40 anos no interior do Brasil/Um tiro no coração

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Um tiro no coração


A construção da estrada de ferro é uma coisa magnífica, quando se tem um bom contrato como empreiteiro, fiscais engenheiros simpáticos, sem muitas dívidas e um pouco de sorte. Mas ai de quem não tiver essas ótimas condições! Daí o empreiteiro briga, o mestre de obras xinga e os trabalhadores se revoltam, quando não recebem o seu pagamento. Nós estávamos mais ou menos nessa mesma situação desagradável. Nosso empreiteiro era um alemão, um homem maravilhoso, só que tinha quatro defeitos: em primeiro lugar, ele fora descuidado na redação do contrato; depois espalhou por toda parte que os fiscais engenheiros eram burros; em terceiro, geralmente ele não tinha nenhum dinheiro, somente dívidas, portanto seu capital de giro era imprestável, e quarto: não tinha sorte. Nós, mestres de obras, fizemos a nossa obrigação quando xingamos bastante, mas não exatamente no começo, e sim mais para o fim da infeliz história, quando o capital de giro havia sido usado na construção e a companhia criou mil dificuldades e formalmente pressionou o infeliz empreiteiro de acordo com o contrato. Pois naturalmente todos aqueles fiscais que tão generosamente haviam sido chamados de burros estavam contra ele, e além do mais o empreiteiro era, como se dizia, um alemão. A situação piorava a cada mês. Nós já não recebíamos o salário direito há oito meses, mas apesar disso não passávamos fome, pois lá havia um armazém. Era posto nesse armazém todo o dinheiro que se tinha e ainda se usava três vezes mais em crédito. Podia se comprar lá alimentos, botas, roupas e papel para cartas, ou seja, quase tudo que se precisava para viver, porém a um preço absurdo que subia sempre que o dinheiro se tornava escasso. A situação não deixava de ter uma certa graça e, quando surgiu o boato que o tesoureiro tinha alguns mil-réis no caixa, tudo virou uma bagunça por lá; cada um andava sempre com seus recibos prontos e assinados. Eu me lembro que certa vez andei por uma semana com um recibo de trinta mil-réis, cerca de quinze marcos e tentei diversos ataques contra o caixa fechado, sem receber um mil-réis.

Como às vezes as pessoas precisavam de dinheiro vivo, surgiram então espertalhões com a ideia de tirar alguns sacos de açúcar ou algumas mercadorias do armazém e ir com o roubo até a cidade, para lá vender pela metade do preço. Mas isso funcionou apenas algumas vezes, depois calcularam quanto uma família de mais ou menos quatro pessoas poderia comer, mesmo que comessem muito, e a coisa terminou por aí. Foi muito emocionante! Às vezes acontecia do nosso chefe da contabilidade pedir um empréstimo para a firma. Eu nunca tinha visto um gênio das finanças como esse. Por vezes, vinha carregado com cinco ou dez contos de réis e aí era uma festa particular, quando se via novamente uma nota de cem mil-réis cara a cara, mas se tratava de um efêmero raio de luz no lado cinzento da vida. Cada um de nós e uma grande parte dos trabalhadores tinham alguns milhares de réis para exigir e o empreiteiro muito mais. No entanto, ninguém recebia nada. Ninguém podia desejar que os empregados trabalhassem com muita vontade e amor sob estas circunstâncias. Às vezes iam para o trabalho, às vezes não; e quando iam, trabalhavam tão mal que não dava para aguentar. Finalmente eu fiquei farto dessa coisa, fui ao chefe e pedi-lhe minhas contas; pois no fundo nós tínhamos pouco ou nada mais para fazer, nem no escritório nem no trajeto. Como eu sabia que a as coisas estavam ruins, pedi-lhe dinheiro suficiente para que pudesse viver um mês com minha família e deixei a cidade.[1]

Porém, um amigo meu permaneceu lá, um outro alemão, da Vestfália, um homem grande, trabalhava como uma mula, era cuidadoso e bom. Este mestre de obras aos poucos estava ascendendo à direção geral, pois o empreiteiro raramente estava presente, ficava um pouco na capital do estado, um pouco no Rio de Janeiro mesmo e procurava de todas as maneiras conseguir seus direitos. Os cem quilômetros acertados foram entregues corretamente, mas o infeliz contrato dava aos seus inimigos sempre novos motivos para lhe prejudicar. Agora estavam querendo botar os trabalhadores contra ele, o que infelizmente estavam conseguindo. Várias reuniões já haviam se realizado e o bom amigo havia feito várias promessas vãs para acalmar o pessoal. Ele tinha um pouco do conceito europeu de honra, o que nessa situação não cabia muito. Em uma dessas reuniões dos trabalhadores haviam sugerido que eles queriam ir para a cidade vizinha, onde estava a sede da companhia e armados com revólveres e facas, iriam obrigar a companhia a pagá-los, visto que estava claro que o trabalho estava concluído e somente por uma trapaça a companhia não pagaria. O mestre de obras falou muito e então contou que tinha boas notícias do empreiteiro no Rio de Janeiro, que em três semanas sem falta traria o dinheiro e pediu ao pessoal para esperar só mais um pouco. Mas eles responderam que isso era prometido frequentemente, sem cumprir e que agora estavam fartos. Ai levantou o líder dos trabalhadores e intimou o meu amigo a prometer que iria com eles até a cidade para defender estas reivindicações, se o dinheiro não aparecesse em três semanas. Todos estavam de acordo e prometeram-lhe confiança total, demonstrando esperança de que tudo correria bem, se ele fosse junto. Meu amigo estava em uma terrível situação; no entanto a carta do empreiteiro era bastante otimista, pareceu-lhe como se as coisas pudessem ser apaziguadas apenas pela sua palavra e seria sua obrigação defender os interesses do seu chefe, o qual ele venerava. Com o coração pesado, fez a promessa exigida. Foi para casa e escondeu da sua mulher sua resolução de graves consequências. As três semanas passaram rapidamente e as respostas de suas cartas e telegramas eram muito incertas, quando eram respondidas. Os trabalhadores e seus líderes o pressionavam, mas ele sempre precisava fazer com que esperassem. Por fim se reuniram novamente, foram até a casa dele e exigiram o cumprimento da sua promessa. Ele pediu muito para terem mais paciência, mas em vão. O pessoal se armou e já não havia mais jeito do mestre de obras tratar do assunto na cidade pacificamente. Não, eles queriam tocar fogo na sede da companhia e se necessário na própria cidadezinha. Eram mais ou menos 300 homens que estavam berrando. Meu amigo os olhava fixamente e recusava-se a acompanhá-los, visto que queriam ir armados. Sabia muito bem que se permitisse não teria mais controle sobre eles, ainda mais se conseguissem arranjar cachaça. Aí um deles jogou em sua cara que ele havia sido oficial alemão e que devia tratar de cumprir sua palavra. Então ele se endireitou, disse “bom, honrarei minha palavra e irei junto, se me for possível, vou me preparar!”, e entrou na casa.

O pessoal se regozijou de alegria. De repente um tiro vindo de lá! Todos ouviram. A esposa do mestre de obras correu pálida para fora e gritou “seus desgraçados, meu marido se matou!”, e retornou desolada para dentro. Começou um tumulto geral, alguns correram ao médico, outros tentaram penetrar na casa, mas a esposa corajosa só permitiu a entrada de alguns. Meu amigo estava deitado no chão, o sangue corria de seu peito; deitaram-no em um sofá, tiraram sua camisa, derramaram um pouco de água em seus lábios e cada um sugeriu uma coisa. Finalmente o médico chegou e fez uma cara séria quando viu que a abertura do tiro era do lado esquerdo, na altura do coração. Então ele o auscultou e sacudiu a cabeça.

“O que foi? O que foi”

“O coração está batendo normalmente, não consigo entender!”

“Mas então onde foi parar a bala?”

O médico estava examinando o lado esquerdo do baleado quando esse teve um sobressalto; então pôs seu dedo um pouco para trás, virou o corpo, tateou de novo e de repente sentiu uma elevação, e quando tocou nela o corpo se contorceu novamente.

“Rápido, virem-no!” Ele abriu sua maleta, tirou um pequeno bisturi, fez um pequeno corte, pressionou e a bala estava em sua mão!

O mestre de obras se curvou para atirar, tanto que as costelas se uniram; além disso, a direção do tiro foi um pouco para o lado, por isso a bala do pequeno revólver Bulldog deslizou por todo o corpo entre duas costelas e ficou presa atrás, pois a força do tiro da pequena arma não é muito grande. Por causa do tratamento do médico, logo meu compatriota abriu os olhos.

“Vejam que não poderei manter minha palavra!” Disse em voz fraca e perdeu a consciência novamente. Os trabalhadores reunidos se dispersaram, sem falar mais sobre ir até a cidade. Em duas semanas o mestre de obras estava tão restabelecido que pode deixar a cama. Porém, seu enorme sentimento do dever não conseguiu deter o fracasso do empreiteiro, mas a violência planejada foi evitada.

 

  1. Esse é o único trecho em que Hellig refere-se a sua família, não tratando diretamente de esposa e filhos em nenhuma parte da narrativa. (NdH)

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