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Poemas e Canções (Vicente de Carvalho, 1917)/Antes dos versos

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Aos que se surpreenderem de ver a prosa do engenheiro antes dos versos do poeta, direi que nem tudo é golpeantemente decisivo nesta profissão de números e diagramas. É ilusório o rigorismo matemático imposto pelo critério vulgar às formas irredutíveis da verdade. Baste atender-se em que o objetivo das nossas vistas teóricas está no descobrir uma simplicidade que não existe na natureza; e que desta nos abeiramos, sempre indecisos, já tateantes, por meio de aproximações sucessivas, já precipitadamente, fascinados pela miragem das hipóteses. A própria unidade das nossas mais abstratas construções é enganadora. Nos últimos trinta anos – nesta matemática tão, ao parecer, definitiva – idearam-se não sei quantas álgebras, através de complicados simbolismos; e o número de geometrias elementares, como no-lo mostra H. Poincaré, é hoje, logicamente, incalculável. Ainda mais: na mesma geometria clássica sabe-se como se definem pontos, retas e planos, que não existem, ou se reduzem a conceitos preestabelecidos sobre que se formulam postulados arbitrários. Continuando: vemos a mecânica basear-se, paradoxalmente, no princípio da inércia universal e instituir a noção idealista do espaço absoluto, em contradição com tudo quanto vemos e sentimos.

Destarte se constrói uma natureza ideal sobre a natureza tangível. Ilude-se a nossa incompetência para abranger a simultaneidade do que aparece, por meio de processos vários nos nomes pretensiosos, mas na essência perfeitamente artísticos, porque consistem em exagerar os caracteres dominantes dos fatos, de modo a facultar-nos uma síntese, mostrando-no-los menos como eles são do que como deveriam ser. Assim nós vamos – idealizando, conjecturando, devaneando. Na astronomia resumem-se as leis conhecidas menos imperfeitas; no entanto, à medida que ela encadeia os mundos, vai libertando-nos a imaginação. Os mais duros experimentadores sonham neste momento aos clarões indecisos das nebulosas, vendo abrir-se em cada estrela incandescente um vasto laboratório onde trabalham os químicos da terra descobrindo surpreendentes aspectos da matéria... Prosseguimos, idealizando flagrantemente a física, com a estrutura subjetiva de sólidos e fluidos perfeitos e sistemas isolados, e até singularíssimos fios inextensíveis, de todo em todo inexistentes; e romanceando a química, definida pelo simbolismo imaginoso da arquitetura atômica de seus corpos simples, irreais.

Até que na físico-química, recém-instituída e já intensamente iluminada pela percepção transubstancial dos raios X, admitamos todas as utopias do misticismo transcendental dos alquimistas, e não nos maravilhemos de que os pensadores mais robustos estonteiem e delirem com faquires esmaniados, vendo, improvisamente, resplandecer no radium a alma misteriosa da matéria...

Assim nos andamos nós – do realismo para o sonho, e deste para aquele, na oscilação perpétua das dúvidas, sem que se possa diferenciar na obscura zona neutral alongada à beira do desconhecido, o poeta que espiritualiza a realidade, do naturalista que tateia o mistério.

Apeamo-nos então, acobardados, dessas presuntuosas cogitações. Encouchamo-nos, tímidos, no esconderijo de uma especialidade. Constringimos a alma. Moralizamos rasamente a vida, evitando a grande embriaguez dionisíaca da Vida. Renuímos às fantasias perigosas: utilitarizamo-nos... E ao cabo de tamanho esforço, para descermos até ao fastígio do maciço senso comum conservador e timorato – vemos com espanto, que mesmo no terra-a-terra da atividade profissional, todas as asperezas das nossas fórmulas empíricas e os traços rigorosos dos tira-linhas ainda se nos sobredoiram de um recalcitrante idealismo.

No pedaço de carvão de pedra, que acendemos na fornalha de uma locomotiva, reacendemos muitos raios de sol extintos há milênios. A locomotiva parte, e não concretiza apenas o mito poético de Faetonte. O que mais nos encanta é a imagem fulgurante da Força, renascendo e restaurando ao mesmo passo os esplendores de tantas auroras apagadas...

Pelas vigas metálicas de nossas pontes, friamente calculadas, estiram-se as “curvas dos momentos”, que nos embridam as fragilidades traiçoeiras do ferro. E ninguém as vê, porque são ideais. Calculamo-las; medimo-las; desenhamo-las – e não existem...

E assim por diante – infinitamente, em tudo o que fazemos e em tudo o que pensamos, ainda quando lançados na trilha heróica da profissão, vamos pulsear no deserto as dificuldades e os perigos... Porque quando nos vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados: olhos postos nos céus, contrafazendo a lira, que eles já não usam, com o sextante, que nos transmite a harmonia silenciosa das esferas, e seguindo no deserto, como os poetas seguem na existência,

. . . a ouvir estrelas!

Vede quanto é falso o prejuízo da esterilidade das cousas positivas. Em pleno critério determinista, somos talvez mais sonhadores do que nos tempos em que ao ingênuo finalismo teológico bastavam duas sílabas para descrever as maravilhas da Criação. Numa intimidade mais profunda com o mundo exterior, a nossa idealização aumenta de um modo quase mecânico. Estira-se-nos na visão deslumbrada. Alarga-se-nos nos novos quadros reveladores das imagens infinitas da natureza. E, à medida que se nos torna mais claro o sentimento das energias criadoras que nos circulam e vai eliminando-se do nosso espírito o velho espantalho da discórdia dos elementos, de que tanto se apraziam os deuses vagabundos, e nos sentimos mais equilibrados, mais fortes, mais solidários com a harmonia natural – maior se torna a fonte inspiradora do nosso idealismo fortalecido por impressões mais dignas da majestade da vida.

Se tivéssemos dúvidas a este respeito, no-las dissiparia o próprio espetáculo da última fase revolucionária da poesia contemporânea, caracterizada pelo contraste entre a decadência dos que a falseiam e a expansão crescente do sentimento estético da humanidade. Realmente, o que se afigura a tantos profetas agourentos a morte próxima da poesia é a demonstração ad absurdum da sua vitalidade mais ampla. Troca-se o efeito pela causa. Nas várias escolas esporádicas – que vão do parnasianismo, com a idiotice de seu culto fetichista da forma, ao simbolismo, com a loucura de suas idéias exageradamente subjetivas –, o que parece a decadência da poesia é apenas o desequilíbrio e as emoções falsificadas dos que não podem mais compreendê-la na altitude a que chegou o nosso pensamento. Considerando-se, de relance, apenas um dos extremos dessa longa cadeia de agitados – não seria difícil mostrar no desvio ideativo de Mallarmé, ou Verlaine, como outrora no satanismo de Baudelaire, os gritos desfalecidos de todos os fracos irritáveis, reconhecendo-se inaptos para entenderem a vida numa quadra em que o progresso das ciências naturais interpretadas pelo evolucionismo reage sobretudo e tudo transfigura, desde a ordem política, onde se instaura o predomínio econômico dos povos ativos, glorificados na inspiração prodigiosa de Rudyard Kipling, até a filosofia moral, onde se alevanta a aristocracia definitiva do homem forte, lobrigado pela visão estonteadora do gênio de Frederico Nietzsche. Então veríamos, malgrado as blasfêmias de tanto verso convulsivo, como um falso ceticismo pode significar a última tentativa da retrógrada explicação deísta do universo. Os “poetas malditos”, que nos fazem rir com o truanesco de suas visagens, são apenas ignorantes. A descrença nasce-lhes da inviabilidade da crença. São almas velhas onde se acumulam as influências ancestrais mantidas pela hereditariedade; e ainda quando se fingem de demônios agitam-nos aos olhos o espectro da antiga fé agonizante. E falam-nos naturalmente numa língua morta, de retardatários, em estrofes onde os traços de degenerescência resultam sobretudo da incompatibilidade com os novos ideais.

Baudelaire, entre os desconchavos de seu bárbaro misticismo, teve, certa vez, um lance genial, ao definir-se

. . . un cimetiére,

Oú, comme des remords, se traînent des longs vers. . .

Símbolo perfeito dessas organizações retrógradas, de revenants, a ressuscitarem num período avantajado da existência humana e para logo invadidos do desespero de já não sentirem o amparo das antigas verdades absolutas, que os alentavam outrora, nos remotos tempos de onde saltam por atavismo – claudicantes no ritmo dos versos – para nos entristecerem com as suas queixas de almas doentes da nostalgia do sobrenatural. Porque o quadro que defrontam é outro. Encontram os céus mais azuis depois das induções de Tyndall; a terra mais vivaz depois das generalizações de Lyell, envolvendo e transfigurando-se como um maravilhoso organismo. Para abarcar a vida, ou realizar a síntese de seus aspectos, já não basta o êxtase, ou a genuflexão admirativa, senão a solidariedade de suas leis com a nossa harmonia moral, de modo que, submetidos à unidade do universo, sejamos cada vez mais a própria miniatura dele e possamos traduzi-lo sem falsificá-lo, embora o envolvamos nos véus simbólicos da mais ardente fantasia. “Nesta altura, todas as perspectivas particulares se fundem. O homem não é – isoladamente – artista, poeta, sábio ou filósofo. Deve ser de algum modo tudo isto a um tempo, porque a natureza é íntegra”.[1]

A frase é de um naturalista. Mas vê-se que ela reproduz, hoje, transcorrido um século de atividade intelectual, quase literalmente, o idealismo filosófico de Fichte. É compreensível. E dela se deduz que nessa aproximação crescente entre a realidade tangível e a fantasia criadora, o poeta, continuadamente mais próximo do pensador, vai cada vez mais refletindo no ritmo de seus versos a vibração da vida universal, cada vez mais fortalecido por um largo sentimento da natureza.

  • * *

Ora, o que para logo se destaca nos “Poemas e Canções”, alentando o subjetivismo equilibrado de um verdadeiro poeta, é um grande sentimento da natureza. O amor, considera-o Vicente de Carvalho como ele é, positivamente: um caso particular da simpatia universal. E tal como no-lo apresenta

. . . risonho e sem cuidados,

Muito de altivo, um tanto insolente

diz-nos bem que na sua forma comum, fisiológica e rudimentar, de um egoísmo a dois, ele não lhe traduz uma condição primária do sentimento, escravo de uma preocupação mórbida e humilhante, senão um belo pretexto para resumir num objeto, em harmonioso sincretismo, os atributos encantadores da vida. O poeta diviniza a mulher como o estatuário diviniza um pedaço de mármore: pela necessidade ansiosíssima de uma síntese do maior número possível de belezas infinitas que lhe tumultuam em torno. Neste lance poderíamos aplicar-lhe a frase pinturesca de Stanchwith: “Não podendo apertar a mão desse gigante que se chama Universo, nem dar um beijo apaixonado na Natureza, resume-os num exemplar da humanidade.”

Por isto mesmo não se apouca limitando-se a essa redução graciosa. Para aformosear o seu símbolo, dá largas à expansão centrífuga da individualidade transbordante. E em tanta maneira se lhe impõem as escapadas para a amplitude do mundo objetivo, onde se lhe deparam as melhores imagens e as mais radiosas alegorias, que nos diz em alexandrinos correntios o que hoje lemos em páginas austeras de gravíssimos psicofisiologistas, quando atribui todo o seu culto

À doce Religião da Natureza amiga,

a uma alma remota que as energias profundas do atavismo lhe despertam, predispondo-o ao nomadismo aventureiro de algum avô selvagem:

Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado

Mantinha a liberdade inata da nudez.

Ao contrário, eu penso que alma antiga não sentiria esta atração da grande natureza que domina a poesia moderna. Entre a concepção estreitamente clássica da vida rústica das Geórgicas e o nosso esplêndido lirismo naturalista há diferenças tão flagrantes que fora inútil indicá-las. O movimento atual para os grandes quadros objetivos, à parte outras causas mais profundas, desponta-nos como uma reação do nosso sentimento, a crescer, paralelamente, com o próprio rigorismo prático da vida. Esse fugir ao racionalismo seco das cidades, que até geometricamente se nos desenha nas ruas retangulares, nos quadrados das praças, nos ângulos diedros das esquinas, nas pirâmides dos tetos, nos poliedros das casas, nos paralelepípedos dos calçamentos e nas elipses dos canteiros, onde é tudo claro, matemático, compreensível, e as inteligências se nivelam na evidência de tudo, e as vistas se fatigam na repetição das formas e das cores, e os ouvidos se fatigam no martelar monótono dos sons, e a alma se fatiga na invariabilidade das impressões e dos motivos – vai se tornando a mais e mais imperioso à medida que a civilização progride. O povo mais prático e mais lúcido do mundo é o que por ele mais irradia à caça do pinturesco. Não há neste momento, em Chamonix ou num rincão qualquer na África Central, nenhuma página vigorosa da natureza onde se não veja, rijamente empertigado, um ponto de admiração: o inglês!

Além disto, só o pensamento atual pode animar a alma misteriosa das cousas, num consórcio que é a definição da verdadeira arte. O nosso selvagem

..Que dormia tranqüilo um sono descuidado,

..Passivo, indiferente, enfarado talvez

..Sob o mistério azul do céu todo estrelado,


passaria mil anos sobre a Serra do Mar

..Negra, imensa, disforme,

..Enegrecendo a noite...

indiferente e inútil.

Para no-la definir e no-la agitar sem abandonar a realidade, mostrando-no-la vivamente monstruosa, a arrepiar-se, a torcer-se nas anticlinais, encolhendo-se nos vales, tombando nos grotões, ou escalando as alturas nos arrancos dos píncaros arremessados, requer-se a intuição superior de um poeta capaz de ampliar, sem a deformar, uma verdade rijamente geológica, refletindo num minuto a marcha milenar das causas geotectônicas que a explicam. Vemo-la na escultura destes versos:

Na sombra em confusão do mato farfalhante
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Erriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além, levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios;
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precipite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente,
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente.


É a realidade maior – vibrando numa emoção. Este chão que tumultua, e corre, e foge, e se crispa, e cai, e se alevanta, é o mesmo chão que o geólogo denomina “solo perturbado” e inspira à rasa, à modesta, à chaníssima topografia, a metáfora garbosa dos “movimentos do terreno.”

A mesma harmonia de sua visão interior com o mundo externo rebrilha quando o poeta observa que o mar

. . . brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde, e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito.

No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar

E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...

Idealização... Mas, evidentemente, quem quer que se alarme ante este mar perseguidor e esta terra prófuga riscará os melhores capítulos da geologia dinâmica. E os que fecharem as vistas à esplêndida imagem daquela matilha de maretas, certo, não poderão contemplar a “artilharia” de seixos e graeiros, do ilustre Playfair, a bombardear arribas, desmontando-as, disjungindo-as, solapando-as, derruindo-as e esfarelando-as – seguida logo da “cavalaria das vagas” de Granville Cole, a curvetear nos rolos das ondulações banzeiras, a empinar-se nas ondas desbridadas, a entrechocar-se nas arrebentações, a torvelinhar no entrevero dos redomoinhos; e de súbito disparando – longos penachos brancos dos elmos rebrilhantes distendidos na diluição das espumas – numa carga; em linha, violentíssima, sobre os litorais desmantelados; de modo que o litoral desmantelado se nos apresente,

like a regiment overwhelmed by cavalry. [2]

Considerai: esta frase, que se desentranha da árida prosa de um livro didático, ressoa, refulge, canta. É um verso. Prende o sonhador e o cientista diante da idealização tangível de um expressivo gesto da natureza.

Mais longe, quando o poeta escuta a grande voz do mar, “quebrada de onda em onda”, fazendo à lua uma declaração de amor, que seria apenas um ridículo exagero panteísta, se não fosse um pouco desse infinito amor que se chama gravitação universal; quando o mar exclama:

“Lua! Eu sou a paixão, eu sou a vida, eu te amo!
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha...
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que eu reclamo,
Um dia serás minha...
. . . . . . .
Há mil anos que vivo a terra suprimindo.
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas
Dentro de vagalhões penhascos submergindo,
Submergindo montanhas...

esta voz monstruosamente romântica, do mar, é a mesma voz de Geike, ou de Lapparent, e diz uma alta verdade de ciência diante do agente físico cujo destino lógico, pelo curso indefinido dos tempos, é o nivelamento da terra.

Também ao descrever-nos um recanto labiríntico de nossas matas,

Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dous troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante,

e mostrando-nos que


Acesa num furor de seiva transbordante
Toda essa multidão desgrenhada – fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha – a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida,

e atentando-se no quanto à pletora tropical, ou uma sorte de congestão da seiva, alenta e ao mesmo passo sacrifica em nossa terra o desenvolvimento vegetativo, criando-se o tremendo paradoxo da floresta que mata a árvore, ou reduz-la ao arbúsculo que foge à compressão dos troncos escapando-se na distensão esquiva do cipó, a desfibrar-se e a estirar-se, angustiosamente, na procura ansiosíssima da luz – avalia-se bem o brilho daquela síntese comovente, embora seja ela rigorosamente positiva em todos os elementos de sua estrutura artística.

Digamos, porém, desde logo, que em todo este lúcido panteísmo não é a floresta e a montanha que mais atraem o poeta. É o mar. A Vicente de Carvalho não lhe basta o pintar-nos


...o mar criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas...

ou quando ele, tempesteiando,


A uivar, a uivar dentro da sombra
Nas fundas noutes da procela

braceja com os ventos desabalados, e, recebendo de instante em instante a

..cutilada de um corisco,

rebela-se, e

impando de ousadia
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem...

Apraz-se antes de no-lo mostrar, nas “Sugestões do Crepúsculo”, com a melancolia soberana que por vezes o invade e lhe torna mais compreensível a grandeza, no vasto nivelamento das grandes águas tranqüilas, onde se nos dilata de algum modo a impressão visual da impressão interior e vaga do Infinito...

Porque

Ao pôr-do-sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.

Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.

Tudo amortece, e a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto,
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.

Domado então por um instante
Da singular melancolia
De entorno, apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.

Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?
. . . . . . . .
Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...

Fora impossível citar tudo prolongando a tortura do contraste entre estas frases duras e a flexibilidade desses versos, nos quais o metro parece nascer ao compasso da sístole e da diástole do coração de quem os recita.

Além disto, alguns deles, mercê da unidade perfeita, não se podem mutilar em extratos. Nas “Palavras ao Mar”, aquela identidade, anteriormente aludida, da nossa harmonia moral com a do Universo refulge num dos mais breves e maiores poemas que ainda se escreveram na língua portuguesa, para se definir o perpétuo anseio do ideal diante das magias crescentes da existência.

Em “Fugindo ao Cativeiro” – epopéia que se lê num quarto d’hora –, a mesma estrutura inteiriça torna inviolável a concepção artística.

Digamos, entretanto, de passagem, que aquela miniatura shakespeariana da última fase da escravidão em nosso país absolverá completamente, diante da posteridade, a nossa geração das culpas ou pecados que acaso lhe adviriam de uma dolorosa fatalidade social. Ver-se-á, pelo menos, que as emoções estéticas, tão essenciais a todas as transformações verdadeiramente políticas, não as fomos buscar somente, já elaboradas, na alma da geração anterior, decorando e recitando, exaustivamente, as estrofes eternas das “Vozes d’África” e do “Navio Negreiro”. Sentimo-las, bem nossas, a irromperem dos quadros envolventes. À imensa desventura do africano abatido pelo traficante contrapusemos a rebentina do crioulo revoltado. Vicente de Carvalho agarrou, num lance magnífico, a única situação heróica e fugaz – durando o que durou o relâmpago da fouce coruscante brandida por um hércules negro – de uma raça humilhada e sucumbida.

E ainda nesse trecho, com a amplitude e o desafogo da sua visão admirável, associou ao dramático itinerário do êxodo da turba miseranda e divinizada pelo sonho da liberdade a natureza inteira – do oceano longínquo, apenas adivinhado dos píncaros da serra, à montanha abrupta abrolhando em estrepes e calhaus, às colinas que se idealizam azulando-se com as distâncias, e à floresta, referta de rumores e gorjeios, onde

Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor dos parasitas.

...imagem encantadora na sua belíssima simplicidade, que se emparelha com as mais radiosas engenhadas por toda a poesia humana.

Quero cerrar com ela todos os conceitos vacilantemente expostos.

Que outros definam o lírico gentilíssimo da “Rosa, rosa de Amor”, a inspiração piedosa e casta do “Pequenino Morto”, ou os sonetos onde tão antigos temas se remoçam.

De mim, satisfaço-me com haver tentado definir o grande poeta naturalista que nobilita o meu tempo e a minha terra.

Euclides da Cunha Rio – 30 de setembro de 1908.


[1] P. Van Thiegem. Le sentiment de la nature.

[2] Granville Cole – Geology out-of-door.