Viagens de Gulliver/Parte I/V

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Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

[O autor, usando de um estratagema extraordinário, impede uma invasão. – Um alto título honorífico é concedido a ele. Chegam embaixadores por parte do imperador de Blefuscu, e reiteram a paz. Os aposentos da imperatriz pegam fogo acidentalmente; o autor teve papel fundamental no salvamento do resto do palácio.]

O império de Blefuscu é uma ilha situada na parte nordeste de Lilipute, da qual está separada por um canal de oitocentos metros de largura. Eu ainda não o tinha visto, e diante da notícia de uma invasão iminente, evitei aparecer naquele lado da costa, com receio de ser descoberto, por alguns dos navios do inimigo, que nunca tiveram nenhuma informação da minha existência; todas as relações entre os dois impérios haviam sido estritamente proibidas durante a guerra, sob pena de morte, e o embargo irrestrito de todos os navios foi decretado pelo nosso imperador.

Comuniquei à sua majestade sobre o plano de aprisionar toda a frota do inimigo; a qual, como nos asseguravam nossos batedores, estava ancorada no porto, pronta para zarpar ao primeiro sinal de vento favorável. Consultei os mais experientes marujos a respeito da profundidade do canal, o qual havia sido sondado frequentemente, e me disseram, que no meio, na parte mais funda, que tinha setenta glumgluffs de profundidade, o que equivale a a quase dois metros segundo as medidas na Europa, e o resto dele com no máximo cinquenta glumgluffs (1,3 m).

Caminhei em direção à costa nordeste, que dava de frente para a ilha de Blefuscu, onde, deixado atrás de uma colina, peguei meus telescópios, e vi que a frota do inimigo estava ancorada, consistindo de cerca de cinquenta homens de guerra, e um grande número de navios para transporte: Voltei então para minha casa, e dei ordens (mediante autorização) para que me trouxessem uma grande quantidade dos cabos e barras de ferros os mais resistentes. O cabo tinham a mesma grossura de um barbante e as barras eram do tamanho e do comprimento de uma agulha de tricô.

Tripliquei o cabo para torná-lo mais forte, e por alguma razão entrelacei juntas três barras de ferro, e dobrei as extremidades no formato de um gancho. Tendo então fixado cinquenta ganchos a tantos cabos quanto possível, voltei para a costa nordeste, e tirando o meu casaco, os sapatos, e as meias, caminhei em direção ao mar, com minha jaqueta de couro, e meia hora antes da maré alta. Atravessei sofregamente com a pressa possível, e nadei até o centro há uma altura de trinta metros, até sentir o chão. Cheguei à frota de navios em menos de meia hora.

O inimigo ficou tão assustado quando me viu, que eles saltaram de seus navios, e nadaram até a praia, onde não poderia haver menos que trinta mil almas. Peguei então meus apetrechos, e, amarrando um gancho ao furo da proa de cada navio, prendi juntas todas as cordas numa extremidade. Enquanto efetuava esta manobra, o inimigo disparou vários milhares de flechas, muitas das quais atingiram-me as mãos e a face, e apesar de grande habilidade, elas causaram grande transtorno durante as minhas manobras.

Minha maior preocupação foi com meus olhos, os quais eu teria irremediavelmente perdido, se não houvesse pensado num expediente. Eu conservava, dentre outras pequenos acessórios, um par de telescópios num bolso em particular, os quais, como observara anteriormente, haviam escapado dos fiscais do imperador. Peguei-os e os fixei em meu nariz tão forte quanto possível e assim protegido, continuei valorosamente meu trabalho, não obstante as flechas do inimigo, muitas das quais atingiram as lentes dos meus telescópios, não causando nenhum outro dano, além de uma pequeno deslocamento das lentes.

Uma vez fixados todos os ganchos, e, segurando os nós em minhas mãos, comecei a atirar; mas nem um barco se moveu, pois estavam todos bem presos às suas âncoras, de modo que restava ainda a parte mais ousada de minhas investidas. Soltei então a corda, e deixando os ganchos presos aos navios, cortei resolutamente com meu canivete os cabos que prendiam às âncoras, recebendo cerca de duzentos tiros em meu rosto e mãos, peguei então os nós nas extremidades dos cabos, aos quais estavam amarrados os meus ganchos, e com grande facilidade arrastei cinquenta dos maiores navios de guerra.

Os habitantes de Blefuscu, que não tinham a menor ideia do que eu pretendia, a princípio ficaram totalmente confusos. Eles tinham me visto cortar os cabos, e pensavam que o meu plano fosse apenas fazer com que os navios ficassem à deriva e ficassem batendo uns contra os outros: mas quando perceberam toda a frota movendo-se em fila, e vendo-me puxar em uma ponta, eles começaram a gritar de medo e desespero que é quase impossível descrever ou imaginar.

Quando me vi fora de perigo, parei por um momento para retirar as flechas que atingiram-me no rosto e nas mãos, e passei um pouco de unguento que me fora dado quando cheguei, como já contei isso anteriormente. Tirei então as lentes do meu telescópio, e tendo esperado por cerca de uma hora, até que a maré tivesse baixado um pouco, atravessei com dificuldade até o meio do canal com minha carga, tendo chegado a salvo no porto real de Lilipute.

O imperador e toda sua corte estavam na praia, esperando o resultado desta grande aventura. Eles viam os navios avançando num formato de meia lua, mas não conseguiam me distinguir, pois estava com água até o peito. Quando avancei até o meio do canal, eles ficaram mais desesperados ainda, porque eu estava com água até o pescoço.

e me condecorou alí mesmo com um nardac
ilustração de Thomas M. Balliet

O imperador concluiu que eu havia me afogado, e que a frota do inimigo estivesse se aproximando de maneira hostil, mas logo se desfizeram de seus temores, pois o canal ficava mais raso a cada passo que eu dava, e em pouco tempo me aproximei a ponto de me fazer ouvir, e segurando a ponta dos cabos, pelos quais a frota estava amarrada, gritei em voz alta, “Longa vida ao mais poderoso imperador de Lilipute!” Este grande príncipe me recebeu ao chegar em terra com todos os encômios possíveis, e me condecorou alí mesmo com um nardac, que era o título honorífico mais alto entre eles.

Sua majestade queria que eu tivesse outra oportunidade de trazer todo o resto dos seus navios inimigos aos seus portos. E tão imensurável era a ambição dos príncipes, que pareceu que ele pensava em nada menos que reduzir todo o império de Blefuscu a uma província, e governá-la, por meio de um vice-rei, ou destruir os exilados da extremidade maior, e obrigar essas pessoas a quebrarem os ovos na extremidade menor, e com isso ele continuaria a ser o único monarca do mundo todo.

Mas eu me encarreguei de dissuadí-lo desse propósito, com muitos argumentos extraídos dos tópicos da política bem como da justiça, e protestei veementemente “que eu jamais seria instrumento de escravização de um povo livre e valoroso.” E, quando o assunto foi debatido durante o conselho, a maioria mais sábia do ministério teve a mesma opinião que a minha.

Esta minha declaração aberta e ousada era tão contrária aos planos e à política de sua majestade imperial, que ele nunca conseguiu me perdoar. Ele mencionou esse fato de uma maneira muito artificial durante o conselho, onde me disseram que estiveram presentes alguns que eram considerados os mais sábios, e que com o seu silêncio compartilhavam de meu parecer, mas os outros, que eram meus inimigos secretos, não puderam deixar de apresentar suas declarações, as quais, por ventos paralelos, respingavam em minha pessoa.

E a partir dessa época começou a haver uma discussão entre a sua majestade e uma junta de ministros, que agiam perversamente em detrimento de minha pessoa, o que se deu em menos de dois meses, e provavelmente teria acabado com minha destruição total. Os grandes serviços aos príncipes são de tão pequeno peso, quando colocados na balança com uma recusa em satisfazer suas paixões.

Cerca de três semanas depois destes acontecimentos, eis que chegou uma importante embaixada de Blefuscu, com humildes propostas de paz, que em pouco tempo foram concluídas, sob condições bastante vantajosas para o nosso imperador, com as quais não vou incomodar o leitor. Havia cerca de seis embaixadores, com uma comitiva de aproximadamente quinhentas pessoas, e a entrada deles foi magnífica, apropriada à grandiosidade de seu imperador, e à importância de seus negócios.

Quando o tratado foi concluído, onde colaborei com diversos serviços devido aos créditos que recebera, ou pelo menos pensava contar na corte, suas excelências, que foram informadas particularmente do quanto lhes tinha sido generoso, me fizeram uma visita formal. Começaram dando os cumprimentos pelo meu valor e generosidade, e me convidaram para visitá-los em nome deles e do imperador, mestre amado deles, e me pediram para que fizesse algumas demonstrações de minha força prodigiosa, das quais eles tinham ouvido tantas maravilhas, e que eu prontamente os atendi, mas não irei incomodar o leitor com esses detalhes.

Depois de haver entretido suas excelências por algum tempo, com incansável satisfação e supresa de sua parte, pedi a eles que me dessem a honra de apresentar meus mais humildes respeitos ao imperador, mestre deles, com reconhecidas virtudes que haviam se espalhado pelo mundo inteiro com admiração, e cuja pessoa real eu decidira atender, antes de retornar ao meu próprio país.

Por conseguinte, na próxima vez que eu tive a honra de ver o imperador, solicitei sua permissão real para visitar o monarca de Blefuscu, o qual teve o prazer de me receber, como pude perceber, de maneira muito fria; mas não consegui saber a razão, até que ouvi o cochicho de uma certa pessoa, “de que Flimnap e Bolgolam haviam apresentado minhas relações com aqueles embaixadores como uma prova de inimizade;” fato esse, posso garantir, que meu coração era completamente inocente. E esta foi a primeira vez que eu comecei a conceber uma ideia imperfeita do que são as cortes e os ministros.

Podemos observar, que estes embaixadores falaram para mim, através de um intérprete, que os idiomas dos dois impérios eram muito diferentes uns dos outros, assim como dois idiomas são diferentes na Europa, e cada nação se orgulhava de sua antiguidade, beleza, e energia do próprio idioma, com um deprezo declarado pelo idioma do país vizinho, todavia, o nosso imperador, aproveitando-se da vantagem que conquistara com a tomada da frota inimiga, ordenou que eles entregassem suas credenciais, e fizessem um discurso, no idioma dos liliputianos.

E devemos reconhecer, que da grande relação de comércio e negócios entre os dois reinos, e a partir da incessante recepção dos exilados que era mútua entre eles, e do costume, em cada império, de enviar um para o outro, jovens da nobreza e a gentilidade mais abastada, de maneira a se educarem com a visão do mundo, e à compreensão dos homens e dos hábitos, havia poucas pessoas de renome, quer mercadores, quer marujos, que viviam nas regiões oceânicas, mas que conseguiam manter conversação em ambas as línguas, conforme descobri algumas semanas mais tardes, quando fui apresentar minhas considerações ao imperador de Blefuscu, o qual, tocado por grandes desditas, por causa da maldade de alguns inimigos meus, resultou para mim numa aventura muito feliz, como irei relatar no momento oportuno.

O leitor deve se lembrar, que quando eu assinei aqueles artigos com os quais reconquistara minha liberdade, haviam alguns que me desagradaram, em razão de serem completamente humilhantes para mim, e ninguém conseguiria forçar-me a submeter a eles exceto em caso de necessidade extrema. Porém, sendo eu um “nardac” da mais alta hierarquia daquele império, tais ofícios se colocavam como inferiores para a minha dignidade, e o imperador (para que lhe façamos justiça), nunca nem sequer os mencionou para mim. Todavia, não se passou muito tempo até que eu tive a chance de prestar à sua majestade, pelo menos era o que eu pensava, um serviço muito importante.

Certa ocasião, à meia-noite, fiquei sobressaltado com os gritos de centenas de pessoas na porta de minha casa; e acordando, fiquei de alguma forma assustado. Ouvi que repetiam incessantemente a palavra Burglum: diversos cortesãos do imperador, abrindo caminho no meio da multidão, imploravam para que eu me dirigisse imediatamente ao palácio, onde os aposentos de sua majestade, a imperatriz, estava em chamas, devido ao descuido de uma dama de honra, que dormiu enquanto lia um romance. Levantei imediatamente, e ordens foram dadas para que saíssem do meu caminho, e isso aconteceu provavelmente numa noite enluarada, mobilizei-me para chegar ao palácio sem pisar em nenhuma pessoa.

Descobri que eles já haviam colocado escadas nas paredes do apartamento, e todas estavam cheias de baldes, mas a água ficava a uma certa distância. Os baldes eram aproximadamente do tamanho de grandes dedais, e os pobrezinhos os faziam chegar até mim tão rápido quanto podiam: mas as chamas eram tão violentas que eles pouco ajudavam. Eu poderia facilmente ter abafado o fogo com o meu casaco, o qual infelizmente havia esquecido por causa da pressa, e saíra de casa apenas com minha jaqueta de couro.

A situação parecia totalmente desesperadora e deplorável, e o magnífico palácio teria sido totalmente reduzido a cinzas, se, por uma presença de espírito, que não me ocorre com frequência, eu não tivesse pensado em um expediente. Na noite anterior, eu havia bebido uma quantidade muito grande de um delicioso vinho conhecido como glimigrim, (os habitantes de Blefuscu o chamam de flunec, mas o nosso é considerado do mesmo tipo), o qual é bastante diurético.

Como oportunidade única no mundo, eu não havia me libertado de qualquer quantidade de urina ainda. O calor que começava a sentir ao me aproximar das chamas, diante do trabalho que tive para satisfazê-los, fez com que o vinho começasse a ser eliminado através da urina, a qual eu esvaziava em grandes volumes, e aplicava tão bem nos lugares apropriados, que em três minutos o fogo foi totalmente apagado, e o resto daquele majestoso bloco de edifícios, que havia custado muitos anos para serem levantados, foi preservado da destruição.

Já era dia, e eu retornei para minha casa sem esperar os parabéns do imperador: porque, embora eu houvesse prestado um serviço muito importante, eu não poderia dizer como sua majestade poderia se ofender pela maneira como havia realizado o feito, pois, em razão das leis mais importantes do reino, é crime sob pena de morte, de gravidade semelhante, urinar nas proximidades do palácio.

Mas eu fiquei bastante satisfeito com uma mensagem de sua majestade, “que ele daria ordens para que o justiciário maior me desculpasse formalmente: o que contudo não pude conseguir, e fui confidencialmente informado, de que a imperatriz, sentindo profunda aversão pelo que eu fizera, mudou-se para o lado mais distante da corte, e decidiu firmemente que aqueles edifícios não deveriam ser reparados para seu uso: e, na presença de seus principais confidentes ela não conseguiu se abster de prometer vingança.”

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