Viagens de Gulliver/Parte I/IV

Wikisource, a biblioteca livre
Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

Mildendo, a metrópole de Lilipute, é descrita, bem como o palácio do imperador. Uma conversa entre o autor e o secretário de Estado relativa aos assuntos daquele império. As ofertas do autor para servir ao imperador em suas disputas.

A primeira exigência que eu fiz, depois de ter conseguido a minha liberdade, foi uma autorização para que eu pudesse visitar “'Mildendo, a metrópole”'; o que o imperador facilmente me concedeu, mas com uma recomendação especial de não machucar nenhum de seus habitantes ou suas casas. O povo foi avisado, por meio de uma proclamação, sobre o meu plano de visitar a cidade. A muralha que a circundava tinha por volta de setenta centímetros de altura, e pelo menos vinte e oito centímetro de largura, e no seu entorno torres robustas dispunham-se à distância de 3 metros.

Adentrei o grande portão ocidental, e caminhei muito vagarosamente, e me esgueirando, através das duas ruas principais, usando apenas meu colete apertado, com medo de danificar os telhados e os beirais das casas com as pontas do meu casaco. Caminhava com o máximo de cautela, tentando não pisar em algum vadio que pudesse permanecer nas ruas, embora as ordens tivessem sido bastante rigorosas, para que todas as pessoas permanecessem em suas casas, correndo perigo por conta própria. As janelas dos sótãos e os balcões das casas estavam tão lotados de espectadores, que eu pensei em todas as minhas viagens não ter visto um lugar tão populoso.

A cidade era um quadrado perfeito, cada lado da muralha tinha cento e cinquenta metros de comprimento. As duas ruas maiores, que cruzavam e se dividiam em quatro quarteirões, tinham um metro e meio de largura. As alamedas e as ruelas, as quais eu não poderia entrar, mas apenas vê-las enquanto passava, tinham de trinta a quarenta e cinco centímetros. A cidade podia comportar quinhentas mil almas: as casas tinham de três a cinco andares: as lojas e os mercados eram bem abastecidos.

O palácio do imperador ficava no centro da cidade, onde as duas ruas principais se encontravam. Ele era rodeado por uma muralha com sessenta centímetros de altura, e a seis metros de distância dos edifícios. Eu tive permissão da sua majestade para passar por cima desta muralha, e, sendo o espaço bastante amplo entre a muralha e o palácio, eu pude facilmente vê-la de todos os lados. O pátio externo era um quadrado de doze metros, e incluía dois outros pátios: no interno ficavam os apartamentos reais, os quais eu tinha muita curiosidade em ver, mas os achei extremamente difíceis; pois os grandes portões, de uma quadra para a outra, tinham apenas quarenta e cinco centímetros de altura, e dezoito centímetros de largura.

No entanto, os edifícios do pátio externo tinham pelo menos um metro e meio de altura, e para mim era impossível galgar sobre eles sem causar riscos imensos ao telhado, embora as paredes fossem fortemente construídas de pedras lavradas com dez centímetros de espessura. Ao mesmo tempo o imperador tinha muito interesse que eu tivesse conhecimento da magnificência de seu palácio; mas isto eu não pude fazer até três dias depois, os quais eu passei cortando com a minha faca algumas das maiores árvores do parque real, a cerca de cem metros de distância da cidade. Com a madeira essas árvores eu construí dois banquinhos, cada um com cerca de noventa centímetros de altura, e fortes o bastante para suportar o meu peso.

Depois das pessoas terem sido notificadas pela segunda vez, entrei novamente na cidade até o palácio com meus dois banquinhos em minhas mãos. Quando cheguei ao lado do pátio externo, fiquei de pé em cima de um banquinho, enquanto segurava o outro em minhas mãos, e assim passei por cima do telhado, e suavemente o coloquei no espaço entre o primeiro e o segundo pátio, que era de 2,4 m de largura. Depois passei muito tranquilamente sobre os edifícios de um banquinho a outro, e puxava o primeiro que estava atrás de mim com uma vara em formato de gancho. Com isso em mente, eu entrei no pátio mais interno, e me deitando de lado, coloquei meu rosto nas janelas dos andares médios, que foram deixadas abertas com esse propósito, e vislumbrei os apartamentos mais maravilhosos que alguém pode imaginar.

Lá eu vi a imperatriz e os jovens príncipes, em seus diversos alojamentos, cercados pelos seus principais assistentes. A sua majestade imperial estava feliz e sorriu para mim com muita graça, chegando até a me dar a mão para eu beijar.

Não irei, porém, antecipar ao leitor dando maiores detalhes a esse respeito, porque eu reservo essas informações para um obra de maior volume, que já está quase pronta para ser impressa, contendo uma descrição geral deste império, desde a sua origem, através de uma série de príncipes, bem como um relato particular de suas guerras e da política, direitos, ciência e religião, sua flora e fauna, seus modos e costumes particulares, com outros assuntos bastante curiosos e úteis, meu objetivo principal na presente obra é apenas relatar esses eventos e ocorrências que aconteceram comigo para o público ou para mim mesmo durante a permanência de nove meses nesse império.

Um dia de manhã, cerca de quinze dias depois da conquista da minha liberdade, “'Reldresal”' (como ele era chamado), o secretário principal para assuntos privados, veio à minha casa acompanhado por um servidor. Deu ordens para que seu coche o esperasse à distância, e solicitou para que lhe concedesse uma hora de entrevista, com o que concordei imediatamente, por conta de suas qualidades e méritos pessoais, bem como pelos bons préstimos que ele havia me concedido durante minhas petições na corte. Propus me deitar para que ele pudesse alcançar os meus ouvidos com mais comodidade, mas ele preferiu permitir que eu o segurasse em minhas mãos durante o nosso diálogo.

Ele começou me parabenizando pela minha liberdade, e disse “que ele supunha ter algum mérito no caso,” todavia, acrescentou, “que se isso não tivesse acontecido devido à situação atual da corte, provavelmente eu não a teria obtido com tanta brevidade. “Pois,” dizia ele, embora a condição de prosperidade em que nos encontrávamos em relação aos estrangeiros, estávamos lidando com dois males devastadores: uma facção violenta interna, e o perigo externo de uma invasão, por um inimigo muito poderoso. Com relação aos primeiros, você deve entender, que durante as últimas setenta luas tem havido dois partidos em combate neste império, que tem os nomes de “'Tramecksan”' e “'Slamecksan”', que se distinguem em razão dos saltos altos e baixos dos sapatos que usam.

Mapa de Blefuscu
ilustração de Thomas M. Balliet

Presume-se, na verdade, que os saltos altos são mais condizentes com a nossa antiga constituição, mas, embora fossem assim, sua majestade determinou utilizar-se somente dos saltos baixos na administração do governo, e todos os cargos que dependem da coroa, como você pode não ter observado, e particularmente que os saltos imperiais de sua majestade são mais baixos em cerca de um “'drurr”' do que qualquer outro de sua corte (“drurr é uma medida que vale por volta da décima quarta parte de uma polegada”). As animosidades entre esses dois partidos chegaram a tal ponto, que eles nem comem, nem bebem, nem conversam uns com os outros. Acreditamos que os Tramecksan, ou saltos altos, nos excedam em número, mas o poder está totalmente do nosso lado.

Compreendemos que sua alteza imperial, que é o herdeiro da coroa, tenha uma certa inclinação pelos saltos altos, pelo menos descobrimos naturalmente que um de seus saltos é maior que o outro, o que faz com que ele manque enquanto caminha. Agora, no âmbito dessas inquietações internas, somos ameaçados com uma invasão provinda da “'ilha de Blefuscu”', que é o outro grande império do universo, quase tão grande e poderoso quanto este de sua majestade. De modo que, de acordo com aquilo que temos visto você afirmar, que existem outros reinos e estados no mundo, habitados por criaturas humanas tão imensas quanto você mesmo, os nossos filósofos não tem muita certeza disso, e preferem crer que você caiu da lua, ou de uma das estrelas; porque estamos seguros, de que cem mortais do seu tamanho destruiriam, num curto espaço de tempo, todas as frutas e gados nos domínios de sua majestade: além do mais, os nossos relatos de seis mil luas não fazem menção alguma a outras regiões além dos dois grandes impérios de Lilipute e Blefuscu.

Estavam pois essas duas poderosas potências, como ia lhes falar, empenhadas na mais obstinada guerra durante as últimas trinta e seis luas. E tudo começou pelo seguinte motivo. É de conhecimento geral, que a maneira primitiva de se quebrar ovos, antes de serem comidos, fica na borda mais larga, mas o avô de sua majestade atual, quando ele era um garoto, ao comer um ovo, e ao quebrá-lo de acordo com as práticas antigas, cortou por acaso um de seus dedos. Por causa disso o imperador, seu pai, publicou um decreto, ordenando a todos os seus súditos, sob terríveis punições, para quebrar os ovos na extremidade menor.

O povo ficou tão ressentido com essa lei, que contam os nossos historiadores, ter havido seis rebeliões criadas por esse motivo, onde um imperador perdeu a sua vida, e um outro a sua coroa. Essas revoluções civis eram constantemente fomentadas pelos monarcas de Blefuscu, e quando eles foram subjugados, os exilados sempre buscam esse império como refúgio. Calcula-se que por esse motivo onze mil pessoas foram mortas, para não se submeterem a quebra de seus ovos na extremidade menor.

Muitas centenas de livros volumosos tem sido publicados a respeito desta controvérsia, mas os livros dos adeptos da extremidade maior tem sido proibidos há muito tempo, e todo o partido foi declarado incapaz por lei de exercer cargo público. Durante o curso desses distúrbios, os imperadores de “'Blefuscu”' fizeram frequentes queixas por meio de seus embaixadores, acusando-nos de criar um cisma na religião, e proferindo ofensas contra a doutrina fundamental do nosso grande profeta “'Lustrog”', no quinquagésimo quarto capítulo do Blundecral (que é o Alcorão deles).

Todavia, isto é considerado como sendo apenas uma pequena dilatação do texto, porque as palavras dizem o seguinte: “que todos os fiéis verdadeiros quebram seus ovos na extremidade conveniente.” E qual é a extremidade mais conveniente, parece, em minha humilde opinião, ser deixado para a consciência do próprio homem, ou pelo menos ser decidido pelo poder do magistrado soberano. Ora, os exilados dos adeptos da extremidade maior depositaram tanto crédito na corte do imperador de Blefuscu, e tanto auxílio e encorajamento particular por parte do partido deles em nosso país, que foi travada uma guerra sangrenta entre os dois impérios há trinta e seis luas, com muito sucesso, e durante esse período nós perdemos quarenta navios de grande porte, e um número muito maior de barcos menores, junto com trinta mil de nossos melhores marinheiros e soldados, e o dano sofrido pelo inimigo é reconhecido como sendo maior que o nosso.

Todavia, eles agora estavam equipados com uma frota numerosa, e estavam simplesmente se preparando para desembarcar em nosso território, e sua majestade imperial, depositando grande confiança em seu valor e coragem, me ordenou que eu relatasse esses acontecimentos para você.

“Gostaria que o secretário apresentasse minhas humildes considerações ao imperador, e informá-lo, de que eu, como estrangeiro, achava que não deveria interferir nos assuntos dos partidos, mas me dispunha, a arriscar a minha vida, para defender a sua majestade e o estado contra os invasores.”

← Capítulo anterior Título do capítulo Capítulo seguinte →
Parte I, Capítulo III Parte I, Capítulo IV Parte I - Capítulo V