Turbilhão/XVI

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— Boa noite.

Eram 2 horas da manhã quando Dona Júlia, que não dormira, ouviu ranger de leve a porta da rua. Esperou atenta, o ouvido alerta ouviu os surdos passos do filho ao longo do corredor, sentiu-os junto ao quarto; compreendeu que ele a espreitava. A lamparina dava uma luz escassa que apenas manchava as paredes, fazendo bailar sinistramente as grandes sombras das imagens e dos mais objetos pousados na cômoda. Os passos continuaram, vagarosos, cautelosos, com um rangido de solas, e cessaram. Ela não se movia, decidida a certificar-se. Uma hora imensa passou, muda, no silêncio da casa escura e quieta.

Não sem cuidado, os olhos no quarto da velha, que parecia dormir tranqüila, Paulo atravessou devagarinho a sala e foi-se pelo corredor. Dona Júlia sentiu-o passar, chegou mesmo a mover-se, revoltada contra o desrespeito, mas conteve-se. Talvez se houvesse iludido. Tentou erguer-se e, com grande esforço, trêmula, sentou-se na cama, tocando o soalho frio com os pés nus. Custava-lhe acreditar que o filho a houvesse enganado, abusando do seu estado para meter em casa uma mulher perdida. Amparou-se à cama e ficou de pé. Sentia-se fraca, arvoada, oscilando. Sentou-se de novo, sem ânimo, mas a indignação impelia-a; fez o primeiro passo, chegou à porta e, no escuro, encaminhou-se para o quarto em que dormia o filho. Foi d’encontro a uma cadeira: com o rumor deteve-se, assustada; pensou em voltar e quedou hesitante, o ouvido atento, receosa de que o filho aparecesse e a encontrasse de pé, espionando.

Paulo, efetivamente, ouvira o barulho do esbarro e logo pensara nela. Sentando-se na cama, ficara à escuta, e os dois, mãe e filho, imóveis, temiam-se — um, sem coragem de deixar o leito em que se metera, outra sem ânimo de prosseguir. Ritinha perguntou baixinho:

— Que é?

Ele murmurou:

— Pareceu-me ter ouvido barulho lá dentro.

— Quem sabe se sua mãe precisa de alguma coisa?

Ele não respondeu. A velha atreveu-se a continuar na treva, mais cautelosa. As pernas tremiam-lhe violentamente, mal a sustinham. Quando chegou à porta do quarto, firmou-se ao umbral, respirando cansada, com o coração a bater sôfrego.

Entrou: os braços estendidos encontraram os punhos bambos da rede: não estava ali ninguém. Ainda curvou-se, apalpou e, convencida, aprumou-se e ficou inerte, em grande desânimo, de olhos muito abertos na escuridão.

Era a amante; ele lá estava com ela. Vivia com ela, trouxera-a para casa, instalara-a sob as mesmas telhas que a agasalhavam. Voltou-se e retrocedeu no mesmo passo cauteloso, entrou no quarto e deitou-se, chorando aflitivamente.

Estava explicada a repentina saída de Felícia. Fora ele que a expulsara para ficar à vontade, sem o testemunho incômodo da pobre louca. Onde andaria a infeliz? Pobrezinha!

Paulo não ousou sair da cama, certo de encontrar a mãe, porque era ela que andava lá dentro, tinha certeza. Ritinha, vendo-o indeciso, sentou-se também e ficaram os dois muito juntos, à escuta, como à espera de que se repetisse o rumor que os havia alarmado. Ela deitou-se, puxou-o.

— Não é nada. Deixa lá. Que pode ser? Se fosse ela, chamava.

— Não sei.

— Se quer, eu vou ver.

— Não; não vale a pena.

E deitou-se. Mas ficou imóvel, preocupado. Às vezes parecia-lhe ouvir passos no corredor, na sala; sentia empurrarem a porta do quarto; levantava vivamente a cabeça, atento.

— Que medo tolo!

— Não é medo.

— Então que é?

— Sei lá.

Falaram de Mamede: ela, pedindo que se acautelasse contra o mulato, que estava preparando alguma; ele, sempre indiferente, não ligando importância. Que havia ele de fazer? Se o ameaçasse, dava queixa à polícia e estava tudo acabado.

— Sim, mas ninguém se defende de uma traição.

— Qual traição! Mamede o que quer é dinheiro para jogar. Pensas que ele tem saudade de ti? Pois sim. Quem quer bem não faz o que ele fazia. Histórias!

— Eu não digo que ele me queira bem, nem que se vingue por amizade, mas por capricho é capaz de tudo, eu sei.

— Pois que venha!

— Eu aviso para que o senhor se previna. Quem anda avisado vale por dois. Ele não é bom, isso não é. Eu sei por que falo.

— Pois sim, mas deixemos Mamede; — e, lânguido, passou-lhe o braço por baixo da cabeça, atraindo-a.

Pela madrugada, voltando ao seu quarto, Paulo percebeu que a mãe estava acordada — sentia-a mexer-se na cama, voltar-se, arquejar na aflição. Esteve a embalar-se de leve na rede, preocupado, não com o que ela lhe pudesse dizer, mas com o que faria Ritinha se fosse maltratada.

A passividade da enferma, a resignação de que dava provas constantes tranqüilizaram-no.

“Ora! que há de fazer? Se duvidar digo-lhe tudo. Afinal quem paga a casa sou eu... Não posso ter liberdade? Não posso ter um gozo? Falta de respeito? Ainda faço muito em guardar reserva. Não sou uma criança. ”E adormeceu resolvido a manter a mulata, a lutar por ela, a defendê-la da mãe cuja animada aversão sentia. Despertou em sobressalto, com Ritinha que sacudia a rede, chamando-o.

— Sua mãe não está boa, venha vê-la.

— Que tem?

— Não sei.

Saltou da rede em ceroulas, descalço, correu ao quarto. Dona Júlia, imóvel, de olhos cerrados, a boca entreaberta, seca, deixando ver os dentes, ralava com o cirro. De instante a instante, com esforço, sorvia o ar que lhe passava pela garganta com um gargarejo rascante, difícil, estrangulado. As faces cavavam-se-lhe; as pomas do rosto, muito salientes, luziam; as têmporas afundavam; os olhos perdiam-se enterrados. Paulo ficou atordoado, e, com os olhos cheios d’água, arrependido, com um remorso a remordê-lo, inclinou-se sobre a moribunda, chamando-a:

— Mamãe! Mamãe!

Respondia-lhe, de espaço a espaço, a respiração estertorosa da agonia. Mamãe! Apalpou-lhe os pés, esfriavam; as mãos inertes, com os dedos encolhidos, repousavam no colo imenso que parecia crescer na angustia.

— Ah! Ritinha... Mas, como foi? Por que não me chamaste?

— Eu não sabia. Foi só agora que vi, entrando no quarto com o café. Pensei que estava dormindo, mas quando ouvi o cirro compreendi tudo e fui acordar o senhor. Não há uma vela?

Paulo chorava em silêncio e a moribunda, entre os dois, continuava a estertorar abrindo muito a boca para a respiração.

Ritinha acendeu uma vela e colocou-a à mesa de cabeceira, ao lado de um pequeno crucifixo. Paulo arrancava os cabelos, retorcia as mãos.

— Nem uma pessoa para avisar Violante, para chamar um médico. Eu não tenho coragem de sair deixando-a assim. Como há de ser, meu Deus! Se tu pudesses, Ritinha... É perto, na Praia de Botafogo. Minha pobre mãe, coitada! Morrer assim, tão só. Vai, minha velha, faze-me este favor.

Ela ficou indecisa, receando um encontro com Mamede; por fim resolveu-se e murmurou:

— Pois sim.

— Tem paciência.

A mulata dirigiu-se para a sala, foi direito à janela, entreabriu-a e espiou. Ao longo do cais, ao sol, um homem passeava olhando o mar. Era o mulato.

Fechando vagarosamente a janela, Ritinha tomou ao quarto e, indiferente ao transe lúgubre, inclinou-se ao ouvido de Paulo, que se sentara à cabeceira da cama e lentamente enxotava as moscas que teimavam em pousar no rosto da moribunda e sussurrou:

— Ele está ali defronte.

O rapaz encarou-a pálido, transido de medo, e, em voz surda, num sopro, perguntou:

— Onde?

— Venha ver. Eu não dizia?

Ele lançou um triste olhar à agonizante. O ruído estertoroso continuava rouco, e, de quando em quando, com o enrijamento túmido do pescoço, a cabeça derreava-se no travesseiro.

— Ela pode morrer.

— É um momento.

Ele passou ao seu quarto, vestiu-se ligeiramente e seguiu a mulata.

Segredavam, pisavam devagarinho, em pontas de pés. Ele entreabriu cautelosamente a janela e deu logo com o mulato junto ao cais, ao sol, guardando a casa.

— E agora?

— Eu não lhe dizia? Olhe, o melhor é eu ir-me embora.

Ele voltou-se de repelão:

— Por quê? isso não! Então és obrigada a viver com um homem de quem não gosta?

— Não vou viver com ele. Vou por aí.

— E se eu o chamasse?

— Para quê?

Sem uma idéia, acabrunhado pela covardia, Paulo sentou-se no sofá, abatido, e ficou raspando o soalho com os pés nus. De repente. fitando a mulata, lembrou:

— Há um meio, Ritinha. — Olharam-se em silêncio e ele expôs a sua idéia: Eu chamo-o, digo-lhe que tu vieste para cá a meu pedido porque eu não tinha quem ficasse com mamãe...

— Pois sim!... — interrompeu incrédula a mulata esticando o beiço. — Não vê que ele é tolo!

— Então não sei, resmungou. Que faça o que quiser. Tu é que não devias ter medo, afinal não és escrava, não tens obrigação de viver com ele. Se não fosse o estado de mamãe eu sei o que faria, assim não posso. Não hei de deixar a pobre coitada sozinha para dar trela a Mamede.

E tornou para junto da velha. Ritinha ficou na sala.