Os Sertões/Últimos Dias/IV

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Passeio dentro de Canudos

Percebia-se-lhes, contudo, hora por hora, a exaustão.

Durante o dia o povoado, silencioso, marasmava na estagnação do bloqueio. Nem um ataque, às vezes. A 28 de setembro não replicaram às duas salvas de 21 tiros, de bala, com que foi criminosamente saudada, pela manhã e à tarde, a data belíssima que resume um dos episódios mais viris da nossa história. Era o fim.

Faziam-se já no acampamento preparativos para a volta; soavam livremente as cornetas; andava-se à vontade por toda a banda; entravam impunemente os comboios diários e correios, levando os últimos, para os lares distantes, as esperanças e as saudades dos triunfadores; grupos descuidados seguiam perlustrando pelas cercanias; improvisavam-se banquetes; e à tarde, formadas à frente dos quartéis de vários comandos, tocavam, nas retretas, as fanfarras dos corpos.

Percorria-se, ao cabo, quase todo o arraial.

A 28 o general-em-chefe e o comandante da 2ª coluna realizaram, com os estados-maiores respectivos, este passeio atraentíssimo.

Seguiram a princípio pelo alto das colinas à direita do acampamento e, depois de uma inflexão à esquerda descendo por dentro de sanga flexuosa, onde repontavam grandes placas de filades dando-lhe a feição de longa passagem coberta, avançaram até toparem as primeiras casas e, simultaneamente, esparsos, jazentes a esmo sobre montes de esteios, traves e ripas carbonizadas, os primeiros cadáveres insepultos do inimigo.

Tinha-se neste momento a impressão de uma entrada em velha necrópole que surgisse, desvendando-se de repente, à flor da terra. As ruínas agravavam a desordem das pequenas vivendas, construídas ao acaso, defrontando-se em bitesgas de um metro de largo, empachadas pelos tetos de argila abatidos. De sorte que a marcha se fazia adstrita a desvios tortuosos e longos. E a cada passo, passando junto aos casebres que ainda permaneciam de pé, oscilantes e arrombados, livres ainda das chamas, despontava ante o visitante atônito um traço pungente da vida angustiosa que se atravessara ali dentro.

Dizia-o, mais expressiva, a nudez dos cadáveres. Estavam em todas as posições, estendidos, de supino, face para os céus; desnudos os peitos, onde se viam os bentinhos prediletos; inflexos no último crispar da agonia; mal vistos, às vezes, caídos sob madeiramentos, ou de bruços sobre as trincheiras improvisadas, na atitude de combate em que os colhera a morte.

Em todos, nos corpos emagrecidos e nas vestes em pedaços, liam-se as provações sofridas. Alguns ardiam, lentamente, sem chamas, revelados por tênues fios de fumaça, que se alteavam em diversos pontos. Outros, incinerados, se desenhavam, salteadamente, nítidos, esbatida a brancura das cinzas no chão poento e pardo, à maneira de toscas e grandes caricaturas feitas a giz...

Seguia-se. A marcha gradativamente se tornava mais penosa, através de entulhos sucessivos de um esterquilínio pavoroso. A soldadesca varejando as casas pusera fora, às portas, entupindo os becos em monturos, toda a ciscalhagem de trastes em pedaços, de envolta com a farragem de molambos inclassificáveis: pequenos baús de cedro; bancos e jiraus grosseiros; redes em fiapos; berços de cipó e balaios de taquara; jacás sem fundo; roupas de algodão, de cor indefinível; vasilhames amassados, de ferro; caqueiradas de pratos, e xícaras, e garrafas; oratórios de todos os feitios; bruacas de couro cru; alpercatas imprestáveis; candeeiros amolgados, de azeite; canos estrondados, de trabucos; lascas de ferrões ou fueiros; caxerenguengues rombos...

E nestes acervos, nada, o mais simples objeto que não delatasse uma existência miseranda e primitiva. Pululavam rosários de toda a espécie, dos mais simples, de contas policrômicas de vidro, aos mais caprichosos, feitos de ouricuris; e, igualmente inúmeras, rocas e fusos, usança avoenga tenazmente conservada, como tantas outras, pelas mulheres sertanejas. Sobre tudo aquilo, incontáveis, esparsos pelo solo, apisoados, rasgados — registros, cartas santas, benditos em quaderninhos costurados, doutrinas cristãs velhíssimas, imagens amarfanhadas de santos milagreiros, verônicas encardidas, crucifixos partidos; e figas, e cruzes, e bentinhos imundos...

Em alguns lugares — um claro limpo, cuidadosamente varrido, um aceiro para que os incêndios não atingissem os entrincheiramentos. Varava-se mais facilmente por ali; penetrando fundo no casario e aproximando-se daqueles.

Topava-se, então, adiante, uma sentinela que recomendava em voz baixa prosseguir com cautela: o jagunço estava perto, menos de três metros, da outra banda da paliçada...

Os visitantes, generais, coronéis até ao último posto, na ansiedade de quem contorna uma emboscada, avançavam agachados, heroicamente cômicos, céleres, de cócaras, correndo. Transpunham a linha perigosa. Quebravam dois ou três becos. Chegavam a outra trincheira: soldados imóveis, espectantes, mudos ou conversando em cochichos. Reproduzia-se a mesma travessia com o coração e as pernas aos saltos, a mesma corrida ansiosa, até outra trincheira adiante: idênticos lutadores, cautos, silenciosos, estendidas ou enfiadas as carabinas pelos parapeitos, que os resguardavam.

Transcorridos quinhentos metros, volvia-se à esquerda deixando à retaguarda as Casas Vermelhas e tinha-se uma surpresa — uma rua, uma verdadeira rua, a do Monte Alegre, a única que merecia tal nome, alinhada, larga de uns três metros e alongando-se de norte a sul, até à praça, cortando todo o arraial. Nela se erigiam as melhores vivendas, algumas casas de telhas e soalho, e entre estas a de Antônio Vila-Nova, onde dias antes se tinham encontrado restos de munições da coluna Moreira César.

Descia-se por ela em suave declive, divisando-se no extremo, na praça, um lanço derruído da igreja. Mas a breve trecho estacava-se de encontro a outro entrincheiramento, onde se adensava maior número de combatentes. Era o último, naquele rumo. Dali por diante um passo mais era o espingardeamento certo. Toda a parte do arraial à direita e na frente estava ainda em poder dos habitantes. Os adversários acotovelavam-se. Ouvia-se, transudando das paredes de taipa, o surdo e indefinível arruído da população entocada: vozes precípites, cautas, segredando sob o abafamento dos colmos; arrastamentos de móveis; soar de passos; e uns como longínquos clamores e gemidos; e às vezes — notas cruelmente dramáticas! — gritos, e choros, e risos, de crianças...

Volvia-se dali para a esquerda, voltando ao ponto de partida, através das casas tomadas nas vésperas, e o passeio tornava-se amedrontador. Em todo este novo segmento da linha do sítio, definindo-lhe o avançamento máximo depois dos combates da última semana, não se tinham destruído os casebres. Derrubadas apenas as paredes interiores e as empenas, as coberturas de barro sucediam-se unidas ou pouco espaçadas, feito o teto de longuíssimo armazém abarracado. A barreira de esteios e vigas, canastras e trastes de toda a sorte, por detrás da qual se alinhavam os batalhões, progredia por ela dentro, torcida e longa, desaparecendo de todo numa distancia de trinta metros, perdida na penumbra. Adivinhavam-se os soldados, a um lado, guarnecendo-a. Pelos recantos escuros, à retaguarda, lobrigavam-se os corpos dos jagunços mortos nos últimos dias, que fora perigoso queimar entre acervos de farrapos e estilhas de madeira, esparsos por toda a parte.

Impregnava o ambiente um bafio angulhento de caverna.

Era preciso valor para atravessar aquela espécie de túnel, em cuja boca, ao longe, mal se divisava um reflexo pálido do dia. Porque, a dois passos, ladeando-o, paralelamente, se estendia o entrincheiramento invisível do inimigo, interpostas as paredes fronteiras, enfrestadas. De sorte que o mínimo descuido, o mais rápido olhar por cima daqueles parapeitos de ciscalhos, era duramente pago. É que de parte a parte estavam as mesmas astúcias, avivadas dos mesmos ódios. Naquele sombrio finalizar da luta os antagonistas temiam-se por igual. Evitavam por igual o recontro franco. Negaceavam, estadeando as mesmas ardilezas e a mesma proditória quietitude. Imóveis largo tempo, um em frente ao outro, abrigados na mesma sombra, parecendo refletir a adinamia do mesmo esgotamento — espiavam-se, solertes, traiçoeiros, tocaiando-se. E não podiam encontrar melhor cenário para ostentarem ambos, soldados e jagunços, a forma mais repugnante do heroísmo do que aquele esterquilínio de cadáveres e trapos, imersos na obscuridade de uma furna.

Seguia-se por ali envolto de um silêncio lúgubre. Percebiam-se os soldados esfrangalhados, imundos, sem bonés, sem fardas, cobertos de chapéus de couro ou de palha, calçando alpercatas velhas, vestidos com o mesmo uniforme do adversário. E acreditava-se que, com alguma presença de espírito, o sertanejo pudesse insinuar-se pelos rombos do tapume extenso, e aparecer entre eles, e achegar-se com a espingarda ao parapeito, e ali se quedar forrando-se às torturas do cerco, sem que o conhecessem — o que ademais era facilitado pela mistura dos diversos batalhões. Nem o atraiçoaria palmar ignorância dos deveres ou exigências da vida militar, porque esta se extinguira, por completo. Não havia revistas, formaturas, nem toques, nem vozes de comando. Distribuídos os cartuchos, cada um se encostava ao espaldão de cacaréus pronto ao que desse e viesse.

Distribuídas as rações diárias, fartas agora, cada um as preparava quando se lhe antojava ensejo. Aqui, ali, à retaguarda da linha ou dentro dos cubículos estreitos, sobre trempes de adobes ou pedras, chiavam as chaleiras aquentando água para o café; ferviam panelas; destacavam-se grandes quartos de boi, pendurados aos caibros, avermelhando no escuro, sobre braseiros, assando. Em torno, acocorados, carabinas sobraçadas, viam-se, em grupo, os combatentes que aproveitavam ligeira trégua para almoçar ou jantar. Dali corriam, não raro, em tumulto, jogando fora os canecos de jacuba ou nacos de churrasco precipitando-se para a estacada quando, de súbito, estalava um tiro adiante e zuniam logo as balas esfuziantes, varando os tetos, estilhaçando ripas e traves, esbotenando paredes, emborcando caldeirões — espalhando soldados como um pé de vento sobre palhas. No parapeito, adiante, replicavam de pronto os que já lá estavam, atirando a esmo contra o tabique que defrontavam e donde partira a agressão. Imitavam-nos os companheiros laterais. Logo depois vibrava um abalo nervoso, único, estendendo-se daquele ponto aos dois extremos, com uma trepidação vibrátil de descargas; e travava-se o combate, de improviso, furiosamente, desordenadamente, entre adversários que se não viam...

Baqueavam algumas praças, mortas ou feridas. Conquistavam-se dois ou três casebres mais — empurrando-se logo por diante toda a cangalhada de móveis, encurvando-se a tranqueira num ângulo saliente em talhante avançado. Volviam, prestes, os lutadores que mais se tinham avantajado, às posições primitivas. E o silêncio descia de novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos e imóveis, acaroados com a borda da tapada sinistra, espectantes, na tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas — os moradores assassinados, estirados pelos recantos...

Deixava-se, por fim, este segmento sinistro do bloqueio, que trancava quase todo o quadrante do norte. Prosseguia-se, a céu aberto agora, em pleno dia, atravessando quintalejos pobres de cercas caídas e canteiros rasos, sem mais uma flor, e atravancados da mesma circalhagem indefinível, em montes. Sobre estes, corpos de sacrificados ainda: pernas surdindo inteiriçadas; braços repontando desnudos, num retesamento de angústia; mãos espalmadas e rígidas, mãos contorcidas em crispaduras de garras, apodrecendo, sinistras, em gestos tremendos de ameaça ou apelos excruciantes...

Deparavam-se novos viventes: gozos magríssimos, famélicos lebréus, pelados, esvurmando lepra, farejando e respirando aqueles monturos, numa ânsia de chacais, devorando talvez os próprios donos. Fugiam rápidos. Alguns cães de fila, porém, grandes molossos ossudos e ferozes, afastavam-se devagar, em rosnaduras ameaçadoras, adivinhando no visitante o inimigo, o intruso irritante e mau.

Ia-se descendo sempre, até à sanga escavada, embaixo, correndo, em direção perpendicular à que se levava, para o Vaza-Barris ao longe, para onde canalizavam, nas quadras chuvosas, as águas das vertentes interopostas. Ali terminava, batendo contra o topo da colina, onde estava a comissão de engenharia, a parte do arraial expugnada a 18 de julho. Podia atingir-se diretamente o acampamento seguindo em frente, transpondo o valo, subindo e atravessando, à meia encosta, a bateria de Krupps emparcada ao fundo do quartel-general da 1ª a coluna; ou, num desvio longo, volvendo à direita, acompanhando o valo, perlongando a linha primitiva do assédio, descendo para o sul. A travessia era sem riscos. As casas — num desordenado arruamento às bordas daquele sulco de erosão, acompanhando-lhe o declive, caindo-lhe pelos ressaltos, envesgando-lhe pelas curvas vivas — tinham, na maioria, sido desmanchadas, salvante poucas, as melhores, onde se improvisavam salas de ordem das brigadas, quartéis e ranchos da oficialidade. Uma delas era digna de nota. Fora uma tenda de ferreiro. Mostravam-no ainda alguns gastos marrões, tenazes partidas e derruída forja fixa, de adobes. E aquela ferraria pobre do sertão tinha uma bigorna luxuosa, do mais fino aço, que se fundira em Essen: um dos canhões tomados à expedição Moreira César.

Continuando a marcha topava-se a "linha negra", nome que primitivos sucessos justificavam, mas agora inexplicável para quem vinha das sombrias trincheiras deixadas ao norte.

Seguia-se acompanhando-a pelo fundo de um fosso, até se abrir a meio caminho, à direita, um claro amplo — a praça das igrejas, deserta, achanada, varrida, fazendo avultar maior, mais dominador, mais brutal, mais sinistro, com os seus paredões incombentes, fendidos de alto a baixo, com a sua fachada estupenda esboroando em monólitos, com as suas torres roídas, e o adro entupido de blocos encaliçados, e a nave, lá dentro, vazia, escura, misteriosa — o templo monstruoso dos jagunços.

Dados mais alguns passos fronteava-se a igreja velha, inteiramente queimada, reduzida às quatro paredes exteriores.

Tinham-se nesse momento, à esquerda, o mais miserando dos campos santos, centenares de cruzes — dois paus roliços amarrados com cipós — fincados sobre sepulturas rasas.

Transpunha-se depois o Vaza-Barris; enfiava-se pelo sulco profundo do rio da Providência, percorrendo, em torcicolos, as fileiras dizimadas do 5.° de Polícia, reduzido ao terço do primitivo quadro — e chegava-se, no tombador da Favela, a uma clareira em declive. No alto o baluarte Sete de Setembro sobressaía em balcão, dominante.

Percorria-se rapidamente aquele intervalo perigoso, alcançando-o.

Contemplava-se o arraial embaixo. Modificara-se afinal, o aspecto sombreado de largas manchas escurentas, de incêndios; erriçado de madeiramentos varando pelos rombos dos tetos; tumultuando em montões de argila — num esmagamento completo, arruinado, queimado, devastado...

Apenas estreita fímbria da face norte da praça e o núcleo de casebres junto à latada e à retaguarda da igreja se figuravam intactos. Mas eram em número diminuto, quatrocentos talvez, comprimidos em área reduzida. E os que neles se abrigavam certo não suportariam por uma hora um assalto de 6 mil homens.

Valia a pena tentá-lo.