas o que há, dona Efigênia?

— Que há? fez num ofego.

— Sim; o que há?

— Há... sim... há...

Depois, como se tomasse coragem e alento, falou de um só hausto:

— O senhor não me tomará mal, não é?

O tom de voz, o olhar, a atitude toda ela da moça me pareceu de vergonha, de humilhação, mas, ao mesmo tempo, do desejo de dizer, de confessar qualquer coisa que a trabalhava interiormente.

Eu me perturbava, mas respondi com firmeza:

— Não há motivo... Fale, minha senhora; seja franca!

Ela acalmou-se, olhou-me com a sua firmeza habitual de olhar e perguntou-me naturalmente:

— Eu amo, seu Mascarenhas; o senhor quer casar comigo?

Esperava tudo, menos uma pergunta dessas. Vi logo as desvantagens do casamento. Ficaria preso, não poderia com liberdade executar o meu plano de vida, fugiria ao meu destino pelo dever em que estava de amparar minha mulher e a prole futura. Com os anos cresceriam as necessidades de dinheiro; e teria então de pleitear cargos, promoções, fosse formado ou não, e havia de ter forçosamente patronos e protetores, que não deveria melindrar para não parecer ingrato. Onde ficaria o meu sonho de glória, mesmo que fosse só de demolição? Onde ocultaria o meu "pensamento de mocidade"? Havia de sofrer muito, por ter fugido dele...

De resto, mesmo que conseguisse aproximar-me da realização do que planejava, o meu casamento era a negação da minha própria obra.

Apesar de toda a minha superioridade no momento, o meu orgulho me determinava que não desse essa prova pública de fraqueza; que não sancionasse com esse gesto o pensar geral; que não amaciasse o meu desgosto e não o tornasse inútil, para orquestrar superiormente a obra que meditava... Tudo isso me passou num segundo pelo pensamento e só pude responder com uma exclamação:

— Eu!

— Sim; você, Mascarenhas!

Ela percebia bem o meu caráter, o meu natural hesitante e a minha disposição de inclinar-me sempre para o lado simpático. Ela já me governava. Eu tremia.

— Mas, minha senhora, — animei-me — sou apanhado assim de sopetão... A senhora não me conhece bem... Sou cheio de defeitos, de caprichos... Não vá se arrepender...

Não sei como cheguei até aí. Fosse arrastado pela fatalidade da palavra ou determinado por outra qualquer força, o certo é que pronunciei aquele meio "consinto" — "não vá se arrepender".

Parece-me que tinha falado mais alto, a ponto de dona Clementina ouvir lá, de dentro do quarto, e dizer, que eu escutei:

— Também eu quero, doutor!

Havia me esquecido desta. Olhei mais firme a filha. Não tinha mais o aspecto de angústia, de vergonha, de humilhação; os seus olhos não tinham mais aquela vontade incoercível de chorar. A sua fisionomia estava risonha, banhada de alegria. Acudindo à mãe, ela respondeu:

— Ele aceita, mamãe.

Não a desmenti e fomos até a borda da cama de dona Clementina. A custo apertou-me a mão, eu a beijei depois, e ela me disse:

— Abracem-se, meus filhos. Como estou satisfeita!

Deu um suspiro muito longo e nós nos abraçamos. A Ana chorava, eu também, mas me sentia feliz...