O Guarani/I/VIII

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Tudo estava em sossego; apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.

A esta hora, havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto tinham uma mesma idéia.

Separados pelos costumes e pela distância, os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física, e se reuniam num só pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo.

Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vértice.

Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa, trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas.

O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas, em compensação, viam-se aos cantos do alpendre, grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os aventureiros podiam beber à larga.

O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens; afora uma pequena diferença de sabor, havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito, e produz a embriaguez.

A colação começara há meia hora; nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos canjirões, e o ranger da faca na escudela.

Depois, um dos aventureiros proferiu uma palavra, cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa; a conversa tornou-se uma espécie de coro confuso e discordante.

Foi no meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas palavras:

—E vós, Loredano, nada dizeis? Estais aí que não há modo de vos ouvir uma palavra!

—Certo, acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.

—Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião.

—Tirai-vos lá com os vossos penares, Rui Soeiro; achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez?

—E por que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.

—Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios.

O italiano conservava-se taciturno, e deixava que os outros o trouxessem à baila, sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito.

—Mas, por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!

—Ide com o que vos digo, retrucou Rui Soeiro, misser italiano está penado de amores.

—E por quem, se vos parece? perguntaram alguns.

—Ora, não custa sabê-lo; por aquele canjirão de vinho que aí lhe está fronteiro; não vedes que olhos que lhe deita?

Os aventureiros largaram-se a rir, aplaudindo a lembrança.

Aires Comes apareceu à porta do saguão.

—Eia, rapazes! disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa. Leva rumor!

—É um dia de chegada, sr. escudeiro; e deveis levá-lo em conta, acudiu Rui Soeiro.

Aires sentou-se, e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente dele.

—Olá! vós outros, gritou ele, com a boca cheia, para dois aventureiros que se haviam levantado; ide encher vosso quarto, que já refizestes, e os mais esperam sua vez.

Os dois aventureiros saíram para ir revezar os outros, que era costume ficarem de sentinela à noite; medida esta necessária naquele tempo.

—Estais hoje muito severo, Sr. Aires Gomes, disse Martim Vaz.

—Aquele que dá as ordens, sabe o que faz; a nós cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.

—Ah! por que não dizíeis isto logo?

—Pois ficareis agora entendidos; boa guarda, que talvez breve tenhamos que ver.

—Venha isso, acudiu Bento Simões, que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do mato.

—E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora? perguntou Vasco Afonso.

—Tem que saber isso? Quem, senão os índios, nos dão esta folia?

Loredano ergueu a cabeça.

—Que histórias contais aí? Supondes que os índios nos atacarão? perguntou ele.

—Oh! eis misser italiano que acorda; foi preciso cheirar-lhe a chamusco, exclamou Martim Vaz.

A presença de Aires Gomes, reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros, fez com que fossem uns após outros desamparando a mesa, e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas.

Loredano, levantando-se, fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões; e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro; o italiano murmurou-lhes ao ouvido uma simples palavra:

—Amanhã!

Depois, como se nada se tivesse passado entre eles, os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado, e deixaram Loredano continuar o seu caminho até à beira do precipício.

Do lado oposto, o italiano viu refletir-se sobre as árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília, cujas janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada.

Aí esperou.

Álvaro, deixando Cecília, voltara triste e sentido da recusa que sofrera, embora o consolasse a sua última palavra, e sobretudo o sorriso que a acompanhou.

Não se podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado, de ver nos ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança que lhe dissesse que pensava nele. Tinha afagado tanto essa idéia, tinha vivido tanto tempo dela, que arrancá-la do seu espírito seria um sofrimento cruel.

Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento, formulou um projeto e tomou uma resolução. Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de jóias; e envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e aproximou-se do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília.

Também ele viu a luz das janelas se refletir defronte; e esperou que a noite se adiantasse, e toda a casa dormisse.

Ao tempo que isto se passava, Peri, o índio que já conhecemos, tinha chegado com o seu fardo, tão precioso que não o trocaria por um tesouro.

No valado que se estendia à beira do rio, deixou o seu prisioneiro, depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou, curvando um galho de árvore. Subiu então à esplanada, e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua cabana; o que porém não pôde distinguir, foi a maneira por que saíra quase logo.

Havia dois dias que não via sua senhora, que não recebia dela uma ordem, que não adivinhava um desejo seu para satisfazê-lo imediatamente.

O primeiro pensamento do índio, foi pois ver Cecília, ou ao menos a sua sombra; entrando na cabana percebeu, como os outros, a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela.

Suspendeu-se a uma das palmeiras que servia de esteio à choça, e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais, de um salto segurou-se ao galho de um óleo gigante que, elevando-se sobre a encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da casa.

Durante um momento o índio pairou sobre o abismo, balançando-se no galho fraco que o sustinha; depois equilibrou-se e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias.

Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e, escondido pela folhagem, aproximou-se até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro, e se colocavam igualmente a alguns passos.

A princípio, Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento: Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro.

Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!

Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.

Uma lembrança triste porem o assaltou; vendo os lindos objetos que a moça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.

O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.

Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.

Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.

É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopéias do coração.