Uma Campanha Alegre/II/XXX

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XXX

Julho 1872.

Depois da dispersão de uma guerrilha carlista — que operava junto da raia portuguesa — um carlista, um sargento, entrou a fronteira e depôs as armas.

Este homem que, sob a garantia dos tratados, da dignidade civil e da piedade humana, se entrega, na confiança da sua miséria, às autoridades portuguesas, foi tratado deste modo singular:

Veio de Melgaço até Viana, de cadeia em cadeia, entre privações e rudezas. Em

Viana foi atirado para o aljube, e não lhe deram de comer. Teve fome. Requereu, então, que lhe abonassem, não já o soldo devido pelos tratados, mas a ração de preso devida pela compaixão.

De Viana foi, pelo Porto, para Peniche, com uma escolta de 20 soldados, comandada por um tenente, o Sr. M. Este oficial português levava o preso desarmado, e

20 homens, com as espingardas carregadas. Teve ainda receios do soldado espan hol.

Exigiu que o algemassem. É necessário ter visto o sofrimento das algemas. Os braços inertes incham, adormecem, os pulsos arroxeiam, a respiração dificulta-se, um entorpecimento febril enerva, e os mais duros, os mais fortes, os mais concentrados, não marcham a pé duas léguas, com os pulsos encadeados, sem que a dor lhes faça correr as lágrimas em fio.

Deu-se isto com o soldado espanhol.

Tomar um militar, um vencido, um hóspede, um homem que se entrega aos respeitos da lei e às protecções da piedade, fatigado, desarmado, inútil — levá-lo, fazê-lo atravessar as imundícies e as fomes das nossas cadeias, maltratá-lo, arremessá-lo para a negrura de um aljube, não lhe dar sequer o caldo da enxovia, impor-lhe a fome, fazê-lo esperar longas horas às grades a chegada do pão, impeli-lo à humilhação de pedir, esfo-meado, metê-lo numa escolta de 20 homens, algemar-lhe os pulsos, e impeli-lo para um destino escuro, como um boi que se encurrala — é bem digno deste País, que por isso que tem a inépcia, não podia deixar de ter a maldade. Alexandre Dumas tinha um abutre que era o camarada íntimo de um pato. E aquele espírito radioso dizia sobre este facto — que era a natural ligação da estupidez e da ferocidade.

Portugal tem em si o abutre — e o pato.

Há tanto tempo nos separamos da inteligência — que devíamos por fim encontrar-nos com a vileza.

O senhor tenente, comandante da escolta — esse é um sintoma. É a consciência do exército. Tendo de conduzir um soldado espanhol internado, vencido, pacífico, desarmado, pede 20 homens: mas receia — e manda carregar as espingardas: mas treme ainda — e manda algemar o preso! Dá portanto a entender — que 20 soldados portugueses

— corriam perigo nas estradas povoadas do Norte — diante de 1 soldado espanhol! Ó comissão do 1º de Dezembro! O foguetes altivos, soberbas filarmónicas do Largo do

Rossio! aí está com o que vos responde o exército, com o seco ruído do engatilhar de 20 espingardas e com o metálico estalido dos fechos de uma algema — contra um soldado espanhol vencido, e pacífico. De tal sorte, que se 1 000 soldados espanhóis, de um bairro de Badajoz, passassem o Caia, desarmados, os 20 mil soldados portugueses, de todo o Reino, armados, só teriam um meio de os conter — mandar os malsins algemá-los!