A Afilhada/I

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O Desembargador Osório Pereira de Góis dava o seu dedo de con­versa na roda que todas as tardes costumavam fazer na Botica da Feira Nova. Ali falavam sobre tudo e sobre todos, jogavam gamão e fumavam o cigarro do café do jantar.

A Fortaleza não tinha aristocracia, nem classes, e não sei se hoje tem; por modos que a florescente cidade poderia comparar-se a um or­ganismo em formação, a uma semente fermentando, onde só o olho do sábio divisa o que terá de ser caule, folha, raiz.

Conquanto homem de observação, era o Dr. Osório corredio em leis feitas e contrafeitas pelos homens, trovejando contra esse nivelamento social da capital dos cearenses, que ele chamava o "Caos". Talvez ti­vesse razão, se conhecesse bem o sentido daquela palavra.

Isto havia de provir do querer-se avaliar uma população ainda não caracterizada, tomando por termo de comparação a civilização de ultra­mar, demorado produto de séculos sobre séculos.

O menino que exigir, daquele solo ardente e inclinado, que o Jaguaribe sustentasse as suas águas, ou que a lagoa Porangaba gelasse para se patinar e ir de trenó.

E pois, o Dr. Osório vivia meio desquitado da sociedade fortense.

Porém, como quem tem língua é preciso sempre dar um pouco à tarmela, cifrava por esse tempo as suas relações à estreita convivência da roda da botica.

A par disto, sabiam-no político dos que o povo chama pé-de-boi, ser­vindo cegamente ao grupo liberal moderado.

Quando se calculava pelos dedos uma decisão disputada pelas goe­las famintas dos partidos, o seu nome era logo o dedo mindinho.

Casado com uma volumosa senhora, D. Maria Fabiana, dos Castros da Vargem da Onça, havia uma filha: a gentil menina Maria das Dores.

Poupão, metódico, temente a Deus, o casal Góis

Tinha, Deus louvado, bem segura
Esta vida presente e a futura.

Fabiana de Góis aspirava, entretanto, participando das aversões do esposo à democracia cabeça-chata, um nome nobiliar na sua família. Sertaneja dos antigos tempos em que os meninos hábeis, os curiosos, eram dedicados, não à lavoura ou ao livro, sim ao maçarico de ourives ou ao seminário; em que a hospitalidade era um dever, mas a vingança um di­reito; sertaneja da era dos senhores territoriais que dispunham dos ho­mens, das mulheres, dos bois e dos campos; hoje em dia, ambicionava apenas casar a filha com um titular.

Meu Jesus! quanta arenga não teve ela com o marido por amor disso! No partido, o mais que havia eram comendadores, e estes, casa­dos. Nem um barão, nem um visconde!

— Fica tu certa, Fabinha, que nossa filha não pode fazer o casa­mento que desejas — dizia-lhe o homem, alta noite, ambos deitados. De­cididamente eu não me passo para os conservadores!

— Mas então hás de casá-la aí com um bacharelete?

— E tu com quem casaste?

— Os tempos eram outros. E daí sabes com quem é que a menina simpatiza? — acentuava o filósofo.

— Isto de simpatia nasce com a continuação... Quando me casa­ram contigo eu te enjoava demais.

— E quem sabe lá se não aparecerá um negociante rico que fique caidinho por ela?

Com esta última interrogação, Maria Fabiana largava uma cotove­lada no marido e virava-se para o outro lado.

Balbuciou consigo entre zangada e chorosa:

— Fala-se em gente nobre e este idiota vem agora com o dinheiro pra frente! Diz que é preciso a simpatia, que é preciso amor, amizade e o diabo! E você sabe ou não se ela gostará do Visconde?

— Oh! Fabinha, dorme, deixa isso para amanhã que hei de decidir como for de direito.

E dormiram.

Nesse rojão o desembargador ia adiando o propósito de virar casaca.

O caráter político, efetivamente, estava em sustentar a idéia do par­tido; ora, nem uma das facções arvorava idéias: logo, estar num ou nou­tro era o mesmo. Aparecia, porém, uma forte objeção — as suas intrigas pessoais e a sua birra com a popularidade do grupo chefado pelo dese­jado genro. Em todo caso, esperava pelo ditame dos fatos.

Habituou-se a resingar com a consorte, empregando agora o raciocínio, agora a frase brutal, agora a risada, até que, por fim, apesar das disputas, da divergência aparente, respiravam ambos as mesmas con­vicções.

Tinham invencível confiança nos dotes da menina.

Muito gabada pelas Irmãs de Caridade, Maria das Dores deixara o colégio com intenção de voltar. Continuava a ser confessada do padre reitor e ia fazer lá a sua comunhão. Passava esse dia com as outras, e à tarde, o Dr. Osório, no seu modesto carro, ia buscá-la todo embebido nas inefáveis palpitações de pai. A rapariga, tendo ficado moça no colé­gio, e sendo, como em geral as crianças, muito afeiçoada ao que a cer­cava, encontrava ali na vaga delícia daquelas amizades coloridas de recordações, daqueles corredores, daquelas salas, daqueles pátios ajardi­nados, e daquela capelinha catita e incensada, bastantes ninhos onde adormecessem as revoadas do amor não definido ainda.

Continuava em estudos clássicos com professores que vinham le­cionar em casa, e os conhecidos possuíam-se de um certo respeito pela sua simplicidade, riqueza, formosura, instrução. Espalhavam que ela sa­bia como um doutor, e exageravam os possuídos do pai, que não eram lá essas coisas.

— Podese mesmo afirmar, sem susto, que em verdade o Dr. Osório era pobre; um arremediado; e que o saber da filha não passava de umas lambugens variadas, muito à flor.

Para Maria das Dores, quando ia ao colégio, a palavra ungida do padre reitor, se aconselhando, dispunha para a contrição; se gracejando, fazia abrir-se sutil o riso, como as bobinas com a fresca da noite; ralhando, apertava o coração, como a rama da malícia. Ela estremecia de íntima saudade quando, entre as antigas companheiras, pregava nos ombros os alfinetes que seguravam a fita azul das filhas de Maria, cuja medalha caía no regaço, por sobre o vestido afogado, na altura onde se cochicha­vam apertados pelo corpinho os dois seios adormecidos na noite aluarada da virgindade; aspirava, como um aroma antinevrálgico o ar da capeli­nha, cuja influição especial agora é que ela sentia, acidulado pelas ema­nações das carnes inocentes, amornentado pelas chamas das velas, pe­numbreado pela vidraçaria gótica à luz do sol oblíquo.

Sentia um quê de estranho, de comovente, dessas impressões que nos trazem silenciosamente o pranto num riso, quando passavam as irmãs para os seus genuflexórios, metidas em grosso burel, as mãos desapa­recidas nas mangas encruzadas, e da carne só aparecendo o rosto com os olhos para a terra, o cérebro circundado pelo chapeirão alvo, gelando as ruminações das bocas mundanas e batendo pausadamente as duas abas em ponta, como a marcar vôo para o alto céu. E quando por detrás das duas colunas do santuário, douradinhas e leves, o padre reitor vinha subindo da sacristia, na capa de asperges, e lançava um manso olhar pela capela, o sol, que batia em caprichos do alto da parede, alumiava mais, e parecia que até a lâmpada estremecia. Depois o padre subia para o tapete onde roçava o frontal e abria o sacrário. Nossa Senhora estava lá em cima, com o manto azul, a coroa de rainha, e as mãos abertas em graças para o globo celeste que ela pisava adornado de estrelas. As flo­res artificiais do altar orvalhavam-se e tinham seiva e aroma, com as fra­ses do Tantum ergo, cantadads pelas órfãs, ao gemido da serafina. E ao Genitore genitoque, quando o acólito apresentava o turíbulo e a naveta, e o incenso caindo nas brasas subia em palpitantes nuvenzinhas, a hóstia, no meio da custódia, que se abria num sol de prata, parecia ir também subindo e levando as almas das criaturas.

Depois do Tantum ergo o padre reitor ajoelhava, recebia o véu d'ombros, a capela num silêncio espectante.

Abatiam-se diante dele todas as frontes. Era a benção do Santíssimo Sacramento.

Suspirações, quantas naquele momento! Quantos segredos que as meninas contavam suplicativas ao bom Jesus Sacramentado!

Maria das Dores não dizia coisa nenhuma. Sentia lágrimas nos olhos, prostrada, e, mãos abertas no coração, em asa de borboleta que repousa. Adorável. Via-se-lhe o colo, metido no espartilho (que começara a usar depois que saíra do colégio), agitado como se fora exalar o último suspiro, e um suorzinho umedecer os cabelos das têmporas. As tranças presas deixavam o cangote a descoberto, cheio de umas pilosidades que deviam cheirar brando e sempre.

E tinha-se vontade de encostar a face eternamente naquele ombro como o discípulo amado para com o Mestre puríssimo.

Ao Laudate, esse canto que alivia o coração e parece reboar pela face da natureza, pausado, crescente, ondulado, estabelecia-se o equi­líbrio entre céu e terra, e Maria, sentada no meio das outras, patenteava agora a sua fisionomia limpa e sorridente, de um moreno às vezes pálido, às vezes corado, segundo o que lhe ia no físico.

Viveu assim aquela boa criatura durante mais de ano; o seu prazer circunscrito ao colégio. Verdade é que sentia um tal ou qual pendor pelos rapazes, e não deixou de ser tentada pelo demônio, mas era senhora deste sujeito e olhava-o com desdém, pela grande confiança que depositava em Nossa Senhora. Algumas pessoas diziam-na antipática, e outras or­gulhosa pela sua reserva ou acanhamento.

Entretanto, ia-lhe, sobrevindo o mesmo tédio de que sofreu no úl­timo ano de classe. Passou, finalmente, a novidade dos passeios ao colégio, e das lições do professor que vinha a casa. Quando o pai mandava aprontar o carro, e dizia-lhe que se vestisse, ela surpreendia-se agora de não sentir a mesma agitação, o mesmo sustozinho grato.

Uma semana que foi passar com as Irmãs, ao Meireles, tempo de caju, admirou-se de não sentir o mesmo arrepio delicioso quando chegou lá. Descia ao banho de mar, um tanto afastada da gritaria das outras, bus­cando antes a companhia dassuas antigas mestras. Vestia a camisola de banho, muito empuxada pelo vento, que queria à fina força levar-lhe a roupa e os cabelos; mas os seus lábios, em lugar do riso, que enflora, tinham uma pontinha de meditação que enubla. Corria para a maré, ba­tendo com os pés nus na areia luzente da água, meio curvada para diante e prendendo a camisola entre as mãos. Mergulhava na onda com um pra­zer que antes não sentia, e aquilo sim, era bom. Gritava também, queria enovelar-se com a espuma e boiar naquela cama de água, naquele col­chão vivo que parecia possuir mil segredos. Vinha ao seco e voltava num rodopio como um poldrinho espantado. Sumia-se no mar e a onda abai­xando, reaparecia o busto com os cabelos tapando o rosto, os quais, num gesto rápido, ela sacudia para as costas. Passava a mão pelas feições e atirava-se de novo ao cóncavo despenhante da onda. Os quadris muito desenvolvidos na água pareciam ter molas ocultas, eles que na hora do tédio e dos bocejos, pesavam a dobrar sobre os pezinhos de cabocla.

Deixava constrangida o mar. A última a sair, e depois da Irmã cha­mar por três vezes. Então vinha correndo, possuída de um pudor súbito, com a camisola pregadinha ao corpo, as mãos apertando o seio.

Uma tarde largaram-se até pertinho do Mucuripe. Uma légua pouco menos. Iam descalças, de chinelos na mão, com a mais sedutora liber­dade deste mundo. Os vestidinhos de chita contra o vento. O sol que se estendia quase horizontalmente por detrás delas, recebia-as de longe,adiante, pondo luminárias no mar e nos coqueiros dos sítios.

— O céu, com uns tons de faiança, para o Oriente, ganhava um esbatido róseo no azul esmaecido. Umas, como cãezinhos festeiros, iam a corrupiar com as alternativas da maré; aquelas três, abraçadas pelo ombro, esta isolada; outras pela areia frouxa.

O vento, eriçando pela cútis das areias, traçava ligeiras sombras de uma alvura de flor de cáctus. O vasto corpo arenoso, encrespadinho como a epiderme, apresentava empolamentos de seios, fundos recônditos setinosos de sovacos e grossa macieza de ventres.

Subiam à Maria das Dores desejos de largar-se por ali fora, curio­samente, como se p-r trás de cada morro se preparassem novas paisa­gens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza. Arrancharia nas povoações plantadas de coqueiros, nos arrai­ais de pescadores, nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiar-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira nevada.

A terra parecia findar-se na duna enorme da ponta do Mucuripe,de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.

Sob o fundo de coqueiros da povoação, via-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento do crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe, de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os ca‑

belos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do Sul, era como o dorso de um oceano de leite.

Da areia porejava uma frescura confortativa. Porém, as educandas não chegaram à povoação. A Irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar. Descansaram nuns botes, janga­dinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a Irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a con­versar sobre viagens. A francesa tomou bondosamente a palavra.

Maria nem enxergava um peixeiro que passava para a cidade, ao acostumado trotezinho, de calão carregado ao ombro, e passou-lhe despercebida a vaia que as outras deram num menino muito sujo que ia com uma carga de cocos, escanchado entre os caçuás penosamente supor­tados por um mísero cavalo que procurava instintivamente a areia endu­recida pelo malho das ondas.

Quando voltavam, entretanto, a Das Dores, como lhe chamavam no colégio, quase chorou de dó, ao encontrar com uns pequenos que vi­nham da lenha.

As fêmeas com o cabelinho embaraçado e um pedaço de cober­ta encardida ao ombro, e os meninos, em camisão, com as canelinhas ao vento. Atrás, uma já moça, com um enorme feixe de garranchos, que inclinou propositalmente para cima dos olhos. Via-se que a rapa­riga trazia a saia em cima da pele, e que o pudor dos peitos era ape­nas aquecido por um cabeção de algodãozinho. Maria teve um desses ímpetos que se encontram na vida dos Santos, de perguntar pe­los pais daquela gente, de arrimá-los, de dar o seu dote aos pobres e ficar pobre também. Entretanto os pobres passaram, ela se comprazendo nessas delícias de imaginação, e nem reparou que em todas aquelas feições acentuadas pelos revezes pousava sossegada a doce resignação da ignorância.

Adiante as colegiais encontraram uma preta, sumida num molho de ramos com que ia remendar as paredes da sua tapera; a preta olhou para uma das meninas, de quem tinha sido escrava, com uma frase de satis­fação, mostrando sua dentadura de hiena. Quando a pupila subia, porque o peso forçava o corpo a curvar para diante, clareava muito o branco dos olhos. Aquela rigidez de homem fazia medo, e a maneira com que a ne­gra mudava as pernas, e a tensão dos braços estendidos para trás. E fez bater o coraçãozinho das Das Dores, como o peito de uma rolinha inex­perta.

Em frente, pelo conjunto de morros, de coqueirais, de matos, donde sobressaíam longinquamente as duas grossas torres da Sé, e as mastre­ações distantes no oceano aplanado, abriam-se os derradeiros raios ex­pirantes do sol, que apontavam para o infinito azul indiferente. A Irmã pu­xou o relógio. Tinham dado seis horas. Avistava-se o sítio, com a sua flo­resta de cajueiros embaçada por um adorável efeito de luz. As meninas iam gostosamente com os pés na água, sem se lembrar de cansaço. A maré estava enchendo, e lamberia até as areias frouxas.

A Das Dores, quando enfrentaram com a altura da porteira, largou-se adiante sozinha. Não encontrava mais a satisfação que dantes sentia na privança com a mestra. Que pena já não ser menina, para passar todo o tempo a gritar e a pular, estirando a língua pelas costas da Irmã, cho­rando por birra, inventando saudades de mamãe para não perder um dia de saída, e fazendo caretas ao São Vicente do recreio! Como era bom esse tempo, cujas imunidades agora é que ela reconhecia!

Obrigavam-na hoje em dia a ser pessoa de modos, a pautar a sua conduta, os seus movimentos, a sua voz, a estar com o espírito sempre de vigia, a dar direção obrigada aos olhos como ao leme de um barco.

A princípio lhe dava um secreto gozo o já não ser menina. Por outro lado, à medida que os pais foram se aborrecendo, um tanto enciumados pela preferência que a filha dava ao colégio, ela foi se impregnando dos atrativos do lar, foi querendo bem à sua camarinha, à sala, aos corredores, aos móveis, ao quintal, aos fâmulos da casa paterna.

No momento em que, sozinha, rumava para a porteira do sítio em que as pensionistas estavam hospedadas por conselhos médicos, a sua alma ia como a vela da jangada quando o vento bambeia. Era preciso virar de bordo. Decididamente reconhecia não ter vocação para Irmã de Caridade.

No dia seguinte o pai ainda não viria buscá-la.

Quando o padre reitor entrou de manhãzinha montado no seu ca­valo, estava ela no terraço esfregando os dentes. Admirou-se de achar muito feio agora aquele homem metido naquela coisa preta. Que triste impressão!

Aos seus ouvidos chegava, porém, o coro de uns sabiás nos melões do cercado. O mar, de um azul precioso, adiante dela, enchia o horizonte. O dia vinha forte por detrás dos cajueiros. Maria achava-se pertencendo àquele ar, àquelas árvores, àquele pó, Aqueles pássaros, e queria ser botão, ser flor, ser fruto; e depois ressuscitar em átomos daquela natu­reza que a gerara. Foi quando viu-se melhor. E foi para a missa adorando muito ao autor da Criação.

Assistiu à cerimônia, que antes lhe era um fim, como a um simples episódio da existência diária.

No banho de mar, no rebuliço da onda, pôsse a meditar de vez em quando. Que diferença!

E durante o dia preferia andar pelos cajueiros, a ficar debruçada sobre o bastidor do bordado. A tarde fez-lhe muito bem contemplar o cur­ral, cujas emanações a confortavam, e guardou na memória a poesia bu­cólica de uma vaca azeitã que de pescoço estirado se deixava lamberpela bezerra já crescida, de formas carnudas e virginais, douradinha de sol, e com uns grandes olhos de filha.

Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca azul do mar. O grito dos maçaricos produzia-lhe arrepiamentos, quando à noite ela tinha insônias e punha-se a olhar para os buraquinhos luminosos do telhado, ouvindo a ventania arrastar, a luz da lua, por sobre o arvoredo como que um vestido de sedas. O rolo do mar lhe despertava na imaginação um canhoneio longínquo.

Rezava-se o Angelus ali mesmo no terraço, depois da ceia, que ainda era com dia. Era esta a última noitinha que a Das Dores assistia no Mei­reles. Quis chorar, proferindo aquela oração tão simples, que principiava dizendo: O Anjo do Senhor anunciou à Maria. O sussurro quase hilariante da voz das meninas respondendo em coro parecia um ruflo de asas que iam em bando no amortecimento do sol, que não aparecia mais.

A areia foi a pouco e pouco empardecendo, e as folhas das árvores unindo-se na sombra. Apenas o extremo das palhas dos coqueiros balan­çavam, quando por entre eles, com o mesmo alaranjado que ainda retocava as nuvens, subia a lua, de um ninho de vapores indecisos, ligeira, grande, gorducha como um recém-nascido de boas carnes. Pestanejando apressadamente acendia-se o farol do Mucuripe, uma enorme estrela aver­melhada, e foi abrandando, até que entrou a desaparecer e reaparecer vagarosamente e por medida.

As meninas ficaram no terraço até bater a campainha para a oração da noite. Ali mesmo fizeram o recreio. Delas, um grupo numeroso, sen­tadas em círculo no solo, brincava o limão, e cantavam compassadamente para a do meio: lesa, menina, lesa... A claridade da lua projetava sombras densas, e vinha já descendo meia parede. Os recortes da bandeirola, na porta do lado, iam desenhar-se no tijolo da saleta escura.

Isolada no parapeito a Das Dores cochichava as frescas ave-marias e os longos padre-nossos do seu terço de marfim, e o ar frio, branda­mente agitado, fazia aparecer de vez em quando entre os seus lábios a pontinha da língua para umedecê-los.

A claridade, a princípio muito forte por debaixo das árvores, por modos a luzirem as folhas caídas, penetrava deslumbrantemente nas copas e ramadas, e em breve o disco da lua foi sobranceiro à tona do arvoredo. Por fora do cercado, para o mar, as pequenas dunas salpicadas de moi­tas de capim, na encosta interior, mostravam o lombo nitente, ou a cava escura dos pequenos vales, e em frente à porteira estendia-se um ala­gado em cuja face trêmula boiava em i brilhantíssimo, de margem a mar­gem, a luz da lua.

O areal da praia aparecia como umas camadas de algodão, e a espuma da onda, refervia com uma alvura excessiva. A direita da porteira as salsas estendidas na irregularidade do terreno abriam os seus cálices roxos, inúmeros pavilhões de cornetins, de onde parecia arrebentar a gri­taria dos insetos, e o verde verniz das folhas argentava e incrustava-se de brilhantes.

A areia do caminho, trilhada pelos pés, traçava uma zona estreita, esbatida, irregular. De uma jaqueira isolada via-se deliciosamente a copa florida, nas menores minudências de volume, desde a linha acesa até a parte indecisa que se enxergava através da sombra. E era belo aquele jogo de sombras diversamente graduadas, sem a monótona igualdade das do sol.

Umas impenetráveis, outras que eram a modo de um ar apenas mais espesso. O tronco brutal de uma cajazeira era todo repinicadinho na face iluminada. E as copas dos coqueiros, enormes crustáceos aéreos, pro­duziam uma música de cintilações e de chiados, como se nelas fervilhasse a luz em forma de insetos. A maré parecia branda, apenas de quando em quando o estouro de uma onda mais carregada. Até a risada rouca e fúnebre da coruja repassava-se da sagrada melancolia que pairava no ar. A esgalhada, sem folhas, do ateiral, não lembrava espectros, mas na­quela claridade infiltrada do reflexo branco das areias, despertava paisa­gens hiberninas da Europa, que tinham se visto em estampas. O senti­mento povoava de duendes os recessos de sombra, e os pontos da viva claridade. As lágrimas da Maria das Dores esconderam-se no coração. As meninas continuavam no recreio, ao passo que ela prosseguia debu­lhando as contas do seu terço. O luar lavava amplamente o terraço.

O pó entrava a fazer-se luz. A imaginação fazia-se realidade no mundo interior.

Da altura do parapeito a Das Dores, a sonhar acordada, como que se debruçava de um castelo fortificado, a desoras, para um cavaleiro de capa e largo sombreiro desabado. Brincara muito com uma figura assim, da tampa de um bocetão oblongo onde mamãe guardava a chapelina. O bigode e a pera do conversado, que parecia ter entrado pela porteira como o padre reitor, eram ver o tipo do primo Vicente. A Das Dores es­queceu desta vez de esconjurar a tentação de Satã. Chegou ao fim do terço e recomeçou. Proferia as santas palavras suspirando. Era com efeito o primo Vicente, um oficial de artilharia, que a imaginação fizera entrar, a cavalo, no russinho do padre reitor. A Das Dores admirava-se de ter guardado tão bem as feições dele, por modos a sentir-lhe até a respiração, a ouvir-lhe o timbre da fala, e a sofrer no rosto uma forte impressão de choro, de saudade, de amor, talvez!

Ali, no impalpável do ideal, na fantasmagoria, da natureza, ao aroma penetrante das árvores, pensara coisas, de que, no dia seguinte, quando a brutalidade do sol com a sua grande risada universal de luz e de calor penetrasse tudo, ela pasmaria e teria vergonha. Pois a Das Dores era lá rapariga para apertar um mancebo a dizer-lhe — Eu te amo? Eu te amo?

Entretanto era tão inocente aquela paixão pelo primo! Ela não procurara, não fizera cavilações. Viu-o, gostou de olhar. Um moço de estu­dos. Tornou a ver, e ambos gostaram de olhar-se. Mais nada. Sonhou. E veio logo a idéia natural, o casamento, com todo o adorável cortejo das encantadoras ingenuidades do primeiro amor.

Como era esperado, de manhãzinha o pai veio buscá-la. Acordou mais cedo porque era preciso fazer um ramilhete de flores silvestres para pôr num jarrozinho de búzios que ela fizera para presentear a mamãe no dia de seus anos. O carro parou lá fora, no chão duro. Depois da missa, o pai foi cumprimentar ao padre reitor, com quem trocou uma pitada, e beijar a mão às irmãs. Das Dores abraçou as companheiras, tomou café, e desceu muito alegre os degraus do terraço, abrindo a sua sombrinha de seda, e de vez em quando deitando para trás um riso de amorosa con-fraternidade, como quem diz: — Vou ali e já volto.

E a sua antiga preceptora, de pé, no último degrau da escadaria exterior, ainda a olhava, quando ela pisou no estribo; e pelo movimento das asas da cornette via-se que a boa senhora balançara a cabeça como afugentando a mosca importuna de um pensamento mau ou de desgosto. O sol batia fortemente na caixa azul do carro, ao arranco da parelha, e ouvia-se o estalo do chicote agitado no ar. O veículo navegava mansa­mente procurando a areia menos frouxa, até desaparecer por detrás de uma ribanceira. A Irmã teve uma forte recordação da lenda do rei de Thule, cuja taça, jogada ao mar, virou e revirou e desapareceu.

Entrou, apertando os beiços.

C'en est fait, mon père — disse ela tristemente ao reitor que ia atra­vessando a sala. E voltou-se para a Irmã Superiora, com um gesto chistoso, como arrancando uma coisa da boca e deixando cair: — Ma Mère,... babau!

Com toda certeza a Das Dores não podia ser Irmã de Caridade. En­trava pelos olhos. As provas mentiram. O seu amor pelo Colégio viera desmaiando até dar num esbatido que fazia transição para outro género de afeições. Por isso é que a Irmã dizia penalizada ao reitor: — Mon père, c'en est fait. Acabou-se.

O padre era um homem sábio nisso de vocações. Incumbido da acer­bissima e delicada missão de preparar os moços para as ordens sacras, quanta desilusão não tinha sofrido! Acontecera muito o seminarista ser um predestinado, e o padre um réprobo. Assim, o seu proceder cifrava-se em uma negativa constante. Salvo rarissimos casos em que dizia ao or­denando:

— Tem vocação, mas peça a Deus que o ilumine. Se achar em si uma partícula mundana, fuja, fuja do sacrilégio!

Quanto à Das Dores, disse-lhe francamente:

— Pense noutra coisa.

Estas palavras a menina recebeu-as de peito cheio. Um alívio. Estremeceu toda. E daí julgou-se habilitada para o concurso da vida.

Ao lado do pai, ao corredio deslizar das rodas por sobre o tapete luzente das areias batidas pelo mar, o corpo, desaparecido na seda preta, agitava-se de molécula em molécula, como se a faculdade imaginativa estivesse nele todo, desde as veiazinhas invisíveis da unha até aos ig­notos do espírito. O dia cerrava-lhe as pálpebras a meio. Pendia para o fundo do carro. A odorante carnadura dos seios pulsava levemente. No regaço, entre os joelhos, pousava, ou antes boiava, o jarrozinho de con­chas, feito pelas suas bentas mãos, tripulado por umas flores silvestres amarelas, violetas e azuis, com umas folhinhas muito verdes, agitadas de manso pelo ferver daquelas artérias extravasantes de sensação e de sentimento. As mãozinhas gorduchas, metidas na luva de retrós, caíam sobre as dobras do vestido. A seus pés sumia-se uma cestinha de vime. Na boléia, ao lado do cocheiro, faiscava ao sol matutino um pequeno baú de folhas. A direita, o mar, e à esquerda, a praia, avançavam. O pai fazia eternamente algumas perguntas, que ela respondia mais com o sorriso do que com as palavras. Era preciso falar alto, por causa do vento. "Se ia contente, se ainda tinha precisão dos banhos de mar, se tivera sau­dades deles, isto é, dos pais..."

— Muita, papai, você bem sabe disso — soltava ela na sua voz pro­longada e rica de nuanças de timbre, olhando a cidade que ia aparecendo na sinuosidade da costa, detrás dos morros e do coqueiral.

O bom homem sentia-se bem, com aquela preciosidade a seu lado, que não cederia por todas as riquezas de mar e terra. Caidinho pela filha. Bastante feliz para distinguir, avaliar, e prezar a nova espécie de sensações que lhe nasceram desde que foi pai, era de uma grande avidez por estes haustos inefáveis que sofre uma pessoa quando sentese ao pé de outra a quem adora. Entretanto acontecia ser um tanto parvo e desastrado diante da filha.

O cocheiro não quis passar por debaixo do trapiche, cujo conjunto roxo-terra aninhava-se na areia e metia pelo mar uma ponte suspensa por grossa e longa estacada, muito nua e alta com aquela maré tão seca. Subia um frescor salgado dos poços que a maré deixara, e o arrecife, com uma parte no seco, abrolhava negro e áspero entre espumas e ver­des ondas.

Chegando próximo ao trapiche o carro fez-se logo para a Alfândega, conquando houvesse de vencer um pedaço de areia muito frouxa, prin­cípio de uma duna; era inconveniente ir mais adiante, porque, àquela hora, o comércio aproveitava a maré para fazer a descarga e o embarque, e havia grande tropelia.

A Dorzinha avisou mesmo ao cocheiro que não fosse por lá. Os tra­balhadores que entravam mar adentro com fardos para os lanchões an­davam como o pai Adão, apenas com uma guisa de tanga em vez de folha de parreira.

Os telhados gigantescos dos armazéns que formavam a ala avan­çada das edificações da cidade, sobre as frentes caiadas de ocre, iam-se praia além, presidindo àquela balbúrdia afastada, a que a Das Dores era indiferente, e de que apenas conservou na lembrança uns montes de sa­cas de algodão, loirejando ao sol. Entraram na Praça da Alfândega, des­campada para a parte do mar. Das Dores estremeceu, e empertigou-se, com o primeiro abalo do carro no calçamento, onde as rodas produziam um ruído áspero, que mudou-lhe a natureza das impressões. Teve de ir reparando para fora, desencostada do coxim, por causa daqueles saltos a que a irregularidade das pedras obrigava o veículo. No tope de uma ladeira que apareceu logo ali, assomava a capela da Prainha, com as suas torrezinhas pontudas, e a singela cruz do frontispício, e as janelinhas do coro de onde tantas vezes, pelas novenas da Conceição, Maria das Do­res assistira missa cantada, com muitos foguetes e repiques.

A Alfândega inda estava fechada, e o trilho, que sobre um estreito viaduto de madeira, corta o pântano coberto de salsedo, que forma a área da praça, tinha apenas um vagão, e vazio, como à espera que se abrisse a grande porta da entrada. No canto, um pé de mongubeira sacudiu para dentro do carro um punhado do aroma doce das suas grandes flores, e o sol acendia uma fita de alvíssima luz no sabre calado da sentinela. Na passagem das sarjetas era preciso prevenir contra o balanço violento. O jarrozinho de búzios, levava-o ela agora seguro contra o peito, como se quisesse salvar de um naufrágio uma lembrança querida. A Rua do Cha­fariz foi a melhor, porque o calçamento estava muito coberto de capim e de terra molhada, e era pitoresco ir-se beirando uma série de sítios por trás dos quais ia-se avistando a encosta barrenta e arenosa do bairro do Outeiro entreaparecendo aqui e acolá o topete das casinhas de palha, e a gente sentindo-se como próximo a coisas que nunca viu.

Maria conhecia bem a cidade, porém passava muito tempo sem ir a certas paragens, e achava-lhes sempre um sabor de coisas novas, uma alegria, uma juventude, que lhe faziam muito bem. O pai não era cearense, paraibano. A mãe, sertaneja. Tosavam a Fortaleza, quando podiam. Ela defendia sempre a terra, os objetos, os habitantes, a natureza que assistiam-lhe desde que nascera.

Aquele olhar amoroso via amor em tudo.

A nuvem branca, de verão, no céu claro e profundamente azul; mesmo o sol terrível estorricando, a ventania, curvando a cerviz dos co­queiros e arrepelando os telhados, excitar-lhe-iam a morna saudade, e acenderiam, pelo torpor físico, a candeia mágica dos sonhos. A tarde, vermelha; os cirros altíssimos sarapitando de neve o forro já menos ani­lado do firmamento; os vapores escuros a estreitar o espaço; a bulha pe­netrante dos aguaceiros, a luz meio argêntea dos dias de inverno, deve­riam trazer-lhe a comoção à flux, a necessidade do trabalho, por um se­creto impulso primaveril. E uma grande frescura iria regar-lhe o canteiro dos afetos.

Assim, de um modo ou de outro, aquela criatura que desejava muito e satisfazia-se com o que havia, estava sempre em equilíbrio com o que a cercava. Nisto é que os pais a distinguiam.

O carro deu um vascolejo muito forte, que o velho pendeu um tanto sobre a moça, ao dobrar para a Rua de Baixo. Havia um atropelo de car­roças que desciam pejadas de fardos de algodão, de couros, de sacas de café, e de outras que subiam com bagagens de pouco desembarca­das. Em conseqüência, apesar da largura da rua, o cocheiro teve de botar mais pelo brando. Parecia, à donzela, que em vez do pai, quem ia ali era o marido. E isto não era um disparate para a sua índole. Alma simples, não compreendia senão afetos santificados pelo dever. Marido, pai, irmão, filho, amores igualmente sagrados pela natureza e pela religião.

Ia experimentando o consolo suave de uma criança cujo choro desaparece no seio da mãe. Para bem dizer, não via a fresca arborização que transformava a rua numa avenida de parque, a corporatura cinzenta da fortaleza à direita, com os seus antigos canhões negros, e a alegre fachada do quartel, dominando uma eminência relvada onde pastavam animais, nem um fundo de cidade que ia subindo pelo manso à medida que as rodas se moviam; nem as bojudas torres da Sé, topando no azul, quase escondidas pelas árvores, e cujas cúpulas apareciam como cheias de ar, semelhantes a dois balões a desprender-se e nem ouvia mesmo o sino grande, que estava a tocar Nosso Pai. O renque de mongubas à esquerda era uma verde muralha gigantesca e suspensa. A direta, no sopé da eminência do Quartel, a arborização menos alimentada pintava no pó incertos círculos de sombra, e a projeção da copa dos tamaringos depau­perados pela carga de frutos eram frouxas cabeleiras estendidas no gra­mado. Muito ao fundo, como um anão com um chapéu armado despro­posital, aparecia o Palácio do Governo, sob um rolo de nuvens de verão.

Chegados à Praça da Sé, de onde se desfrutava uma bela vista para a banda de Leste, pararam ao pé do Santo Cruzeiro, porque o Santíssimo ia saindo. Apearam, e abateram-se ante os homens de opa encarnada, três dos quais, iam na frente com a cruz e os lampiões prateados. Quem dera que fosse ali de opa o primo Vicente! Maria, protegida pela sombrada sege, espalmava as duas mãos sobre o peito, e pedia ao bom Jesus proteção para o seu ferido peito. O velho ajoelhava com os olhos na pe­dra, segurando com as duas mãos adiante o seu chapéu alto. O cocheiro dobrava a perna militarmente, além da sarjeta, e puxava a opa do rapa­zito que ia atroando a campainha, bem na avançada e perguntava-lhe para donde era.

— Eu sei que é pro Outeiro, respondia o acólito.

— Mas pra quem?

O rapazinho, que ia caminhando, não podia responder mais. Repe­tiu-se a pergunta ao sacristão, que vinha com o turíbulo, uma bolsa de baeta e uma toalha a tiracolo:

— Mas pra quem é?

— É pro diabo que o carregue, rosnou o homem, que ia bem con­sigo e mal com os outros.

Das Dores que ouviu isso ficou escandalizada como se lhe fizesse uma desfeita.

E disfarçou a contemplar a modesta procissão.

O pálio descia os degraus do patamar, e passou, da vasta sombra que a igreja projetava envolvendo os altos braços do Cruzeiro, para o sol do meio da rua. Fazia um belo efeito aquela fieira de opas escarlates. O brocado amarelecido do pálio abria e encolhia com a marcha, fazendo tremer as compridas franjas cadentes, especado pelos seis varais pratea­dos. Iam depressa, na consciência de quem leva a água de salvação para acudir a última devastação do incêndio da vida transitória.

O sol, uma hóstia ardente, arregalava. Sacudia os seus tentáculos de fogo por entre nuvens acumuladas. Chupava, com os desesperados calores da estação seca, a pouquinha de frescura do romper do dia. O Santíssimo dobrou para o Outeiro, cuja ampla subida, a leste, moldada entre dois muros, ia perder-se no confuso daquele bairro original e pau­pérrimo. Ao longe repontavam as torres agudas da Prainha, muito bem casadas, mimosas, forradinhas de azulejo.

Uma população rareada, de gente pobre, transitava ali na subida, a mor parte recolhendo da feira. Passavam quase todos pelo patamar da Sé, com os seus urus manteúdos, pés descalços, peito ao vento, xale traspassado, satisfeitos como eles mesmos.

Uma pintura fresca aqueles tons brancos da camisa e ceroula, do lençol das mulheres, e do camisão sujo dos meninos de canela à mostra. Pedreiros e carpinteiros, que iam almoçar, de botas velhas ou de chinelões, alguns de paletó cheirando a cedro, ou salpicado de cal. Um bodegueiro vestindo brim branco engomado. Pelo meio desses caminhantes carac­terísticos, via-se lá uma ou outra senhora de capa, aureolada pela som­brinha molemente bordada e forrada a cetim; raro cavalheiro grave, alguma rapariga de vestido na moda, meninos de calção curto e meia alta; vindos da capela da Prainha.

E a claridade ardia por cima das edificações.

A Rua de Baixo, vista do patamar, para o interior da cidade, des­cambava para o sul com uma largura de praça; atapeçada aqui e ali por grandes manchas de capim rasteiro.

No ponto onde a rua desaparecia em cotovelo, apresentava-se o terraço exterior do paço da Presidência, um bastião encimado por um gra­deamento, em cuja rechã forrada pela relva madura esboçava-se uma arborização, magra e insuficiente para ocultar de todo a fachada. O teto do velho palácio era para a frente assim como uma fronte gigantesca e avermelhada, sobre uma carita miúda e alvaçã; um velho casarão de péssimo efeito, segundo a opinião do Osório. Sobreapareciam a torre ama­rela do Rosário, e a platibanda enegrecida da Assembléia; e pairando por cima, dentre os telhados, como uma nuvem descida, o cimo das árvores da Feira.

O desembargador havia entrado na igreja, acompanhando a filha, que ia fazer oração.

Cá fora, da alvenaria do templo se despegava pelo patamar e pelo empedramento uma enorme sombra.

Uma sinfonia de sol, de sombra, e de ruídos.

O adro se estendia em plataforma, beirado por um anteparo de so­fás de alvenaria, e na frente agigantava-se a árvore do Santo Cruzeiro, a sair de um elevado gradeamento de ferro.

Às portas da igreja, escuras, percebiam-se as velas acesas, na pe­numbra que se fazia lá dentro, coradas e inquietas como estrelas ao cre­púsculo.

As ventoinhas das grossas torres apontavam para as pequeninas nuvens que iam azul em fora.

O cocheiro, enquanto o velho e a sinhazinha demoravam na igreja passeava no adro, pernóstico, fumando o seu cigarro. Dirigiu-se de súbito a uma mulher maltrapilha, que pedia esmola:

— Você sabe se o Santíssimo foi para a mulher do cego João de Paula?

— Foi, inhó sim — respondeu a mendiga. Desna dont que ele não aparece por aqui.

— E a corna da Antônia nem se lembra dele!

— Que Antônia? A Toinha que está em casa de Siá Dona Fabiana? Não senhor, abaixo de Deus, foi quem mandou de comer para onte e pra hoje. Porém a Chiquinha está morre não morre. Deus me salve tal lugar, mas está co'a barriga por aqueles mundos, de inchada — e arqueava lar­gamente os braços sobre o ventre.

Deu à taramela, até achar ensejo de dizer em voz comprida e con­fidenciosa "que lhe desse a sua esmolinha".

Aí o cocheiro, fazendo um ar de grande senhor na cara retinta, ati­rou-lhe com um vintém.

Continuava a dar à língua com a mendiga, de cigarro entre os de­dos, espevitado e grande coisa.

O Santo Cruzeiro ia a pouco e pouco emergindo ao sol. Um peixeiro que passava carregado para a Feira, parou em frente ao gradil sagrado, de chapéu na mão, aproximou-se, beijou uma das cruzes de ferro cra­vadas no meio de um círculo no ponto donde sai cada lampião, meteu a mão no uru, tirou um vintém e sacudiu para dentro. O disco de cobre foi tinir no ladrilho, junto à enorme peanha adornada de assuntos religio­sos em meio-relevo de barro nas faces do prisma.

As cercanias, à distância, por trás do templo, alçavam os seus co­queiros, as suas mangueiras e plantações, uma povoação de folhagens por trás da de casarias. Para além desses blocos unidos de verdura, adivinhava-se o aspecto desolador do extenso bairro do Outeiro. Uma zona irregular e caprichosa de alegrias da vegetação, entre o mundo da cidade e o vasto aldeamento dos pescadores, dos lancheiros, dos trabalhadores da praia, dos homens do ganho, dos operários, e de uma numerosa população decaída, uns habitando cabanas, verdadeiras covas de palha desses esquimós do areal ardente. Através dos ruídos ouvia-se o cantar do galo ao longe.

Para a cidade, os tetos se destendiam esquentando sol. Na Rua de Baixo, ali pertinho, o Mercado, com as suas paredes cor de sangue de boi, produzia uma zoada alegre, e era assim a modo de uma grande col­méia de gente. Defronte dele, ao meio da rua, estacionavam animais de­volutos, quase a dormir em pé, sob as cangalhas. Nos armazéns, carroaças carregavam açúcar. Espalhava-se um odor de aguardente, da desti­lação próxima, de par com o assobio da máquina a vapor.

A Rua das Flores abria diante da igreja. A população se movia, na labutação diária. De quando em vez brilhava a nota rubra de um xale no meio dos transeuntes afastados, que pareciam pisar em veludo.

Maria desce o patamar, e a sua fascinação continua a esperar de cada canto a imagem do primo. A rua, passando os castanheiros da praça, estendia-se ao olhar, com a sua casaria térrea, indo fenecer num hori­zonte longínquo, de alvo, de verde, de cinzento e de vermelho. O carro não podia partir imediatamente, porque um comboio de algodão nublava, com a sua onda loira, a largura do arruado e avançava como a cabeça-d'água de uma enchente, com um passo dançado e medido. Sobressaía ao lume da onda um vulto, a cavalo, e os gritos dos comboeiros e a sonarina dos chocalhos. Enfrentando com o Santo Cruzeiro os matutos se descobriam, e depois de ter dobrado para a praia, ainda iam olhando re­ligiosamente para trás.

Então foi que o carro teve o empedramento por seu. Das Dores ia atordoada com aquele tumultuamento rueiro do tempo de safra.

O primo não partirá para o Rio Madeira, naquela maldita comissão de engenharia! Mas que lembrança agora!... Pois seria possível que ele abandonasse uma terra assim tão boa como a Fortaleza, onde tudo ama e ri? Que pretensão extravagante a de ir meter-se pelos pântanos infin­dos da Amazônia! E morrer! A procura de quê? De fama? Ora a fama va­lia muito menos que o amor que ela sentia rebentar com todo o esplendor e franqueza do sol e do céu da sua terra. E depois... Devia esperar que fossem ambos, casadinhos, porque ela por si era bastante para salvá-lo do Inferno, quanto mais de doença e de flecha do índio! Se os ingleses ainda não haviam conquistado o Pólo do Norte, era porque não se haviam lembrado ainda de ir com as suas mulheres.

Quer em caminho para a Relação, onde ia desobrigar-se da pape­lada dos processos, quer jogando gamão na roda da botica, ou dando seu girozinho pelos arrabaldes na companhia seleta de uns três íntimos; quer à noite, de papo para o ar, cruciado pela insônia, Osório, a seu pesar, malucava no casório inventado pela mulher. Que diabo! Um destem­pero! Isso de amor será um fenómeno de afinidades naturais? Assentaria bem aos pais armar casamento para os filhos, ou o direito seria esperar pelo que desse e viesse?

Uma tarde, ainda palitando os dentes, ia calçada acima, em demanda da Feira Nova, com as mãos para trás segurando a bengala ao meio, o rosto para o ar, o sobrecasaco desabotoado como para receber no estô­mago a frescura vespertina, as costas das mãos aderindo sobre o roliço das nádegas, indo para um lado e para o outro as abas da vestimenta ao impulso das passadas, quando, na esquina, quase abalroou no guapo oficial sobrinho da sua mulher. Fez uma cara fechara para aquele sujeito que não previra que o seu dever seria tomar imediatamente para o cordão do passeio. Ambos, porém, buscaram desvio pelo mesmo lado, uma vez para dentro e outra para fora, terminando pelo oficial, que ia à paisana, safar-se rapidamente pela coxia, e seguir caminho.

Contrariadíssimo ficou o pobre do Centu, porque sentiu-se tão abestalhado com a súbita aparição do pai de sua prima! Porém o velho, depois de dar algumas passadas, voltou-se como chamado por um íman, e per­guntava a si mesmo quem seria aquele indivíduo cuja aparência o estava agora impressionando. Os olhos daquele mancebo haviam-no picado como dois marimbondos; e mentalizados no cérebro tardio e ronceiro do juiz,desafiavam-no, aguçavam-no, dançavam diante dele. Colocasse-os agora na respectiva fisionomia!

Continuando a demanda a botica, o apetecido provável sogro pu­nha na pontinha de um silogismo a sua seguinte frase habitual: — Isto é um indício de afinidade qualquer.

E acrescentava:

— Incontestavelmente.

Principiara a ler Física, depois de maduro, com o açodamento que por último havia por essas leituras; e o seu tiquinho de Química e Biolo­gia, e outros saberes frescais no país, tudo por junto e atacado.

Cavaqueava com o boticário acerca dos preparados e dava-lhe boas caceteações assistindo-o a trabalhar no modesto laboratório:

Por que não decompunha tais e tais substâncias? Por que não analisa­va o caju e seus produtos, que poderiam dar uma riqueza para a província?

O boticário respondia-lhe com o seguinte rasgo, saído como das suas barbas impregnadas de cheiro típico da farmácia:

— Senhor desembargador dos trezentos diabos! Cuide nas suas leis artificiais, que as da natureza só serão descobertas a seu tempo; e inda mesmo desconhecidas agem sempre, quer a ciência queira, quer não.

Ficava de queixo caído. Disfarçava, — com o riso emocionado de quando se abarca subitamente uma idéia —, o efeito que aquilo produzia na solução do problema levantado pela Fabiana. Absolutamente não, fa­zer a pequena conquistar o amor do Afrodísio, simplesmente por este se­nhor ser hoje em dia o Visconde de São Galo, absolutamente não. E mais, a nobreza dele seria um fenômeno natural? Era ele de fato um nobre, se­gundo os seus nervos, segundo o seu coração, segundo o seu cérebro?

E gramaticava:

— Nobre vem do gnobil, isto é, digno de ser conhecido. A análise biológica escalpelando, e a sociológica descobrirá em todas as suas moléculas compleição que satisfaça aos requisitos?

O desembargador de si já era uma dúvida. Que fora magro, alto e envergado, poderia apelidar-se — ponto de interrogação.

Deixando o azougado boticário, vinha para a roda da calçada, onde as discussões ebuliam e a tesoura das murmurações tosava, e trabalhava à catana no lombo alheio, os dados se desatando constantemente pelo tabuleiro do gamão ao esfuziar das pedras de ponto em ponto, ao destro manusear dos parceiros.

A praça, fechada dos quatro lados por casas de comércio, tinha o ar agitado sempre, nas folhas da alta, frondosa, e clara arborização. A casaria era pintada variegadamente, com as cores reclames das lojas de molhado, letreiros espaventosos.

Ao longo da Rua da Palma, espalhava-se uma alegria vespertina, des­de a sombra que bordava a fronte, inda tinta de sol, das casas do nascente, até à meninada a rodopiar nas calçadas, e ao homem do ganho, cami­nhando meio ébrio, com a biquara ou pedaços de miúdos pendurados ao dedo, com o molho de coentro. Mas, o próprio asno chagado pelos arreios, arrastando a carroça, o próprio cavalo ossudo com a dura cangalha a con­duzir a carga de lenha, o mendigo mesmo, a chorar o eterno refrão de "esmola pelo amor de Deus", não tinham a pungência que se notava agora na expressão fisionômica, acerbamente achacada, do desembargador.

Coitado, as suas deduções filosóficas, de encontro à tirana decre­tação da sua velha, podiam valer-lhe duros tratos.

A botica, situada ao poente, era muito afreguesada. Também, a Feira Nova era a bem dizer o centro da cidade, e quase todo mundo cruzava-a diariamente, quer em diagonal para abreviar caminho, quer pelo abaulado empedramento que lhe era como um caixilho gigante. Alcantilada de so­brados, cedo ficava aquela face do largo metida em fresca umbria.

Pensativo, o Osório, as mãos no castão da bengala, caído para o espaldar da cadeira, contemplava.

Por entre a arborização, as outras faces da praça, esmaeciam ao sol. Ao pé dos troncos, alteavam-se os feixes do marcado de capim.

Os moleques e as crioulas agrupavam-se em torno ao liso cacimbão de pedra lioz, no meio da área, e enchiam os potes e canecões no cha­fariz da Water Company, um quiosque de ferro, miudinho e bem acabado. Algumas cavalgaduras cochilavam, presas pelo cabresto aos frades de pedra, no perímetro. E mais uma porção de minuciosidades na harmonia do quadro, que o bom homem soía destacar, como geralmente acontece, somente naqueles instantes de atribulação íntima, quando os nervos se tornam aptos acidentalmente para mil variadas sugestões.

Nessa noite queixou-se de nevralgia. Menos verdade; queria evitar dialogações com a mulher, é o que era, convencido de que a sua cara-me­tade fosse vítima de um quer que seja de doentio na cachola, e por ser um tanto chegado a frouxidão, que outros chamavam bondade, ele, que se tinha a si por cabeça que regula, ia no recavém como o boi cansado, e ela no varal. Resolvido a contemporizar na batalha. O tal nobre sujeito que Fabiana queria incrustar na família era do partido contrário e seria o que se chama uma vileza um integro magistrado virar casaca. A filha não havia de desposar um inimigo político, bem se vê. A velha objetava, porém:

— E o que é que um pai não deve fazer por amor da sua filha? Você deve se passar para os conservadores!

— Por amor da sua filha, é uma grandíssima peta. É preciso esperar a manifestação das afinidades, ver qual é o amor que lhe vem.

— Qual afinidade, nem Mané afinidade! De onde este homem ar­rancou agora este palavrão, meu Santo Deus!

Mas a ignorância alheia é útil à gente hábil. O finório concluía: — Afinidades.., quer dizer... quer dizer que tu deves confiar em mim; pois ainda não dei lá essas provas de mau sujeito...

No sábado seguinte foi-lhe apresentado aquele mancebo do encon­trão, que o deixara impressionado. Fabiana é que pedia ao sobrinho que fosse lá, ele bem sabia que abaixo de Deus era ela quem mais o prezava neste mundo. O Centu, porém, não era um rapaz influído para certas coi­sas. Chegado de pouco à sua província, para convalescer de uma pneu­monia, de volta da conclusão de seus estudos, evitou sobretudo ir à casa da tia, ele que já não tinha mãe nem pai. Fatalmente inclinado para a prima, receava que a assoberbação de um mal de amores viesse atropelar-lhe, ou antes, cortar-lhe o veio das suas justíssimas ambições. Deveria ser um herói para a humanidade, ou uma vítima, assim pensava ele na sua ingenuidade acadêmica.

Queria fugir do amor.

Estava o gás aceso na sala, quando ele entrou com Lucas Pinto, uma espécie de ave de arribação, cultor antigo da afeição dos Góis de Oliveira. Era este Lucas um velho de boca funda, magricela, baixinho, profuso em ademanes e rapapés, e ao subir os três degraus da entrada ia logo exclamando:

— Boas noites, gente daqui! Venho fazer-lhes uma agradável sur­presa...

Mas encontrando a sala vazia:

— Você é parente, disse para o oficial. Sou mais de casa do que você. Sentese que vou ver a sua tia D. Fabiana, o velho, a Maria das Dores, sua prima, e tudo o mais.

E sumiu-se lá para dentro. O mancebo ficou a sós.

Acima do sofá inclinavam-se os retratos do casal Góis de Oliveira,em grandes molduras, e as bolas de torçal verde caíam de cada quadro,nos ângulos superiores, como duas melenas. O papel cor-de-rosa com floreios de veludo e avivamentos doirados, na parede, ia bem com as sensações de um amante. As bandeirolas e as portas, muito alvinhas, coma indiferença da matéria inerte, e o botão azul dos trincos, pareciam prestes a dar entrada a alguém, e esse alguém o oficial temia que fosse a prima.

O assoalho ocultava-se aqui pelo tapete, e ali aplainava-se com asua alternativa aurinegra de tábuas de pau-cetim e de acapu. Um soprozinho de ar fazia tinirem ao de leve os pingentes do candelabro que descia do florão do estuque. Encaixilhados em jacarandá subiam dois espelhos rente à parede, bilateralmente à porta do corredor, reproduzindo porções da quadra. Uma mesa octogonal aparava a luz cheia, dos bicos de gás, no centro, e por sobre os bordados a lã, da coberta que a forrava,

diversas preciosidades jaziam, como fossem o álbum de retratos, uma corbelha de cartões, duas brochuras, e, bem de frente para o oficial, que se empertigava no sofá, o retrato de Maria das Dores, num quadrozinho de metal. O boné ele o havia posto ao pé de si; mas começou a entender que isto era matutice. Depó-lo sobre a mesa. De pé, no meio da sala, estava mais senhor de si, e podia passar os minutos menos tolamente, per­correndo o álbum, folheando as brochuras, ou coisa que o valha. Estas eram romances.

— Frivolidades, murmurou no seu peso de ciência.

Antes de abrir o fecho do álbum pegou no quadrinho da fotografia que alevantava-se quase à beira da mesa.

Quase o leva aos lábios. A Maninha, como ele a chamava, estava ali encarando-o, com a expressão firme do desenho fotográfico; a mão profana do retratista, com a deturpação dos retoques, não conseguira arrancar-lhe às feições o timbre francamente simpático; dos cabelos, pu­xados para cima, caía um lacinho, à banda, da fita que os prendia; uma rosa abria-se no peito esquerdo e pelo gosto da gola do vestido calcula­va-se que ela trajava à moda, sinal de que já não trazia o casaco e a saia de ascética simplicidade detestável das colegiais do Outeiro, e a fita azul das Filhas de Maria...

O primeiro encontro deles, pois quando embarcou para o Rio ela "ainda não era nada", havia cerca de dous meses. Foi logo ao chegar. De carruagem ela, e ele puxando a guarda da Cadeia, no ordinário, ao berro da corneta. Olharam-se forte, de longe, fito.

Depois que ela voltou do Meireles, encontrou-a na Sé. Estava Ma­riinha em uma tribuna. Tentaram-se à vontade com o demo dos olhos. Ao sair, não pôde se dominar, e foi beijar a mão da tia, — pela primeira vez desde que chegou! Aí foi que a matrona instou para que aparecesse, que não fosse esquisitão como o pai, que ele precisava de distrair-se em família, que se afastasse mesmo de rapaziadas.

Logo nessa tarde passou pela janela da prima.

Três dias depois é que lá foi, acoroçoado pelo guenzo do Lucas.

Estava recordando esses antecedentes, quando o retrato, vai, e cai-lhe da mão, de repente, com uma pancadinha frouxa no mármore da mesa, amortecida pela coberta de lã. Simultaneamente fazia-se um ruído de porta que se abre. Era Maninha que aparecia...

Aproximou-se para o cortejar... O Centu preferia agora não ter tido aquele ensejo de tocar a sua mão na dela... Sofria no braço uma dor física somente em lembrar-se que ia tocar naquela pilha voltaica...

A delgada mãozinha estendia-se para ele. E quando as carnes se apertaram, o abalo foi tão grande que fremiu na alma de ambos. Anela­riam que se não desligassem nunca! Amor! Es isto? Fruíram, naquele relâmpago, um gozo sobrenatural, sublime unificação, paladar não ex­perimentado. Tormentoso e grato suorzinho atraente do cóncavo das pal­mas, emborcadas uma sobre a outra. O espaço entre elas, um vácuo, chupava as duas epidermes para aproximá-las, para fundi-las, para que se ajustassem hermeticamente, geometricamente, em delicioso arrocho. Que universo num átomo de tempo! Levar à face, ao lábio, aos olhos, ao nariz, abafar o rosto, cada um com a mão do outro! Ao soltarem-se, foi um alívio. A menina disse uma banalidade para afugentar com a voz a súbita aceleração sangüínea.

Ocorreu-lhe o incidente do retrato, que não fazia minuto e parecia ter sido ontem, e disse que todos achavam muito parecido.

Isto, porém, era uma frase, que não traduzia idéia alguma. O ver­dadeiro era aquelas duas criaturas ficarem mudas uma para a outra, por­que estavam sob esses pensamentos que se não traduzem. A conversa deles foi meramente física, um simples funcionamento dos órgãos vocais. Naquele pé, a corrente das palavras estava para a corrente das idéias como dois nos que rolam simultaneamente, paralelamente, as suas águas, mas um para o norte e outro para o sul. Não era fácil encher assim os minutos.

O papai não tardava, tinha ido visitar o conselheiro Sucupira, que chegara do Rio. A mamãe estava no oratório acabando uma promessa. E dizendo, ela puxava uma cadeira para a mesa do centro, fazendo por estar muito familiarizada. As mulheres! Ele afastara-se para o sofá.

Maninha lançava um olhar para a rua deserta. Os lampiões não se­riam acesos senão ao pôr da lua, e um nevoeiro desde pela tardinha fe­chava o alto firmamento. Um desejo romanesco atormentava-a para que fosse debruçar na janela, e de lá chamasse a atenção do moço para al­guma nonada, e que este fosse a aproximar-se dela, e ambos conversassem de seu. De feito, emoldurados pelo vão da parede, de pé, juntinhos, e recostados, parece que o sentimento se tornaria mais franco e seria natural, pelo pinturesco, uma efusão.

A luz do candelabro deveria estar mais à surdina... A fina claridade do gás não frisava com a nublada sensação que eles sofriam.

E a menina, com o cotovelo à beira da mesa, recostada na mão a face direita, como alheada. O mancebo poisava-lhe no todo o seu olhar de sol. Coitados! Separados, tinham um livro inteiro a dizer-se; aproxi­mados, o anjo com a espada de fogo, fria na sua incandescência cruel, cortava-lhes não a volta, mas a entrada para o paraíso entre real e ideal dos assuntos de amor.

De repente a donzela feriu o silêncio com um estouvamento de ave:

— É exato que tem gostado muito da minha terra?

— Da nossa, minha prima...

Ela riu do timbre com que ele respondeu.

— E a que propósito vem isso? prosseguiu o oficial depois de uma demora. Sempre dei provas de querer bem à província!

Ela não soube o que replicar.

— Disseram-me que ia para uma comissão do Alto Amazonas... ti­tubeou.

— Pode ser, poder ser, verdade é que me empenhei...

— Empenhou-se?

E calaram-se.

— A vida é esta, minha prima. Vou, irei, Deus sabe como.

— Os homens deviam ser mais companheiros das mulheres, isto sim.

— Em que sentido?

— Com elas em tudo, no repouso ou no perigo.

— Elas não resistiriam, sorriu.

A menina arrepiou carreira no assunto, porque receou denunciar-se mais, com a exaltação do momento. Aquelas palavras seriam sementes bastantes para plantar no cérebro de Centu mais um pezinho de cogi­tações. Estava entrançado o fio daquela inclinação recíproca. Ambos ve­rificaram que se queriam por um ímpeto orgânico. Tiveram por felicíssi­mos aqueles instantes, bem pode que os pode ser os melhores da sua vida.

Mudando prodigiosamente de tom, a moça indicou as duas brochu­ras que jaziam próximas do retrato, e com um disfarce admirável pediu friamente ao oficial que desse a sua opinião a respeito.

Ele não tinha ouvido ainda tanta riqueza de expressão, nem presen­ciado tanta graça, nem tamanho domínio sobre o seu ser insubmisso.

E folheando os livros, aguardava a entrada da tia. A menina fez-se toda silêncio, a pretexto de o deixar examinar o livro. Espiava profunda­mente para o mancebo. A respiração tornava-se intensa.

Como fugindo não sei a que, ela precipitou-se para a cadeira de ba­lanço.

Horrível para ele, horrivelmente atormentadores aqueles dois pés que apareciam agora na fimbria da saia, ora tocando no tapete, ora suspensos no ar, metidos num sapatinho de fivelas e em meias tão macias como a cútis daquele pescoço de rola. Os babados da saia calam capi­tosamente, pesadamente, apenas arrepelando-se à leve agitação do ar. E toda a vez que o movimento era ascendente, os pés estiravam-se como a ave morta; e descendente, vinham trazendo adiante o coração do moço, de rojão, e com a pontinha do sapato esmagavam-no sobre o tapete.

A barulhar com a sua prodigiosidade de língua, veio o Lucas, e espantou as duas pombinhas do amor que espiritualmente abicaravam-se ali.

As brochuras eram O Guarani, de José de Alencar, e O Seminarista, de Bernardo Guimarães.

O engenheiro, positivamente, não podia deitar opiniões, devido à sua ignorância e animadversão por isso de letras e artes. O nome de Alen­car lhe soava mal. Havia a fama deste eminente escritor em conta de ca­vilosidades dos brasileiros. Diga-se o certo: o Centu falou menos verdade quando assegurou à Das Dores que amava o Ceará. Como escrupuloso, todavia, em questões intelectuais, e não querendo passar pela vergonha de dizer que ainda não lera aqueles livros, pronunciou um juízo, fiado na reputação popular e universal dos dous escritores brasileiros. E para se tornar agradável à prima:

— Eu gosto tanto dessas obras que desejo lé-Ias de novo.

— Leve-as!

— Ah! meu caro amigo — interrompeu o abundante Lucas, vendo o que se passava — você cuidava que isto aqui era o Rio de Janeiro? Há de topar serviço! Isto está um país adiantadíssimo!... Além do calça­mento, do encanamento de água, da iluminação a gás, — contava nos dedos — do palácio da Assembléia, do novo sistema de carroças, das casas pela marca da Câmara, temos pianos em todas as salas, e a instrução do belo sexo! Você pega uma dessas flores do paraíso terrestre, principalmente se tiver sido educada pelas Irmãs de Caridade, corta a língua que nem maracanã, canta que nem sabiá, lê como um doutor, e sabe que nem vigário! Que pensa? — findava ele, de mãos nos quadris, refratário ao arzinho de riso do Centu e a franca risada da menina.

Foram interrompidos por uma voz da porta da rua:

— Ó seu Lucas, já você pega a dizer as suas barbaridades! — vinha dizendo o desembargador, que ao entrar na sala, onde não esperava pessoa estranha, estacou diante do oficial.

— Este é o Centu, papai, o primo, do Rio...

— Ah! é este? Com efeito, desculpe não reconhecê-lo "a prima facíe". Mudou tanto!... Vi-o pequenito, como este mocho do piano. E abraçaram-se.

— Não calcula o prazer que sinto! E a Fabiana, por que não vem para cá?

— Já vou!

— Ela está acabando uma promessa, explicou a menina.

— Esta promessa, esta promessa! — rosnou o Osório, em aparte, mordendo os beiços.

Agora sim, o primo estava de dentro. Expandiu-se com o velho, que era homem lido. Casaram as simpatias. Fabiana veio com a sua volu­mosa corporatura de barco ronceiro. Trazia vestido com decote, à antiga, pulseiras, colares e transelins de um ouro brutalmente precioso e traba­lhado, e um grande e cravejado pente, no cocó grisalho, que parecia um astro nascendo detrás da cabeça, dentre as névoas do cabelo idoso. O rosto, ainda liso. A dentadura imprimia na voz um sotaque esquisito, como se tivesse uma coisa no céu da boca. Excelentes maneiras, linguagem muitíssimo pinturesca e errada, onde cada palavra ela soltava como se

estivera saboreando frutas. Uns quadris enormes, e uma barriga idem, que pareciam ser a preocupação das funções nutritivas. O olhar não era bambo; firme e doce. A gesticulação, parca.

No meio da conversa, como era hábito seu adquirido, trazia sempre o Visconde de São Galo. Conhecia-o? O chefe da nobreza da província. Não? Digno dos nossos antepasados! O desembargador ou concordava, ou não tugia. Mas o engenheiro é que ficou embatucado.

Senhor, que nobreza era aquela no Ceará moleque?! Enfim, como não conhecia aquilo bem...

O velho obrigou a filha a ir para o piano, o que foi para esta uma doce violência. Estava desafinado, pretextava a menina. E depois, era um piano tão ruim...

— Prima, não faz mal. Faça justiça em me ter por discreto; e so­bretudo.., ora, eu não sei música... deixese de cerimônias... Mariinha foi como que arrastada.

Aprumada no tamborete, a cintura da donzela vinculava-se nitida­mente disfarçando para o suave piramidal do tronco jungido no esparti­lho; as duas tranças negras, desprendendo-se pelo piloso e pelo nu do cangote, escorregavam pelo dorso e beijavam finalmente o alcantil das ancas luxuosas. Cantou:

Quis embalde varrer-te da memória

em voz pouco forte, ressoante, e timbrada. Nem uma vez a altura da nota foi mais do que a do sentimento. Quando dizia:

E teu nome arrancar do coração

acolchoava o som, como se tapasse as válvulas da alma. Arrancar do coração o teu nome! Nem por morte! E se às vezes gemia, ou se cantava, não é certo.

As nove horas o Centu quis retirar-se, porém o tio afim obrigou-o a demorar dois minutos para o chá. O Lucas dispensava teimosia seme­Ihante, mesmo porque não se despedia sem irem para a mesa.

O engenheiro, em alívio da forte carga de sensações que pejava-Ihe o organismo, dirigira-se à prima, efusivamente. Que o piano era excelente sob as suas mãos, que não ouvira ainda magias assim, que até aquele momento desconhecia que o som tivesse tamanhos poderes...

— Conforme o instrumento, explicava o metediço do Lucas, e o tocador.

O estudioso mancebo começava, conquanto longinquamente, a acre­ditar na Arte, e na sua necessidade. Imaginava agora o homem uma ave — a que a ciência era asas, e a arte o meio aéreo. Dormiu mal naquela noite. A Mariinha lhe atravessava os sonhos pertinazmente. E de manhã ele sentia que ela, como um espírito tangível, andava diante dele, tocava nele, e os seus cabelos passavam-lhe em cócegas pelo rosto, e as suas mãos o acarinhavam, e os seus olhos entravam pelos dele como duas abelhas.

Chovia, quando entrou em casa. Por coincidência, habitava uma re­pública, ao lado da botica da Feira Nova, cuja roda entendeu útil freqüen­tar dali por diante.

Não tornou no dia seguinte à casa da tia; ao contrário, ia raramente, o que não obstava que visse muito a Mariinha. O que receava, como homem não feito ao trato diário com o sexo oposto, era estar juntinho dela, principalmente a sós, porque julgava então apoucar-se, parecer seco, sem espírito, desmantelado, e feio. Vê-la, bastava. Na igreja, no teatro, nas reuniões, na janela. Quando ia lá, trocavam flores, não muito às claras. Os pais tinham os olhos vendados; e depois, havia a confiança do paren­tesco.

Mãe Zefa, uma preta alforriada que vivia do seu tabuleiro de arroz à noite, e de hortaliças pela manhã, servia-lhes para certas embaixadas, e contava a cada um, coisas do outro. Entrava sem cerimônia na repú­blica, chalaçando com os companheiros de Centu que lhe batiam nas ná­degas e faziam-na dizer palavrões, e semelhantemente, furava pela residência do desembargador até a cozinha, onde prosava com os escra­vos, e até às camarinhas, onde recebia recados de Siá Dona Fabiana.

Maria das Dores tinha notícia dos lugares por onde o Centu andava, e sabia quando estava de serviço, a que horas tomava banho e lia os jor­nais e estudava. De uma às duas da tarde era certo ele passar do quartel fazendo o caminho mais longe; e ela, se acontecia não aparecer, havia motivo; pelo menos, via-o pela rótula. Deu para trabalhar na sala todos os dias àquela hora. Era morta e viva ali.

Uma tarde por outra, o oficial tomava assento na roda da botica. Assuntos políticos ele mal entendia; o boticário, todavia, o desembarga­dor e uns dois mais, elevavam, por amor dele, a conversação para questões de ciência, e sobretudo de filosofia positiva. O desembargador já não pre­lecionava tanto, e parecia ter sempre agora dentro de si alguma coisa a digerir, meio concentrado, como se todos os dias fossem véspera de um grande acontecimento que o envolvesse. O Centu fazia o seu gamão passavelmente. la-se habituando ao arzinho da farmácia, cujo cheiro de drogas a princípio o enjoou; afez-se àquelas vidraças encaixilhadas em madeira preta por trás das quais perfilava-se a frascaria nitidamente rotulada; acostumou-se a ver as cobras afogadas em álcool, que antes lhe metiam um certo frio álgido pela vista; e a pequena escuridade do inte­rior, em complemento ao jogo de sol e de ensombrações da praça, descan­sava-lhe a visão. Além da grade, no meio do xadrez de pedras alvas e

negras que eram o ladrilho, assentava um ligeiro armário cujo mostrador expunha preparados estrangeiros encapotados em lindo papel pomposa­mente impresso; quando se abria este móvel, espalhava-se um capitoso aroma de toucador e de especiarias. Nestas ocasiões o desembargador levantava a questão de ser necessário ou não o luxo nos remédios. O boticário acabava a contenda por dizer-lhe uma aspereza. O oficial achava que sim, que era preciso iludir os delicados sentidos de uma moça, dis­farçar a brutalidade do medicamento puro, enganar, como se faz aos be­bês. E então o boticário, curvado no seu paletó de seda cor de palha, continuava a triturar, no almofariz, e batendo com o pé em sinal de apoio, dizia encolhendo os ombros:

— A mulher é criança toda a vida, senhor desembargador.

E depois de uma pausa triunfante, levando a palavra com a espá­tula às ventas dos circunstantes:

— Até nas formas, até nas formas! que não se acentuam como as do homem!

— Teorias, dizia o magistrado recuando. Palavreado.

Era este o meio óbvio de Osório se descartar.

— São teorias, são modos de ver, são opiniões; o mundo para nós não é o que é, é o que nós vemos e o que entendemos ser.

Entretanto essas boas cenas eram raras hoje em dia, depois da tal história do Visconde. Não sei que frieza ia pelo desembargador. O boti­cário, que o prezava imenso, proferia encolhendo os ombros:

— Não sei que diabo de burrice lhe pegou agora.

Foram escasseando, com efeito, na botica liberal os passeios do Desembargador Osório de Góis. Ora, isto era justamente quando o Centu acabava de ter entrada em tão escolhido círculo. Seria que o velho des­confiasse da coisa? Pegaria o magistrado algum indício veemente do crime d'amor por parte de alguns dos co-réus? E começava o coitado de notar diversas passagens. Em tal dia deu-se isto assim, assim, e ele fez isto, quando devia fazer aquilo. Deixou de cumprimentá-lo tantas vezes, não respondeu a tantas perguntas, falou áspero com a filha em sua presença...

Não havia dúvida! E oprimido, cresceu mais o seu amor.

Voltava de um baile no Clube, onde valsou com a prima. Dera-lhe a mão para subir ao carro, que viu desaparecer no escuro da primeira esquina como um pirilampo gigantesco. Ainda esteve a bebericar com uma troça, por meia hora, os outros gargalhando da sua taciturnidade de coração ferido, e ele sem fazer conta. Pretextou qualquer coisa, mor­deu a ponta de um charuto, e saiu, com um forçado ar de riso.

Seguia pelas calçadas desertas. A sua sombra estampava-se nítida na parede, ia crescendo, duplicava, obscurecia, apagava-se na eqüi­distância dos lampiões, renascia tênue, desdobrando, pintava-se outra vez ao vivo, e tornava a repetir o mesmo, por aquela atonia das desoras,rua acima, onde só as suas passadas feriam o soturno da noite. Cami­nhava pelo brando, mão no bolso, tanto pela fadiga, como pela dormên­cia do pensamento. la feliz, la de todo entregue ao seu maior inimigo, o amor; porém o amor imediato, o amor de rabo-desaia, que estiola como a sombra e descolora como a luz.

Na entrada da Feira Nova sai-lhe ao encontro um vulto enfronhado em véstia de vaqueiro. Trazia esporas de grande roseta e um par de peias como rebenque. O largo chapéu de couro cobria-o pacatamente como um sombreiro de aldeão que tange o seu burreco; as alpercatas batiam-lhe contra a sola dos pés; o gibão vinha apenas abotoado em cima, e a ca­misa oculta pelo guarda-peito. Saía-lhe do canto da boca um cachimbo de sertanejo. Pronúncia um tanto arrastada e aspirada por amor desse corpo estranho. Corta o caminho ao mancebo e estirando a mão, como quem vai dar um tiro de revólver, tira o chapéu:

— Deus dê boas noites — e entrega uma carta.

Palavra em como o oficial estivera pronto a fazer uma proeza. E ainda atarantado, rompia o envoltório, sempre com o rabo do olho no desco­nhecido, cujos cabelos cacheados se mostravam ao gás, e cujo olhar ingênuo punha-se curiosamente no moço.

O Centu leu. E dobrando o papel:

— Mas então há rolo?

— Adonde? Em Butrité? Inhô sim. Está tudo muito açulerado. Nestas inleições sai macaco chumbado...

— Diga-lhe que sim, que eu vou.

— Seu Visconde me dixe que eu dixesse que Vossa Senhoria ras­gasse a carta.

— Pronto.

E voaram os pedacinhos da breve epístola, à luz do combustor, como um enxame de mariposas. O mensageiro repetiu:

— Deus dé boas noites, e rumou para a casa do desembargador, estalando as suas alpercatas no silêncio das ruas.

— Magnífico! exclamava consigo o tenente. Esplêndido! Enorme! Absolutamente ele não esperava por uma daquelas.

O pai da sua Maninha empenhar-se para que ele fosse o coman­dante do destacamento que ia para as eleições de Baturité, a pedido do Visconde de São Galo!

Dizia a carta:

"Os governistas, por não terem mais no batalhão, senão ofi­ciais desafetos, indicaram o seu nome ao Presidente, porque ao me­nos você é de todo alheio às intrigas locais. Disse-nos o major fiscal que não lhe cabe destacamento e que você é adido, e que é de ar­tilharia, e que poderia dar parte de doente, pois que realmente está. Não faça isto. Peço-lhe encarecidamente, como amigo e como parente, que vá. O Visconde, que encontrei em nossa casa, agora mesmo ao voltar do baile, com alguns amigos, também lhe pede por minha in­tercessão.”
"Garanto-lhe, meu caro doutor, que não se há de arrepender."

O palavreado ia mais adiante.

Era exato que o Visconde, à meia-noite, fora com alguns amigos, bater à porta do desembargador, e que a Fabiana, que estava desperta, fé-los entrar, oferecendo-lhes do bom café, e dos bons alcoólicos na li­coreira, e esteve a fazer-lhe sala, até virem do Clube, pai e filha.

Como a Fabiana estava orgulhosa por ter alcançado a sua promessa! Agora ia cumpri-la. Seis libras de velas à Senhora de Lourdes.

Nem antes nem depois de chegar o dono da casa, as portas esta­vam abertas. Cerradas, como se houvera alguém adoecido. Era aquilo a graça da maçonaria política, no que a Fabiana sentia um prazer de raça, inato, indígena, dos seus sertões. Quando saiu o portador com a carta para o sobrinho, foi ela quem o trouxe à porta da rua, e quem segredou que o Visconde mandava que rasgasse-a depois de ler.

Mariinha fingia-se despercebida. Quando, porém, de lá do quarto ouviu pronunciar o nome do primo, estremeceu. Parte? Vai fazer eleições?... O seu ímpeto era largar-se na carreira e atirar-se aos braços do pai implorando que por vida de seus olhos não deixasse o Centu destacar, que poderia morrer de facadas, morrer a cacete, ser varado por um tiro de bacamarte! Pelo amor de Deus, papai! pensava ela no seu co­ração, de pé, no meio do quarto, como uma Senhora Das Dores, as mãos postas, aflitivamente, o seu lindíssimo olhar para o teto. Ajoelhou, rezou a São Vicente de Paulo, o santo velhinho do Colégio, todo caridade e ternura. O coração batia, vascolejava desapiedadamente. Prostrava-se diante do retrato do São Vicente, e sua fronte abaixava-se tão profundamente para o chão, que o pescoço, caídos os cabelos para os lados, evidencia­va-se, como se fora ser degolada, esperando o corte certeiro do alfanje. E seria melhor. Decapitá-la, e suspender pelos cabelos a sua cabeça morta, porque imaginava também o Centu banhado em sangue e espezinhado pelo cabroeiro. Ah! mas se enganavam! Ele podia morrer, mas depois que matassem mais de cem! E via-o de espada em punho, entre o fumo da pólvora, ao fervilhar dos cacetes e das parnaíbas... Eram talhadas de cego. Mas... escuta um tiro, foi bruto, um clarão que ofuscou o sol, a boca do bacamarte era como um sino, e tinha-o um cabra de topete infernal... As balas caíram sobre o valente guerreiro, abriu-se-lhe no peito uma enorme rosa de sangue...

Antônia entrou sorrindo, no quarto, com muitas momices, seca por achar companhia. Uma sagita, como lhe gritava a madrinha Fabiana, que passava o dia a ralhar com ela por mor dos trejeitos, correrias e cavilações.

— Que é isso, Bem Bem? fez ela correndo a confundir-se com a outra. 'Stá rezando? 'stá chorando? 'stará doente?

A outra caiu-lhe profusamente no seio, ela sentada na esteira. Soluçava sentida como a criança que desafoga em sua mãe um choro lon­gamente retido.

Bem Bem, fale!

— Não posso, Tonha, não posso... murmurava a Das Dores esmo­recidamente, como Cristo que diz: Pai, se é possível, retirai este cálice!

Maria se entregava completamente àquela descarga de humores. As idéias ruins, os desesperos, os sentimentos venenosos, saíram, entre­tanto, pela mor parte, com as lágrimas profusas, como arrasta aos cardumes de peixe o grosso da água de um açude que arrombou. O pior é que a Antônia entrou a fazer duo. Choravam ambas e assoavam à sur­dina, para que não as ouvisse a velha, que então seria um Deus nos acuda.

— Eu não disse? Tonha, não disse?!

— O quê? Ele vai embarcar?

— Antes fosse! Vão mandá-lo para as eleições.

— Ora é isso? Não é nada. O padrinho inda hoje dizia que nessas coisas só morre quem é pequeno.

— Mas ele não é alto! abugalhou a ingenuidade da Mariinha, na sua cegueira de amor.

— Não é de alto nem baixo! Bem, Bem. Em barulho só morre é gente pobre, os cabras, a gente de pé-no-chão! É isto.

— E por quê?

— Eu sei lá! Quem estava dizendo era o seu pai mesmo, à madri­nha. Pergunte a eles.

A vela, no castiçal de latão, assente no mármore do toucador, duplicava-se ao espelho, semelhante a umas lágrimas.

O pavio estava mourrão, e a pouca luz fazia errarem na camarinha umas idéias tristes. Amônia ergueu-se e espevitou, sacudindo ao chão a pontinha do pavio esbraseado preso à tesoura; e a Bem Bem, como se chamava adoravelmente em casa a Maria das Dores, correu a esma­gar com o pé a niquinha de fogo caída na palha da esteira, cujas qua­drículas de encarnado, azul e amarelo, pintavam grande parte do chão.

Antônia invejava o seu coração não tê-la obrigado ainda a sofrimen­tos daquela ordem. Com o seu belo donaire de rapariga loira, com uns olhos verdes e uns lábios de carne viva, era toda um desejo. Quase não acreditava que aquilo da Mariinha fosse deveras! Mas a curiosidade a fa­zia cada vez mais confidenciosa para com a sua morena amiga.

Estava de luto, a madrasta era falecida, no Outeiro, onde habitava mísero casebre. la-lhe bem lindo o vestido preto, que lhe dava uma apa­rência mais adelgaçada, punha-lhe mais oval o rosto, tornava-a mais sé­ria, acentuava as linhas, e gerava uns fluidos simpáticos. O ouro dos cabelos ondeava no negrume do dorso, e se usasse corpinho decotado, o colo e espádua desbrochariam como pétalas de magnólia, ou como nívea flor do cardeiro no denso da noite. Ansias tinha ela disto! Mas a condição inferior, de filha de um pobre cego, mantinha ainda sua alma deserta das ambições a que lhe dava direito a sua carne. Um alçapão sem engodo e sem chama. Queriam-se, ela e Maria das Dores. Tinha uns arrancos de estupidez, denominado — mau gênio —, que desgostava a amiga; ver­dadeiras crises de danação, em que maldizia dos padrinhos, dos pais e de tudo que lhe era afeto. Uma idéia vaga assaltava-lhe às vezes, de ob­ter um namorado, ver diante de si um homem, um desses leões cujo corpo parece pedra, derretido ante ela como no sol um prato de banha. Achava certo quezinho no Centu, e gostava de ter a outra pelo beiço, de confi­denciar com ela. Como certas pessoas que se fossem milionárias com­prariam casas para ter o prazer selvagem de incendiá-las, num espetá­culo neroniano, assim, gozava imensamente, como expectadora daquele inextinguível incêndio de amor da Maria das Dores.

Ambas sentadas na rede, mãos sobre os ombros, balançavam de manso, com o ouvido atento aos ruídos da sala. Conversavam homens lá fora: a fala, elas desconheciam. Sabiam que estava ali o Afrodísio, Vis­conde de São Galo, com outras personagens. Maria esperava que o Centu viesse logo ao chamado da carta.

Uma idéia! teve a capeta da Antônia: passarem para o outro quarto, e treparem na porta, espiar pelas bandeirolas.

— Bota-se o pé nas costas da cama, e segura-se no armador. Maria vacilou.

Que o Centu estivesse aí, isso sim!

Quem sabe se ele vinha?...

Era tão esquisito e incompreensível!

Eram tão imprevistos os seus atos, que não davam ensejo a que se calculasse havia de proceder assim ou assado.

A Tonha instava:

— Não seja mole, Bem Bem! Vamos embora. Parece que tem uma porção de moços lá.

— Que importam agora os moços, mulher?

— Pode vir o seu!

— Ora...

O corpo lhe pedia, à morena apaixonada, quietação, como exaurido, como surrado. Vinha-lhe uma prostração, e ceder a este convite da na­tureza, e ao sono, para uma cabeça repleta de imaginárias, era viver. Dê-se que o Centu viesse; inda bem, um moço como ele não havia de aprovar que, àquela hora, uma donzela estivesse trepada pelas portas a espiar os homens na sala. Aprova a minha conduta, comungou a Das Dores consigo. E decidiu:

— Não vou, Tonha. Vai tu só.

— Pois fiquese...

Largou-se a estabanada, num rodopio de saias.

O corredor, apenas alumiado por um bico de gás, e a grade do vestíbulo, meio aberta, deixavam passar a mulata Ângela para a sala de vi­sitas, com uma bandeja onde reluziam facetas de copos e o bojo de gar­rafas. Antônia pegou-a, deu-lhe um beliscão, e segredou-lhe ao ouvido não sei o quê. A mulatinha deu um ai surdo, a rir. Da sala de visitas, o gás vinha abrir no chão do vestíbulo um pano de claridade, onde Ângela pisou; e viu-se-lhe a estatura frescal, vestida de americano, com um aven­tal preto que prendia-se nas costas; e a carapinha mal penteada; e a tez, cor de chocolate esmaecido com uma pontinha de leite.

Antônia escorregou para o quarto dos padrinhos; uma peça folgada, cheia daquele ressonar de carnes já sem aroma e sem brilho. O guar­da-roupa alteava-se de um lado, e de outro avultava a cama do casal, aberta ao ar, sem cortinados, com os cobertores estendidinhos e com um montão de travesseiros. A rapariga estribou na cabeceira da cama, de madeira enflorada, alta cerca de um metro, e segurando a corda que pen­dia do armador, onde enfiava o punho de uma rede, içou-se até botar o rosto na altura dos entalhes da bandeirola.

Aconteceu bater com um joelho na porta, o que a fez estática um momento, espreitando se ouviram a pancada; precisou morder o vestido para não rir, que aquilo achava graça em tudo. Ouvia o ganir quase im­percebido dos armadores da rede em que a Bem Bem ficara embalan­çando. O gritito do ferro ia a menos, degradativamente, sinal de que a morena adormecia, porque mesmo ela ficara muito pesada de sono. Me­xiam em louças na sala de jantar, havia de ser a Honorata lavando as xícaras da ceia, para aproveitar tempo, — que a senhora fazia naquela noite em casa um revirado, desde que entraram aqueles homens!...

Da sala ninguém via a espiona. À mesa do centro, com umas gar­rafas de cerveja e copos cheios, sentavam-se o Lucas, que se julgava a si mesmo de um tino político admirável; o Capitão Desidério, da Guarda Nacional, chefe de uma localidade próxima, que viria votar na Sé à frente de um enorme cabroeiro; e o João Batista, caixeiro de escritório da casa Afrodísio Pimenta & Cia., a escrever cartas, por ordem do patrão — de combinata com o desembargador. Estes dois, no sofá, serviam-se do vi­nho do Porto que Angela trazia na bandeja de charão, discutindo assun­tos de que Antônia não entendia pitada.

Lá num ponto, o desembargador estava dizendo:

— Mas é preciso dinheiro...

— Não seja por isso, obtemperou o Visconde. A fisionomia serena deste, com um grande bigode, e o seu corpo fornido e alto, a pele trigueira semelhavam-no a um árabe, a um turco que Antônia vira vendendo miçangas pela rua. Disse aquele — não seja por isto — e ergueu-se de mão no bolso. O Lucas olhava-o como entendido, com as pupilas confundidas no brilho dos óculos.

Faltavam ali muitas pessoas do estado maior do generalíssimo. O advogado Cunegundes, eloqüente e coraçudo, redator d'A Oportunidade, rábula; vários negociantes, coronéis e comendadores; o cura da Sé; o vigário-geral; uns professores do Liceu; uns juízes de diversas varas; uns chefes de repartição, etc. Donde se vê, pelo número e qualidade, que a honra política do Dr. Osório estava da cor das tábuas do teto, alva.

Continuava, como toda a gente, a militar nas fileiras liberais; adido, porém, aos conservadores; que era preferível pedir pão aos inimigos a dar o beijo de paz nos irmãos. Neste quanto, conversassem com a Fa­biana, que aquilo sim, era pessoa de opinião. Quando esta senhora sol­tava de viés a palavra canalha, era com a limpeza de um asno que sa­code um coice para a banda. A gente deve procurar sempre as pessoas de representação.

O conciliábulo não foi muito longe. Era questão de arranjar o oficial para Baturité, que iria ao mesmo tempo revestido das funções de dele­gado policial.

Desde que voltou o portador que fora ao Centu, era meio caminho andado. O Lucas, pela manhãzinha, daria destino ao maço de missivas para as cabalas matutas, fora as que iriam pelo Capitão Desidério.

Nada mais havendo a tratar, retiraram-se todos. A Fabiana, que se­gundo as praxes da sua educação, fora para dentro uma vez que os ho­mens iam discutir os seus negócios, que ao menos em aparência não têm que ver com mulheres, compareceu à saída do Visconde, prazenteira, apresentada, ancha.

Sua Excelência continuasse a visitar aquela pobre choupana, que era pobre, mas o coração muito. Se quisesse vir um dia passar mal, assim... almoçar, ou jantar...

— Pobre sou eu, minha senhora, respondia o homem, sem saber o que pronunciar sobre o convite que a matrona lhe atirava com aquele garbo e prosápia dos Castro da Vargem da Onça.

O desembargador nisto era zero. O principiozinho de admiração que lhe ia nascendo pela arguta inteligência do titular, acanhava-o; e tinha que não saberia haver-se em civilidades de mesa, com um homem via­jado, e de hábitos, com devia ser aquele. Todavia, fez coro com a mulher.

— Hei de aparecer, com muito gosto todas as vezes que puder, di­zia o titular, apertando a mão em despedida.

E até dobrarem eles na esquina, o casal Góis ficou na porta.

Mas diz que amor é uma coisa que faz uma pessoa pensar constantemente noutra. Ora, só uma coisa havia que fizesse o Visconde ma­tutar — o seu negócio. Assim, nem por longe percebia o fluido que o ca­sal Góis lhe projetava.

Introduzido naquela casa, todas as vezes que a Antônia vinha à sua presença, achava-se ele confortado, feliz, pelo que, entrou a desconfiar que viria a querê-la, e muito.

Dado a mulheres, isso o era. Segredos virginais não lhe eram novidade. Bateu mão à prática no ofício de lidar com o animal do outro sexo. Avançadas e retiradas, guerrilha, em vez de batalha campal. Certamente, receava cair nalguma asneira romantica. Em vez de pensar, conseguin­temente, em levantar Antônia do pó, calculava descer até lá. Depois, su­bir ileso, escoteiro, triunfante. Aplicar-lhe-ia o beijo escariótico, e entre­gá-la-ia às turbas.

Quanto ao seu negócio, o Visconde voltava-se novamente para a luta política.

Como dizia o Osório, convencendo-se a si mesmo que deveria po­liticar em regra, a política havia rendido muito ao Visconde. Tornara-o nobre. Se ele não se tivesse encarapitado no trono de uma facção, não teria passado de um burguês apenas rico e obscuro. Assim, a tudo dominava. Agora, porém, que já era conhecido na Corte pelos a pedidos do Jornal do Comércio, queria uma luta clara, de idéias, bonita, que satisfizesse a sua momentânea e intermitente aspiração para o bem. Entretanto, me­ditava ainda o Osório, arrastavam o homem a combater o outro ramo do partido, para o que, era preciso fazer uma liga incongruente com uma facção contrária!!! Ingratos cearenses, não deixarem o Afrodísio subir a grande homem!

— Eu, no seu caso, disse-lhe uma vez o desembargador, fazia-me chefe republicano, e reagia contra o Rio de Janeiro.

— Bem sei, respondeu o Visconde na sua sabedoria, mas a gente é como o queijo, cuja figura depende é da fôrma. Se esta é quadrada, por mais que o queijo queira, não ficará redondo.

— Mas, Vossa Excelência, isto é, seu espírito, deveria buscar os horizontes largos, uma coisa que frizasse com o amplo fôlego das suas aspirações!

Uma coisa era ver o Osório dantes, e outra vê-lo agora. O que olhos não vêem, o coração não sente. Longe do magnata, era como os liberais republicanizados quando os conservadores estão no poder. Uma vez que Sua Excelência dignou-se a respirar o mesmo ar que ele, servir-se da sua cerveja e do seu café, o Osório sentiu-se mais alto. O homem, também, não era tão ruim. Que força de argúcia, de inteligência, que senso admirável! E o mundo é esse, minha gente. Deste pão não comerei, nem desta água beberei? Pudera!

E viu logo todas as possibilidades de chegar a Senador do Império.

Naquela noite a velhusca Senhora Góis de Oliveira voltou aos bons tempos em que a Maninha, em embrião, crepusculava para o dia da vida. A camarinha aromatizou-se de flores de laranjeira. Aquela cama, onde pousara pouco antes o pé sensual da Antônia que deixara ali como que o rastro dos seus doidos pensamentos, rejuvenescia, como se a loira ti­vera soltado um demônio dos muitos que turbilhonavam nas suas saias. Não abriu-se o oratório, fizeram as orações da noite à beira do leito, num pelo-sinal garatujado e numas ave-marias aferventadas. Contentaram-se com a luz mortiça da lamparina, que através do copo espargia na toalha um círculo cor de rosa. A Fabiana deitou-se primeiro. E entrou numa con­fusão de amor e de sonhos. Transportava-se aos seus dias do sertão. A modo que ouvia o chorar do carro ao longe, a vida dos currais, e o sussuro da mata próxima. Lembrava-se do formoso touro, orgulhoso e bravo, a rondar e a gemer; e da fresca enfieira dos sapos na lagoa, a coaxar; e dos beija-flores, velozes, com o biquito fino e as asas tremendo espas­modicamente no ósculo das corolas, despedindo ao sol faíscas da sua penugem catita, incrustação de variadíssimas pedras preciosas geradàs no ninho suspenso das árvores. Enxergava o lume da água do açude, por onde o vento se esfregava encrespando a esteira líquida, e donde saí­am as flechas dos juncos, e, como caudas de castor, as folhas da bana­neira brava; as associações do pacaviral; as jaçanãs, galinhas-d'água, marrecas, pacaparas, e potriões; nos cercados, os gaviões a pegar no pé o uruá; o pica-peixe caindo como seta; e o sol devassando a paisa­gem, enchendo o azul e rastejando pelo campo, a clarear a epiderme nua das raparigas que se atiravam ao banho sem as cavilações do pejo. Entre as folhagens da gigântea gameleira ribeirinha saltava agachado, de vestimenta vermelha e azul, o pica-pau atrevido; e o férreo bico dos bem-te-vis acossava os negros urubus nos ares. A areia,aqui branca e ali corada dos caminhos ia; e os cargueiros sumiam-se nas descidas e nas voltas; galopavam os magotes de éguas, e os poldros de cauda alevantada; as vacas pastavam lentamente. O sol adormentava as pupilas, e pesavam as sobrancelhas. As folhas tenras pendiam, à sesta.

Acontecia sempre, à Fabiana, nos momentos felizes, sentir uma forte ressurreição dos seus dias de moça, e ao Osório uma certa fixidez pensativa no olhar. Para Fabiana o real era o passado, que deveria reconstruir-se; para o marido o amanhã. Foram encerradas as discussões acerca do casamento da Maria das Dores. Estavam de relações travadas com o titular, e agora iam de vento em popa. O Osório não tinha fé. A ação deste homem era não agir. A sua filosofia prática, e a sua religião cifravam-se no dogma dos ociosos — a esperança. E a mulher, no querer.

A habitação do casal Góis mudou, como o ar quando o inverno fecha. Rebenta a babugem, o grão de areia sente a pressão da água e da raiz, o pêlo do gado aveluda-se, as borboletas ressuscitam, os anfíbios se desenterram; passou a grande síncope da seca, a estiação da natureza.

É verdade que o desembargador continuava a pôr-se de pé às cinco e meia, vestir a calça, às vezes sem botar de todo a camisa para dentro, e em seguida ir para o gabinete ler os jornais que achava metidos pela rótula. Era entretanto nova a impressão que lhe fazia agora a leitura. Gostava de A Oportunidade, cujo tino, que dantes ele chamava estradeirice, produzia-lhe prazeres não contados, imprevistos, de jogador pixote que aperua uma partida de mestres.

Daí, Angela trazia-lhe o café, ele virava a xícara, devagarzinho, fun­gava uma pitada, e ia estudar o seu pouco. Banhava o rosto, ou banha­va-se todo, perto do almoço. A amofinação dos trabalhos do cargo era para as onze, ou para a noite. As tardes continuavam para a prosa.

Tinha-se reformado um bocadinho o Passeio Público, senão criado, porque dantes ninguém lá ia. A sua aversão pela populaça crescia, à me­dida que a tendência democrática dos cearenses crescia também. Insula­va-se num grupo de estudiosos, certo nos bancos do terraço de cima, sob a esgalhada em dossel dos castanheiros de grandes folhas verdes e coralinas; todos como ele, sentindo esmorecer em si o caráter político.

Com a mulher, ainda rezava, quando não podia pretextar sono. Dizia-se católico, porém os outros o tinham por livre-pensador.

A Fabiana ficou muito maçada porque o sobrinho não veio tomar-lhe a benção antes de partir para o Baturité. Perguntou ao marido a razão, este respondeu que, naturalmente, a pressa da viagem. Maria das Dores, porém, não admitia isto. Sentiu-se muito, mas não deu mostras. O que pareceu é que Centu estava esfriando. Já havia deixado de passar de tarde, a horas certas. Ora, ela não fizera coisa alguma que motivasse esse desprezo. Mãe Zefa, pelo seu lado, jurava que o rapaz não tinha namoros por aí. Mas a menina duvidava ainda, afiançando que onde quer que fosse existia alguma tipa que o estava a seduzir. Tinha raiva dele, muita, e desejava a morte a si. E o espírito feminino, nessa angústia, comprimido, elevava-se a um ponto sublime, onde não alcança coração de homem; fazia consigo a jura de amor eterno apesar de tudo. Com esta deliberação, achou-se com vida e energia para sufocar a ingratidão dele, e com uma fé indestrutível, aguardava o dia em que o houvesse de ter a seus pés, para todo o sempre.

Uma dificuldade surgiu desde o princípio, o disfarce. Conhecia o gênio. da mãe, e teve de inventar quanta doençazinha galante existe, quando, estando ela sob o domínio de tredas impressões ou de brandas cismas, a carnuda senhora inquiria:

— Que é que tu tens, Maria?

Não gostava de sair tanto. Para ver o quê? Em casa figurava-se num convento. Fazia de conta que tinha ido ser Irmã de Caridade, como desejou em menina. Lia tudo que dizia com amores, que quase sempre aca­bava em desgraça. E um certo quê de imaterial que as mulheres costu­mam ter levava-a a conceber o amor infinito, a idéia de noivado no se­pulcro, de casamentos no céu. A beleza, que se lhe viera desabrochando pelo manso e progressivamente, parou o seu curso, e a par de uma de­liciosa expressão dolorida nos olhos negros, a face era menos acentuada, como se todos os dias se lhe pisassem as feições com o choro.

Logo naquele tempo, haviam de os pais introduzir pessoas estra­nhas em casa, e forçavam-na a comparecer! De quando em vez estava por lá o Senhor Visconde, um bichão, como ela dizia, sem jeito para nada, que parecia primo do bodegueiro da esquina. A menina olhava admirada para a mãe, quando esta disparava, em quanto elogio há, para com ele:

— Aquilo sim, minha filha, é um fidalgo, digno do nosso sangue! Vês como ele se porta? Não é como os outros. Não faz caso de nada! Responde a tudo com uma sabedoria de Salomão!

O Lucas entoava pela mesma cartilha. Maria comparecia, de pro­pósito, mal penteada, à mesa, e com uma cara de enjôo. Queria ter o prazer de desagradar. Ao piano é que não podia resistir, nem fingir; mesmo que fosse tocar para o maldito Visconde e sua comitiva. Não podia: o sen­timento fervilhava nas teclas, daqueles dedos que tantas vezes retorciam-se no desespero, e o som das cordas, de dentro, só falavam no Centu, da­quele rapaz franzino que lhe parecia forte como um gigante, da sua fala virgulada, do seu riso parco e caçoador, e do seu coração rico de segre­dos e de surpresas. Também, pensava ela, mal ou perfeitamente que tocasse, equivalia, para aquele troço de homens sensaborões.

Passou a idéia de que o oficial morresse em peleja. Visionava-o sem­pre de preparos para voltar, mandando tocar a corneta e avançando presto e risonho pelo caminho da capital. Isto, vezes por dia. Estava sempre a vir. Um dia havia de chegar.

E então, ajustaremos conta! ameaçava ela como se fora de fato sua mulher.

Uma tarde, no quintal, colhendo ela umas rosas para os santos, che­ga-lhe a Antônia devagar, quebrando uma folha entre os dedos:

— Sabes? O Afrodísio está apaixonado por mim...

Esfregava as mãos, de contentamento. Maria fez um ar de escan­dalizada. Havia algumas semanas que aquele homem entrara ali. Pela insistência da mãe, percebera que desejavam-na para noiva dele, e mais ainda, que ele é que queria casar com ela, que uma poderosa paixão o fizera angariar a difícil amizade do pai. Havia estudado até a resposta a dar à mãe: que se decidira a morrer solteira.

— Apaixonado por ti! franziu ela.

— Ah! está!

— Mas como conheceste?

— Não se diz. Isto agora é só com a baita.

— Ele te disse?

— É segredo! Não pergunte mais nada.

E largou a rir irresistivelmente.

— Eu digo a papai. Vê lá se me contas!

— Vá dizer logo, o caminho está aberto. Você pensa que só você é que pode ter namorado? Vá contar, Maninha, vá Bem Bem! Eu até lhe pago. Mas é você ir por um caminho e eu por outro. Conte o meu que eu conto o seu. E ficamos de conta justa, sabe?

Maria calou-se. Olhava para o sol espalhando-se por cima dos te­Ihados do quarteirão. Tocaram na corda sensível. Entretanto, artificiosa e vingativa quando ferida, a vaidade natural do sexo comungou consigo um — Tu me pagas — que deslizou como um áspide por cima de sua alma em flores. Em todo caso, era filha da Fabiana. A seu ver, na casa de seu pai, onde ela era princesa, somente ela teria direito de ser amada.

Ângela atravessava o quintal, carregando água, com o pote apru­mado na cabeça. Ouvia-se a ralhação biliosa da Fabiana, com a crioula Honorata. Maria lembrou-se de interrogar a cabrocha, e foi. Entraram pela sombra do tamarindeiro, por cuja folhagem renascida, miudinha e basta, não era fácil descer o sol, tendo sido preciso, até, mutilar uma linda ra­mada para a luz ter franquia com o seu cortejo de ar e de aromas até as profundezas da cacimba, ao pé da árvore, por modos que quando a crioula Honorata vinha puxar água a desoras via lá dentro os olhos arre­galados das estrelas. Ali o chão era fresco, entulhado para o pé do muro do fundo, e no canto do galinheiro, por fora, entre as brechas de um montão de caliça antiga, nasciam urtigas e camapuns, entressachados por uma primavera.

— Ângela, tu viste o Visconde dar alguma coisa a Antônia?

— Inhora não.

— E... nem falou com ela?

— Falou sim, a mode que trocou o nome dela, chamou Rosa.

— Deu a mão a ela?

— Deu, inhora sim.

— E o que mais?

— Eu não sei de mais nada, mas parece que beliscou.

— Pois olha, tu reparas, o que tu vires me dirás. Eu te pago. Já ou­viste?

— Inhora sim.

E a cabrocha, com os seus braços ainda não recheados pela pu­berdade, puxava a corda, ao ganir intermitente do carretel. As abelhas zuniam no tamarindeiro em flores, que exalavam um perfume ácido.

Mãe Zefa trouxe nesse mesmo dia às escondidas uma carta do

Centu. A concordata fora ele endereçar para um amigo da república, e este entregar à preta velha.

Que alegria! Antes do romper o envoltório, Maria cheirou, beijou,apertou contra o peito uma porção de vezes. Abriu com todo o mimo como se doesse no papel, com um alfinete que despregou do seio. Foi ler na camarinha, fechada por dentro.

Uma réstia, pela telha de vidro, rolava-lhe por cima a sua muda cas­cata de sol; e com a lentidão do ponteiro das horas umas pequeninas ovais incandescentes estampavam-se pela esteira. As mãos da menina tremiam, como o pestanejamento das estrelas em véspera de chuva. Sombra de uma ave que passa, fendia o cimo da carta a seguinte invocação:

"Minha adorada prima"

Como no engenho a cana, que uma vez apontando entre os cilin­dros, vai-se toda, ela não pôde parar na leitura, e no espírito, pela calha invisível das sensações, derramava-se o sumo das palavras, que havia de fermentar. Deslizavam, as linhas, palavra por palavra, e vírgula por vírgula, tudo, vividas, animadas, fonógrafo a repetir a voz cativadora do namorado, que as pronunciara, que as sentira, que as escrevera. O papel cheirava a mais! Era cor de rosa. Dobrava em cruz; e no canto superior, em caprichoso monograma um V e um M, Vicente Moura, que a menina lia — Vida Minha, Vinde Maria, Vencerás Maria —, naquelas gostosas puerilidades do amor primeiro. Chegando ao fim, tornou ao princípio. A compreensão estava difícil e demorada; os pensamentos a modo que se não mostravam por inteiro, e sim pela perspectiva das palavras mais fri­santes com o sentimento que a dominava e absorvia. Pela quinta vez é que alcançou destacar como que o volume de cada idéia. E relia com pausa:

"Primeiro que tudo peço-lhe desculpa de uma grande falta, que espero você me há de perdoar no seu coração. Eu sei o que se passa em mim, só eu sei o que sofro. Se nãd fosse para fazer os gostos a seu pai, eu tinha recusado o serviço deste destacamento. Não me aconteceria nada, porque vim para o Ceará por doente, e qualquer doutor me dava um atestado.
"A minha vontade, querida Maria, era implorar-te que te esque­cesses de mim para todo sempre, porque... Ora, enfim perdoa-me isto, que a minha cabeça não está regulando.
"Abri os livros e não pude estudar; aborreci a meticulosa calma, o processo fatigante e absortivo dos estudos; aquilo que era o meu maior prazer neste mundo! Desde que afastei-me daí, o meu amor cresceu desbragadamente. Só acho graça, só compreendo mesmo os livros que me emprestaste; O Guarani e O Seminarista. Que incom­patibilidade haverá entre o amor e o estudo, entre a arte e a ciência? Estas questões não estarão talvez ao alcance da tua feliz organizaçãode mulher, eu escrevo-as, todavia, porque não posso escrever senão isto. Eu vivo numa tristeza, num "spleen", macambúzio, que já me envergonho. Felizmente o meu sargento é muito brioso e inteligente, e me supre em presença dos soldados. Ah, minha pobre vida, eu que me supunha votado ao sacerdócio da ciência, como os Newton, os Galileu, os Lavoisier, me achar agora cego de espírito! Será possível, Maria, que sejas tu um sol, um relâmpago, que me paralisasse as funções da vida intelectual? Pelo amor de Deus, esquece-me! O meu caminho é diverso. Fica, o amor não é dado a mim, porque aniquila-me; o amor me é morte!
"Eppure si muove. Entretanto eu te amo! Ah eu te amo ainda e sempre!
Teu

V.”

A menina ficava perplexa.

Mas como se entendia aquilo? Ele a amava; ele não queria o seu amor, pedia que o esquecesse, e amava eternamente! Então, só ele que­ria ter o direito de amar? Não quer ser compensado? Ah!? Era bonzinho, meu caro, havia de ser amado, grandíssimo canalha; quer quisesse, quer não!

— Vou responder severamente a todos estes desaforos. Mas vaci­lou. Papai estará aí? Ela não estaria alterada? Vamos ao espelho.

Foi ao toucador, que ficava por baixo da imagem do bom velho São Vicente de Paulo, no seu eterno sorriso bem-aventurado. Passou o pente no cabelo, assoou-se, imaginou um defluxo nasal para disfarçar os ressaibos do choro, tomou fôlego, suspirou, sacudiu-se como para verificar se ainda tinha sangue nas veias, proferiu palavras em voz alta, correu o trinco, abriu a porta, e saiu do quarto, la cantarolando e saltando pelo corredor.

Entrou no gabinete, estava deserto, era meio-dia, papai estava na Relação.

O relógio cosia-se com a parede, com a estatura de uma pessoa, e na altura do abdome abria-se no verniz uma vidraça redonda por onde vagarosamente passava e repassava o plenilúnio dourado do péndulo. Maria entrou na pontinha dos pés, porém primeiro foi à sala de visitas, correu a mão pelo piano, e tossiu para que a supusessem aí.

O gabinete do pai era uma pequena peça forrada de papel cor de tabaco, imitando certas fazendas de seda, com uma janela de rótula e vidraça para a rua. Ao pés da escrivaninha deitava-se um couro de can­guçu, sob as pernas dianteiras da cadeira de braço, que girava como os tamboretes de piano. A estante subia, parede acima, da casimira verde que formava como um gramado no tabuleiro da mesa; e a pasta, gorda de papelada, adiante da meia lua onde encaixava o corpo do escrevente, abria-se em ostra. Maninha enxergava, pela força do medo, o pai a folhear nos livros, a passear no estreito aposento, a rabiscar.

A imaginação, de braço dado com o amor, açudava-Ihe no coração os rios do sangue. Pegou na pena e escreveu no alto de uma folha de papel amizade:

"Ilmo Sr. Tenente Vicente."D.

Não pode mais. Os caracteres saíam tremidos como sombras de varas na água corrente. Indignada consigo, passou o dedo, e borrou. Ficou inerte, debruçada sobre a pasta, julgando-se muito estúpida a si mesma. Queria desabusá-lo, mostrar para quanto presta a filha do Desembargador Osó­rio! Figurava ter o primo junto a si, em uma daquelas cadeiras onde assentavam as partes que vinham falar ao pai; e dirigia-lhe, com atitude de prima-dona, queixumes e increpações. Acabava, com os olhos para o céu, lacrimosa. Não, ia escrever, isto não era possível! Pois então, o que havia de ser de si?

E tornava, em outro papel:

"IImo Sr. Meu Primo Vic..."

Agora a pena cortava à guisa de bisturi, e a linha saía da pauta. Com certeza era aquele irônico IP'° Sr. que estava fazendo mal. Venha mais papel.

Meteu a mão na pasta, e veio uma folha tarjada. Luto? Mas que agouro, meu Deus! Teria ele morrido!?

Ouvia-se da rua o ruído timpanoso da carroça d'água, que produzia um efeito estonteante no cérebro, e o árido calor do sol a pino abafava. Não passava quase ninguém, ao soturno daquela grande luz meridiana. O sino de São Bernardo, magro e desafinado, batia o Ângelus, e em se­guida a voz de estentor do campanário da Sé. A idéia de morte pegou-a, como o cascavel ao magnetizado batráquio. A razão trucidada, e a ima­ginação, ruim piloto, iam-lhe com a mente aos escolhos da alucinação. Sentia-se inflamada, e parecia que o seu coração era uma postema!

As duas tranças, como duas cobras negras, amornentavam-se nas suas espáduas ofegantes, mordendo o cerebelo; e os lindos braços morenos faziam coxim à fronte pendida! O pés, nas sandálias de marroquim, cruzavam, apertavam-se no pano sala, debaixo da cadeira. Um cálido aroma de carnes virgens subia com a umidade daquele suor de agonia e de salvação.

Mansamente veio-lhe o receio de que o pai entrasse, e, disfarçando quanto podia, tornou à camarinha. Fez o que fazem as mulheres em caso semelhante — vasou-se em lágrimas. Levava no peito as folhas de papel borradas de tinta, menos a de luto, que introduziu cautelosamente na pasta. A hora do jantar, dormia; acordaram-na; desculpou-se com o defluxo.

— Defluxo novo incomoda muito, não é filhinha? dizia-lhe o pai, num afago desajeitado, tomando lugar à cabeceira da mesa.

— É, papai. É horrível.

— Mas devias ter dito, que eu mandava um chá, repreendeu a mãe. Vocês moças não aprendem nunca a ter juízo.

Em caso parelho, se algum namorado escrevesse à Antônia decla­rando que agradecia o seu amor; que o esquecesse; apesar de ele con­servar o dito amor pela sua parte eternamente, ela dava uma rabanada de traíra, deixando, ao lume da água, numa borbulha, a seguinte expressão canalha e brejeira:

— Seu caju azedo, quando se quiser levanta-se o dedo!

Mas com esta sujeita acontecia justamente o contrário.

O João Batista, caixeiro da casa Afrodísio Pimenta & Cia, apaixo­nou-se por ela. Um namorado sem ventura.

Naquela noite em que ela trepou por detrás da porta a fim de espiar os homens que estavam na sala, foi a primeira vez que ele a viu. Antes sentiu-a, realmente, do que viu-a, por entre os bordados da bandeirola. Babou-se logo por aqueles olhos de gata ruiva. Alcançou uma formosura imensa no corpo a que deviam pertencer uns olhos assim.

A parelha de luzios de esmeralda entrou a galopar-lhe pela alma adentro, indefinidamente, e um grande prazer o abalava na sua obscu­ridade de moço econômico e recatado. Pensava haver topado enfim o que desejava, a sua mulherzinha. Aquilo, parece, introduziu-lhe na pele uma substância estranha e salutar. A loira fisgou-o, sem saber. Verdade é que lhe não passou despercebida a insistência com que o caixeiro man­tinha o nariz para aquele lado; mas ao descer, nem mais se lembrava daquela fisionomia enjoada e inocentona.

O pobre, com um mês, sem trocar palavra (pois se ia à casa do Osó­rio a recados do patrão, a beldade o evitava de instinto) pespegou-lhe uma carta. A portadora foi a Mãe Zefa. Antônia ficou toda uma alegria: supu­nha que era do Visconde. O Senhor Visconde escrever-lhe!.., que achado, que fortunão.

E agora, onde ler aquilo bem de seu, com a maior segurança? Ocor­reu-lhe a camarinha das regras. Entrou, escondidinha. Uma claridade, encardida, um cheiro de àmoníaco e bodum; a telha escurecida pelas fu­maradas da cozinha. Estendeu-se na cama de couro de boi, ao canto, onde dormia, à noite, a penca de moleques. Foi logo à assinatura: João Batista do Nascimento!

Desapontou! Batia-lhe o coração, de insultada. Sentia um buraco no peito esquerdo, como se estivera com três dias de fome. Esmorecia miseravelmente. Quase teve um faniquito.

João Batista do Nascimento!

Fosse para a casa do diabo!

Já se viu um bicho mais besta? Que mal fizera a Deus? Não lhe diriam?

Amada por uma figura daquelas, entristeceu. Uma ofensa à sua be­leza e formosura.

Pareceu-se muito feia a si mesma, uma vez que um tipo daquela ordem simpatizava com ela. De feito, entendia de seu natural, só haver simpatia, havendo semelhança. Neste ponto se tinha ou não razão, é com o boticário Fernandes, que sustentava: aquela atração do corpo e alma supõe sempre certos pontos de igualdade, aparentes ou não, entre as duas pessoas; o que o Osório combatia com uma teoria contrária. Com­pleta oposição, dizia este, é a base do amor.

O escrevente pedia licença para ofertar-lhe um vestido. Que pediria a sua mão, quando ela quisesse. Que só ia naquela casa por amor dela, etc. etc.

"Sei que seu pai é um pobre cego, e que você é quase só no mundo. Seu pai não precisará pedir esmolas, quando nós nos casar­mos."

Isto irritou-a. Falar assim naquela mancha negra da mendicância, que era como umas sardas na pele rósea do seu rosto! Lembrou-se de quando o vira pela primeira vez. Que olhar impertinente! Dias depois, vindo a mandado do Visconde, saudou-a muito sem vergonha, deslambido, e daí, continuou.

O pobre não sabia disfarçar. Gostou da rapariga. Desconhecendo, porém, completamente a vaidade e suscetibilidades femininas, julgou que o maior agrado seria pedi-la chatamente, — sem saber se caíra em graça. Pela carta, solicitava o seu consentimento, para ir aos padrinhos, certo de que estes não recusavam.

De bruços, no couro cru, Antônia, meio pasma e meio enraivecida, erguia os olhos de bichano para o altar das crioulas. Diria que sim? Mas antipatizava horrivelmente com aquele rapaz, sobretudo ao ver que ele, vinha com isso de amor. Ante ele, depois dessa idéia de fundirem-se os corpos e a vida de ambos, tinha sensações de um sezonático ao pôr a vista em carne crua. Quando ele apertava-lhe teimosamente a mão, sen­tia ela uma impressão fria e pegajosa, e se lhe revoltavam as entranhas.

— Impossível, minha Nossa Senhora!

E repetia a frase instintiva, dolorosa:

— Não posso. Não posso, meu pobre pai!

O João de Paula, estava ali, pelo poder sugestivo que se obrava nela, naquele raro momento. A filha escutava, no tijolo, as pancadinhas do seu bastão, guiando os passos, e sentia-o passar a mão pela parede, como fazem os cegos na rua. Mirava, sem rumo, os santos do oratório das escravas, destas cuja fé era assaz vidente para não descobrir as dis­formidades de uma Santa Rita de venta chata e de um São José de per­nas de beribérico, desde que eram imagens benzidas. Sim, aos pobres negros tanto rendia um Cristo pançudo como um de barriga no espinhaço; era o mesmo Bom Jesus dos Aflitos; o mesmo cujo sangue era tão rútilo como o do Dr. Afrodísio, ou como o do preto velho Mané Corre que fedia a cachaça e a masca de fumo.

Antônia procurava como que uma resposta inspirada, no pedaço de parede reverenda. Olhava para aqueles trapos de papel pintado, um pouco acima das malas incrustadas de remelas de cera de carnaúba, salpica­das de sangue de pulga e empoeiradas. Parecia estar no terço das Al­mas, a que vinham os crioulos, tirado por ela, que se fazia muito rogada para isso, lido num caderno antigo distribuído por Frei Serafim. Com cer­teza a cantoria instintiva dessas mulheres degradadas era supinamente mais comovedora, expressiva, incomparavelmente mais rica e cheia de alma, do que a das meninas do Colégio. De um ritmo saudoso, bastava entoarem o primeiro trecho:

"Abrirei meus lábios, em tristes assuntos
Para sufragar os fiéis defuntos..."

e transfigurava-se aquela camarinha imunda, em fantasiosos comparti­mentos do Purgatório. A corda de roupa, que lhes era o guarda-vestidos; as redes amarelentas entrouxadas entre os cordões do punho do arma­dor; o vão do telhado, fusco pelas fumaradas do fogão vizinho; o tijolo catingoso do mijo dos molecotes; o bodum que recendia com um enjôo de panos abafados: a triste indecência daquelas mulheres sem direito de amar; os cafundós de sob o vasto leito de couro cru; os velhos trastes imprestáveis que os senhores botavam pr'aí; desaparecia tudo na íntegra da impressão auricular. Duas velinhas de vintém, pregadas no tampo das malas, alumiavam parcamente a caixa de cedro, feita pelo cabra Teodoro, suspensa na parede forrada, apinhada de santos, entre os quais pom­peava o S. Benedito de beiço vermelho e grandes olhos limpos, com um resplendor de níquel.

E Antônia, estirada na cama de couro, de vestido preto, com a sua tez, cujas imperfeições apagavam-se na penumbra, e aqueles cabelos dourados, estava mesmo uma pintura. Entrasse ali agora o Afrodísio! Aquele para quem ela se sentia de todo inclinada! Sonhava desposá-lo.

Teve um susto com esta idéia... O painel de madapolão, que, na parede, acima do nicho, com abundâncias de tinta azul e amarela, ex-bandeira das novenas do Rosário, seguro com preguinhos, abria-se como um pássaro de grandes asas, a modo que agitou-se como se ainda estivera içado no mastro e passasse um vento forte e repentino...

Enfim, foi-se o mau pensamento. O pano continuava estendido, com a sua rígida pintura estraladinha como o vidrado de louça velha, e a ima­gem de Nossa Senhora, a virgem das virgens, na sua pureza imaculada.

Na sala, aproveitando uma discussão que os pais travavam no ga­binete, Maria das Dores lia a segunda carta do Centu. Parecendo-lhe um olhar em cada poro de parede, balançava-se na cadeira de vime, junto à mesa do centro, muito aplicada com um livro que abria ante si, com as duas mãos: Lições de História Natural, muito recomendado pelo velho.

Assim, podia vir quem quisesse. Não estava para aflições: uma pá­gina, intercalada, era a preciosa cartinha, que dizia assim, com uma letra demorada e rabiscada:

"Querida Maniinha:
Me deste uma lição de mestre! Não me confiaste uma palavri­nha sequer. Oh! crueldade! Uma folha de independência metida num envoltório de papel avermelhado, com o meu endereço, eis aí a resposta que me enviaste! E castigo merecido, eu te ofendi muito. Mas que queres? Hei de eu enganar-te? Dirás: Mas neste caso você devia ter previsto no princípio, porque há meses que você voltou ao Ceará, e sempre que me via demonstrava, cada vez, mais amor!
E eu acrescentarei: Antes de partir para o Rio, sem conhecer-te, já eu te adorava em ideal. Entretanto, nunca eu me achei como agora. Tenho um pressentimento de que a minha carreira será cortada, se me casar! Que situação dolorosa a minha! Não sei o que será de mim. Por isso é que o meu desejo era isolar-me, pronto para naufragar, mas sozinho! Bem vês que o meu amor é muito maior do que julga­vas. Estou doido de amor, mas é dura em mim a pertinácia do bom senso. Eu não estou doido inteiramente, antes o estivesse.
Desde que resolvi entregar-me simplesmente às forças naturais, tirar à minha vontade o direito de imiscuir-se em tudo que não seja o estudo e o trabalho, passo melhor, leio, rio, faço caminhadas de recreio. É verdade que me dizem melancólico, e me chamam filósofo; e eu me sinto muito sensível. Isto, porém, é o amor que me gravaste, que me aguçou a percepção externa, me afinou os nervos e os sen­tidos.
Bendito amor...
Eu ia pondo aqui uma adversativa, ia dizendo um mas... que te faria muito mal. Não quero, porém, agravar a tua ferida.
Teu

V.”

Se com a outra carta a menina desapontou, com esta muito mais.

— Que ingratos, estes homens! Uma carta com reticências e mistérios: o Senhor meu primo estará me flauteando? Quer me desfrutar!... Quem sabe...

Esta frase veio num turbilhão histérico; a menina largou o livro e levou as mãos ao rosto, sacudida pelos soluços.

Não havia maior vilipêndio, maior desilusão, mais acerbo dissabor. Experimentava a mesma revolta que um homem de bem associado de boa-fé a um tratante que o bigodeou por fim.

Melhor não se importar mais com aquilo. Abafar, com subido hero­ísmo e frio disfarce, o sentimento; fazer como à baleia fisgada, dar linha, até o cetáceo cansar ou desaparecer. Mas, se começasse a ficar magra e amarela! e ele viesse de repente, vendo-a desfigurada... Que jeito? Dieut le veut. Seguiu o conselho que lhe dera o padre reitor, para as atribulações:

— Faça-se a vontade de Deus, e não a minha... Ah! mas, uma boa idéia!...

E depois que o pai saiu para a rua, foi ao gabinete, tomou uma folha de papel de carta, escreveu transversalmente, em grandes e frisantes ca­racteres: DIEU LE VEUT Dobrou, meteu no envoltório e subscritou ao primo.

— Sim, senhor. Deus assim o quer. Agora, decifre Sr. sábio! Embrulhei-o!

A tarde esteve bonita. Ela saiu de carro com o pai.

Deram uma volta pela cidade, e, da Rua de Baixo, enfiaram pela comprida ladeira do Outeiro dos Educandos, no horizonte da qual apontava o muro branco do Colégio. Na subida, de um lado e outro as boas edificações iam rareando. Já na esplanada, estendia-se a cidade de casas pequenas, ruas de areia e hervanço, quarteirões de mato, habitada por uma população de vida vegetativa. O carro dobrou o canto do muro. Acharam-se marginando a frente do edifício, diante do qual abria-se um descampado que se destinava a uma futura praça. Aí, o mata-pasto, salpicado de florinhas douradas, cobria o pó, subia como um mandiocal; e na tona viridante, avistava-se o busto de quem se internava pelas veredas.

A Mariinha aliviara o abalo interno em demorar a vista na paisagem.

Umas casinhas novas começavam a delinear a praça, agrupadas espaçadamente, com o amarelo do ocre, ou o escuro do roxo-terra, ou o alvo da cal. Um proprietário mais poderoso sungava a frente aos 22 palmos da marca da Câmara, e deixava o resto em meia-água. Ao fundo, onde o terreno descia para um açude, as habitações, por trás daqueles matos vivificados de maio, punham o queixo acima da seara de erva, e de algumas se não via senão o topete. Com aquele cinzento baço e fofo do corpo dos avestruzes, as casas de palha, com a frente em empena, insistiam pelo meio da futura praça, e fora dos alinhamentos das ruas que começavam a desprender-se; e por essas choupanas arruinadas podia-se tirar a olho o rumo das estradas antigas e extintas. Soutos de pau-ferro

cobriam terrenos devolutos, capoeiras de antigos roçados; e um roxo lácteo florescia como enxames de mariposas, por miríades, nos jurubebais. As cercas de faxina, as caiçaras, onde o melão trepava, alinhavam-se, toucadas de filó verde, e com o cinzento de casca de pau. O ar denun­ciava a pancada dos pilões, o canto dos galos, o latir da canzoada, o gri­tar dos meninos, naquele viver promíscuo e semi-selvagem.

Pela frente do edifício passava o empedramento, que um pouco adiante morria na estrada de areia, artéria dos roceiros da Aldeota e do Rio Cocó, por cerca de duas léguas ao Sudeste.

O Senhor Bispo vinha saindo pelo portão do Colégio, construção de forte alvenaria ladeada por um gradeamento preto. A cruz e o tran-selim de ouro, na murça cor da túnica do Bom Jesus, e o roquete de fi­níssima guipura, transparente no lindo roxo da batina, o tom sagrado dos seus passos, o olhar pontifício, o lustroso pêlo do chapéu, as pedras pre­ciosas do anel e da cruz, feitos para o macio das catedrais e dos apo­sentos principescos, melhoravam aquele ambiente mísero e terreno. Era com um fervor que há muito não sentia que a Das Dores, dobrando o jo­elho, baixava o rosto sobre a mão sagrada e depositava um beijo na pe­dra fria do anelão do pastor. O Senhor Bispo sorria uma palavra amena, um gracejo, como para nivelar os espíritos. E as Irmãs que o acompa­nhavam até o portão entravam no cavaco, e recebiam a Das Dores com a maior doçura, como se esta fosse ainda aquela. O desembargador ofe­recia o carro a Sua Excelência Reverendíssima. O Bispo agradecia, e con­tinuava a pé, mansamente, sob o guarda-sol do seu secretário.

As Irmãs demoravam na soleira do portão. Uma nuvem passando lentamente servia de pára-fogo àquele sol das cinco e meia da tarde. Em seguida, as altas copas dos coqueiros dos quintais da Rua de Baixo, ao Ocidente, avistadas por cima, amostravam as bordas acendidas, as pal­mas, em estrelas, avivadas de luz.

Das mudas cenas do Ocaso sentia-se um fino silêncio, que vinha quebrar-se na superfície da terra. A areia tomava um cinzento corado e morno, e o mato era enormes manchas de vário verde infiltradas de uma claridade aloirada, amortecida e palpável. Rente à paisagem, para o Ocidente, ia-se percebendo uma poeira brumosa, com o moroso cair do sol.

Fez-se um crepúsculo quase nu. O Poente empastou-se por uma nuvem parda e lisa, por entre as brechas da qual saíam vislumbres fulvos que iam colorir as ligeiras névoas salpicadas aqui e ali pelo firmamento.

A Das Dores fora à capela de Lourdes com o pai fazer umas orações. Mandada pela Fabiana. As Irmãs entraram, ao bater da sineta, para a ceia, depois de no parlatório entregarem à antiga educanda a chave da capelinha. A porteira seguiu os visitantes com o seu paletó quadrado e o seu beato andar de leigo fervoroso, conversando piedosamente, narrando os últimos milagres da Senhora de Lourdes. Atravessaram uma área de jardim. O desembargador meteu a chave na porta. Abriu. Dentro era escuro, apenas no ar, ao fundo, a lâmpada arroxeada. Puseram-se às escâncaras três janelas. Então se podia admirar a gruta. A mica brilhava nos papos da rocha; e, numa cavidade alta, aparecia Nossa Senhora, de alvo, mãos postas, pisando em rosas silvestres, faixa azul, os olhos no céu, e em torno um letreiro: "JE SUIS L'IMMACULÉE CONCEPTION."

Prostrou-se profundamente a Das Dores. Ah! dias, que foram! sen­timentos escoados para sempre que não há invocar! Do chão ao telhado, até um terço da extensão da capela, amontanhava-se a gruta, que pare­cia conter as mais ricas pedrarias. A estátua da pequena Bernadete, a quem a Santa apareceu, ajoelhava por dentro da grade, de vela e rosário, olhando para a Imagem. A esquerda aplainava-se na rocha fingida, uma ara para a celebração da missa. Um Cristo e castiçais de prata aí repou­savam no morno silêncio. Ao meio da gruta cavava-se um depósito da água milagrosa, vinda de França.

Estava-se como numa sepultura subterrânea.

Pelas paredes sombrias, quadros do Juízo Final, da Morte do Justo, da horrenda Morte do Pecador; e ao lado da porta principal, fechada, que dava para a rua, escancarado, o armário dos milagres, ostentando per-rias de elefantíases, dependuradas, mãos inchadas e em pústulas, bra­ços cortados, cabeças de crânio roído, ou de boca torta, ou de nariz can­ceroso, muletas, representações de naufrágios, em desenho rijo, ventres dilacerados, retratos desfigurados, peitos lancetados, pescoços escrofu­losos, lombos mirrados pela tísica: a carne nua e podre na mais horrível confissão da miséria humana e do milagre divino. O desembargador exa­minava, atento, afigurando-se que ainda cria naquilo.

A Das Dores, porém, no genuflexório, pensava era em beber da água miraculosa, para o mal que a minava. Pedia que lhe apagasse o fogo que lhe ardia dentro, a chama excomungada, o ciúme consumidor. De repente lhe havia surpreendido a convicção de que o primo amava outra, alguma filha de rico fazendeiro baturiteense! Que enorme afronta! Esta idéia de traição metera nojo, e trouxera imediatamente uns cheiros vis de impu­reza e de intestinos, uma lúcida intuição da quanta baixeza a que pode afundir o bicho homem. Ofuscou-lhe a feminina e transcendente idéia do heroísmo. E ficou como as esposas esquecidas e desesperançadas. Re­presentava-se-lhe o ser como uma esponja insaciável. Escandalizou-a, aquilo, como a quebra de uma palavra de honra. Uma sensação de es­magamento. Num mar onde tudo vacila. Um naufrágio da esperança. A alma, da sua pureza de amor, caída na privada onde brotoejam o ódio e as aversões.

— Coitada de mim! bradava com os olhos para a Santa.

"Não se lembrava, a sua antiga padroeira, da pequenina Das Dores que vinha cantar em coro, e o hino delas enchia aquela gruta sombria e sagrada? Já a esqueceste Maria Virgem? Por que a deixas neste mundo maldito? Ah! quando ela renunciou a Satanás suas pompas e suas obras!

"Um raio desse teu olhar azul conserte o seu coração quebrado pe­los maus pensamentos!

"Ilumina o escuro de sua alma, Senhora, Ave Mana cheia de graça!"

Os ratos faziam uma correria por detrás do zinco e madeiras que representavam a rocha. Um morcego ia e vinha com o seu voar frouxo. Por uma janela entreaberta, para o Oriente, o desembargador avistava um último luzir de sol na trunfa de uma castanheira afastada. Chegavam até ali, claramente, os gritos e vozerios das educandas, no recreio; e uma Irmã saía de dentro da gruta, por um corredor disfarçado, a convidar a Das Cores para o Mês de Maria no caramanchel dos jasmins, num dos pátios internos. Das Dores não quis. Beijou a mão da sua antiga mestra, saiu e foi a meter-se no carro.

A Irmã, em companhia da porteira, que fechava o grande portão de ferro do jardim, ouvindo-se ainda o forte ruído das rodas no calçamento, fazia balançar no dedo o olhal da tesoura que lhe pendia do cinto, e can­tarolava:

"Le monde fait son tapage..."

A perteira curvava-se para correr o ferrolho de baixo, com o &u ar piedoso, não entendendo o francês, nem o sentido mordaz daquelas pa­lavras.

Ao pisar na soleira da porta do parlatório, a francesa relanceou um último olhar pelo crepúsculo. Nem mais se via um pingo de sol:

"Et l'amour fait son ravage..."

Seria em português cortante: O mundo amotina, e o amor arruína.

Dos extremos do cano meio descido, paralelo à toalha, sobre o ser­viço de chá, os dois bicos de gás, nas mangas de vidro em forma de meio globo, clareavam suficientemente, sobretudo à calva do desembargador, à direita dos bigodes do Visconde que honrava a cabeceira da mesa. O pente de tartaruga marchetado e duas pastas grisalhas, o riso e parla­patice ocasional, não punham dúvida de que à esquerda assentava Fa­biana. Um reflexo doloroso na fala, uma sombra, uma colateral melodia como se com os sons primordiais marchassem harmonicamente outros sons, davam a entender Maria das Dores, a morena, ao lado da Fabiana. Fronteiros a ela, o Cunegundes, redator de A Oportunidade, e mais o Ma­jor Secundino, comerciante, barbaçudo e circunspecto. Antônia acoita­va-se vizinho à Maria, e era um pedaço de latão arejado junto a uma obra de lei.

O Lucas seguia-se a Antônia, e chamava-lhe sempre Antonina, à maneira dos portugueses.

Parecia um repasto de luxo, a notar pelo bule de prata. Havia bolos, pão-de-ló, vários queijos, torradas, carnes frias, pastéis. A manteigueira, o açucareiro, e a fruteira do centro, de grande custo. É que ali andou mão de Maria das Dores.Pela primeira vez, esta coadunou-se com a mãe. O diabo entrou-lhe. Tomou uma tal aversão pelo primo, com a simples idéia de que ele a enganava, que o sangue materno, como os cururus da beira da lagoa, entrou a berrar-lhe naquela noite do sentimento. Resolveu con­quistar o Visconde. Este fidalgo estava caidinho pela Antônia, e por isso, olhava, ria e falava para o lado delas, e a Maria tomava que isso era con­sigo, pois um Visconde não ia lá se ocupar deveras com a filha do cego João de Paula.

Fabiana, satisfeitíssima. O desembargador, esse, nem como coi­sa. Conhecia o magano pela pinta do olho. Sabia-lhe agora muitas mamparras.

O caso é que Antônia, dias depois, indo ao mês de Maria em São Bernardo, não foi vista na igreja; o que Mãe Zefa, que a acompanhara, contestou, alegando que até haviam estado todo o tempo da novena ao pé do altar de São Roque.

Neste entretempo, a menina recebe a terceira carta do Centu e foi caçoando mostrá-la à mãe:

— Vosmecê quer ver como anda o seu sobrinho com as manias de papai? Olhe cá.

Fabiana estava assentada no banquinho da costura, na sala de jan­tar. Com os óculos na ponta do nariz, inspecionava a renda que a Ângela fazia, e achava, como era fado seu, pelo menos, preta de sujo. Puxou a almofada para si, e desenrolava a quantidade de renda já urdida; media a palmos, avaliando quantos côvados precisava para um cabeção com três carreiras de entremeios; enrolou a peça e pregou-a de novo na al­mofada. Angela, de pernas cruzadas, no chão, a seu lado, entrou a trocar os bilros. Largava uns e tomava outros, e quando um ponto ficava dado, segurava-o descendo um alfinete, e assim, imperceptivelmente, ao longo da tira de papelão ia se formando aquele caminhozinho bordado. Mani­nha gritava do gabinete:

— Mamãe, ande ver!

A velha enfezada:

— Arre lá, que me importa isso agora!

Por certo, uma vez que a menina manifestou-se pelo Visconde, me­recia toda confiança. Pudera, boa filha.

Na cadeirinha de pés aparados, Fabiana continuava costurando. Des­cansava os tacões na travessa de um mocho onde depunha o açafate contendo a caixa dos óculos, o agulheiro, a tesourinha, o canivete, uma laranja de madeira para consertar meias, o coto de cera branca, os novelos, os carretéis, alecrim seco e uma raiz de gengibre. No silêncio que pairava na habitação, quase ouvia-se a ebulição das panelas e a voz dos próprios pensamentos. A mesa expunha o seu verniz de sândalo, a co­berta, de linho pardo com estrias vermelhas, repuxada para uma das ca­beceiras, ao lento esvoaçar de umas duas moscas. Antônia, junto ao en­vidraçado e alto guarda-louça, curvada sobre o bastidor do labirinto, le­vantava de vez em quando um olhar para a quente perspectiva do quintal, ninando, aos estalinhos secos dos bilros da Ângela, as idéias que lhe ador­meciam na mente. Ângela mudava automaticamente os alfinetes e esta­lava os bilros fortemente, sem mesmo reparar na bela chita adamascada que revestia a frente do almofadão. Irmanada intimidade fazia-se entre todas. A Fabiana com o seu dedal de prata, cerzia uma ceroula do ma­rido. Os seus dedos sem brilho paravam por momento, estendidos no tra­vesseiro da costura, e dos seus lábios secos desciam palavras pelo brando, repassadas de unção materna.

Nos buracos da almofada, nos topos, Ângela guardava um pedaço de rapadura, que roía às furtadelas. Pouco entendia dos conselhos da senhora, e a prova é que saía-se com perguntas tolas, indiscretas algu­mas, que pasmavam de pejo ou de riso. Faria a primeira comunhão, ia inteirar treze anos, precisava recordar a doutrina...

— E como é isso? perguntava à senhora.

— Como? No catecismo, tola!

Esquecera a matrona de que o catecismo é para ser lido e decorado, e que, no seu pensar, negro não se instrui. Foi desenvolvendo os capí­tulos, que sabia de cor, explicando o melhor meio de decorar, de com­preender as sagradas lições. Quando encarava o quintal, nos vidros dos seus óculos, dançava em miniaturas catitas o dia exterior com os objetos que ele banhava.

Um profundo pesar avermelhava-lhe de costume esses fins de con­versa de religião: não ter ido para freira em Portugal. A não ter podido, por força da natureza, sustentar as carnes e a frescura de noiva, — nesses momentos de enlevo místico deplorava não ter preferido a abstinên­cia completa.

Abaixava para Antônia e Ângela um olhar duro, crivado de mistérios e de interrogações. Daí, o desejo da virtude física amadurecia em inveja.

A cabrinha trocava pacatamente seus bilros, erguendo sobre os quadris esparramados no chão o tronco esbelto e rijo. Da Antônia, roçavam na grade do labirinto os dois seios fatais, parecendo pipilarem como pintinhos ao sair do ovo; tremiam-lhe ao mais leve meneio, as argolas dos brincos postados como espiões na pontinha doce das orelhas; a pele, com a quentura, porejava, e os dois olhos verdes, cambiando, amorneciam sob a fixidez superciliar; e o largo da testa, para ser plantado de ósculos de amor, ia esconder-se pudico na úmida orla do cabelo, onde enrolava como uma cobra uma fita azul. Pelas portas, que abriam sobre a varanda, sonoro de vidrações incandescentes, auriverdes, via-se o dia lá fora, cheio, equatorial, invasor, oceânico. Em jarros de terracota, assentes no peitoril do alpendre, que seguia-se à sala de jantar, reverdeciam pés de alecrim, de cravos, de junquilho, de rosa-menina; e numa corda armada entre as colunas da varanda que seguia-se à puxada da cozinha e dependências, pendia uma vistosa toalha de mesa, franjada, com manchas de café e de vinho. Uma toalha de sol acendia-se no ladrilho, e abria um foco des­lumbrante no flandres de um pequeno regador emborcado junto a uma vassoura de piaçava. Ouvia-se, como um ebulir de sons num cristalino caldeirão de luz, o discorrer dos passarinhos presos. Das bandeirolas, pendiam duas gaiolas de fio de ferro, com casais de canários belgas, e numa de taliscas de bambu, junto ao guarda-louça, uma graúna, negro brilhante, lembrava o cair da tarde nos carnaubais, desmanchando-se numa cantoria selvagem e lânguida, por modos a lavar um peito ébrio de amor, naquela hora de modorra. As folhas das portas, com uma tinta alva de casca d'ovo, dobravam-se na espessura da parede forrada de pai­sagens. Como um prédio de construção pesada, o guarda-louça, na sua abundância de vidraçaria, enchia um claro. Angela fazia estalarem os bil­ros, na renda; e o gato mourisco, de orelhas em pé e cauda para o ar, passava e repassava o lombo sob o seu cotovelo, fazendo ron-ron.

A Mariinha, teimosa como ela mesma, veio com a carta do primo, sentou-se ao pé da mãe, e fê-la ouvir a leitura.

— Eu quero que você veja só, mamãe, como este rapaz é maníaco. Estou que ele acaba doido. Se há de cuidar nos seus soldados, passa o tempo estudando as aves, as pedras e os matos de Baturité e da Serra! Veja lá!

A carta parecia de rapaz a rapaz. Nem vislumbre fugitivo de paixão. A Fabiana respondia:

— Está direito, minha filha! Puxa ao pai, que morreu de aprender. Assim é que o teu primo há de conseguir ser alguma coisa.

— Eu aprecio muito mais um homem como o Visconde, que vive sempre no desempenho da sua profissão, atalhou a moça.

— Está bom... Isto agora é assim mesmo. O Visconde é um fidalgo, um homem notável, uma espécie de príncipe.

E olhava maternalmente a filha:

— Ele te aprecia muito. Parece mostrar, até, uma certa queda por ti...

— Já reparei... fez a donzela, entre sorrindo e desconfiada.

— Mamãe, e soldado é soldado; o Centu não devia pôr-se agora

a idiotar estudando bobagens! exclamou intempestivamente.

A velha, na satisfação da sua vontade, que costumava antepor a tudo, não surpreendia aquelas lucilações repentinas que involuntariamente relampeavam na conversa da filha, a respeito do Centu, fosse qual fosse o assunto. Era imperfeito o prisma da sua compreensão, para decompor a grossa luz do pensamento da donzela e ler-lhe nas cores simples.

A própria carta do oficial traía-se, apesar da calculada frieza.

Dizia que as eleições tinham-se feito sem mais novidade. Não re­velava grande entusiasmo pela vitória dos amigos do desembargador. Estendia-se muito em desenhar a natureza baturiteense, sobretudo da serra, onde passava semanas inteiras, deixando a força entregue ao sar­gento. Mas escrevia por baixo de tudo, em um "note bem", que a Ma­riinha não leu para a mãe ouvir, que o estudo não lhe fora bastante para compreender tão apaixonadamente a esquisita natureza da sua terra, se antes, alguém não lhe tivesse fornecido a chave do cofre dos sentimen­tos. Repetia a frase dela. Dieu le veut! e acrescentava: J'en doute!

— Que blasfémia! vociferava, de dentro do coração, a menina! Deus quer, mas eu duvido! Ah! senhor meu primo!

O caso é que passou a crise do ódio. Raiva de amantes, que de­genera em riso. Veio, antes, dela mesma: entendendo-se traída, e o ci­úme subira, como os vermes. Agora passou.

Entretanto, ela sentia — que uma coisa lhe faltava. Estava como uma gaiola cheia de canários, donde fugira um. Voou.

O amor é como um cacho de uvas: toda vez que a carne assoberba devora-lhe uma, até que só resta a vinha da amizade, se não lhe dá a filoxera do esquecimento, do tédio, da repulsa, da saciedade, da aversão.

Mariinha levou a mão ao peito, o músculo cardíaco era o mesmo, agitando a massa do sangue.

— Mas o que é que eu queria? dizia consigo, entrando na camari­nha. Eu ia fazer alguma coisa... e levou o dedo aos lábios.

Procurava lembrar-se, ligar idéias, não encontrava em si a faculdade da memória! Pesavam-lhe as capelas dos olhos: dois abalos sucessivos haviam-na prostrado. Restituída a si, ao seu amor, por aquele nota bene que ela não vira a princípio, estava, entretanto, cansada.

Havia, ali dentro da camarinha, um trescalar longíquo de paixão e de flores. Num ângulo sombrio, pelo punho enfiado no armador, dependu­rava-se a rede, cujo panejamento dobrado entalava entre os cordões disten­didos, o todo parecendo uma funda carregada, as voltas do tecido abraçan­do-se cumulativamente. Abrolhava escapulida, uma bolota com um pedaço de varanda, em desmazelo de gente nova, em frouxo aconchego. Os cor­dões do punho desleixadamente enrolado no corpo fofudo e alvo daqueles algodões, apareciam enlaçantes, como dedos que abarcam e afagam. Réstias de sol imprimiam pelo recinto os seus topos acesos, grandes olhos de luz, pequenos caprichos de claridade. Um cheiro de mato subia da esteira, nova, sobre a qual se estirava um par de sandálias de marroquim, com o jeito do pé. Fechou sobre si a porta, cor de folha madura, francate esvazada na parede branca. Armou a rede. E dormiu.

Antônia veio mostrar-lhe o Meirinho, jomalzinho picaresco e jocoso, que trazia umas chavascadas no Visconde; porém recuou, por não acordá-la.

Quando o desembargador foi para o jantar, disse, como costumava, as novidades do dia; entre as quais a nova de que seguira para Baturité um oficial, render o Centu, que tinha de ir para o Amazonas, dois dias depois, por ordem do Ministro, vinda por telegrama.

Cortando a carne assada, Mariinha, ao escutar esta notícia, demo­rou um pouquinho o garfo à beira do prato, baixando os olhos como se estivesse engolindo alguma coisa com dificuldade. Depois, voltando a si, pigarreou, e continuou a jantar com a maior calma deste mundo.

O pai entrou a enfatuar de elogios o nome do moço, almejando-lhe uma esposa condigna, possuidora de bens que garantissem-no contra a perseguição da sorte.

Gabou muito a carta que ele dirigira à prima, no sentido de atraí-la para o estudo sério das coisas.

"Se ele fosse outro, acrescentou, cuidava era namorá-la."

Aquele post-scriptum fatídico a Mariinha arrancara, para mostrar a carta ao pai, avançando que o papel rompera no abrir do envoltório.

Embarcava pela manhã, no paquete brasileiro, o Centu. Vivia agora numa calma feliz, tendo conseguido torcer o pescoço, como ele dizia, ao pintainho do amor. Concretizou, na excursão, vários conhecimentos. Gozou do supremo prazer de colher, comparar, deduzir, induzir, generalizar, formular princípios, lendo no livro da observação, fervilhando na natureza bruta. Indo para a bacia do Amazonas, que antegozo o picava, que cu­riosidade, que estremecimentos!

E Mariinha?

O desembargador, calculava que ele voltaria capitão do Corpo de Engenheiros, ao que o tenente objetava dizendo que era preciso ser trans­ferido previamente para o Estado-Maior de 1 ° Classe.

— Pois isso, pois isso! Hei de fazer valer os seus trabalhos.

— Vosmecê cuida ainda que, mesmo no Exército, voga o que mais age no desempenho dos seus deveres e no evoluir da sua vocação?

— Está bem, eu sei que tudo neste país é muito pela casca. É por isso que quem primeiro anda primeiro manja, contra o Evangelho, que diz que os últimos serão os primeiros.

— Pôr-se em evidência pela astúcia! frisou o moço.

— Pois sim! E estamos na lei da sabedoria: pomba e serpente.

— Esse consórcio é quase impossível, é contranatural.

— Pode ser até absurdo!

Enfim, seja o que for, não é motivo para desesperançar. Enquanto aprendo e trabalho, sou feliz. Navego sem pavor de naufrágios. Soço­brando, fá-lo-ei com frieza de marinheiro que nisso vê o seu fim natural. Entretanto, enquanto puder, deito lastros ao mar. Já comecei...

— Como já começou? Então se compara a um navio?...

— Sou um navio que largou carregado a todo o calado, de um porto, e atravessa o oceano, visando outro porto. Do Rio a Lisboa, por exemplo. Tudo é não deixar-me surpreender pela borrasca, nem pelas colisões, nem pelos parcéis.

— E então?

— As colisões, evito; ou afundará o menos avantajado. Os parcéis, a eles não vou porque conheço a navegação, e se for, me arrebento ga­Ihardamente.

— E a tempestade?

— Carga ao mar.

— E que volumes tem deitado? Diz que já começou...

— À medida que o mar se encapela (neste ponto o símile é imper­feito, o mar da vida, para cada indivíduo, vai embravecendo gradualmente, fatalmente, até o horrível ciclone da morte), vou alojando às ondas do es­quecimento, ou da abstinência, vários pequenos vícios e prazeres, e até alguns sentimentos...

— Bons ou maus?

— Se bons ou maus sentimentos, não sei.

O mais pesado de todos, que por um triz imerge o tombadilho, tanto pesava, foi isso... de amor...

— Hein, isso de amor?!

— Vosmecê não calcula sequer...

— Então isso leva ao fundo do mar?

— Avalie um negociante que se estabelece à fiúza de outro, assinando letras; entra pagando juro, sem liberdade, comprando ca­ro...

— Mas não é o geral.

— Ê o meu caso, e o de todos os moços pobres que são votados a um serviço como que nacional, cuja vida não pode encerrar-se no lar, que anseiam é por palpitar com um país inteiro, são um glóbulo de san­gue que tem que circular no organismo de um povo do coração à ponta dos cabelos e às unhas dos pés.

— Que imodesto que é!

— E pretensioso, não me faz favor.

O velho sorria pelo brando. No interior, estava contentíssimo com aquela franqueza bruta de soldado, confiante, decidido e bravio.

— Disto é que o Brasil precisa, filosofava, a fungar uma pitada. Com que não se casa, não é assim?

— Não. Eu mesmo hei de carregar a mochila, quero estar escoteiro para levantar acampamento ao primeiro toque.

— Admirável, admirável.

O velho passeava de um canto a outro da sala, sacudindo o lenço de tabaco.

— Sabes muito, meu filho, mas ignoras uma parte de ti mesmo. O conhecimento é um sol que se acende no cérebro. No ser, entretanto, há grutas onde ele não penetra nunca. Nessa gruta é a fonte das contradições. Sobem dela vapores que ofuscam inesperadamente, o sol se oculta, a luz decompõese em cores diversas, o ser parece outro, e o mundo chama-o contraditório. Mais tarde volta o clarão diuturno. Novas nuvens passam depois, ou demoram. E assim vai. O homem é como a nossa at­mosfera, meu caro, sempre a mesma e sempre variável, domínio do im­previsto, do problemático.

— Ora diga-me, senhor: esse grande amigo seu, esse Visconde, não se tem conservado refratário aos afetos?

O legista ficou em dúvida.

— Não tenho elementos para responder-lhe. Mas desgraçado da­quele que não é caroável a essa afeição, a esse sentimento primordial, candeia, roteiro, chave das puras delícias do espírito.

— Mas há tanto bruto que ama! exclamou triunfante o moço.

— O que quer dizer com isso de bruto? Em todo caso, destaque da massa humana os indivíduos privilegiados, e veja se a algum deles faltou essa afeição.

— Mas não quer dizer casamento.

— Isso agora... conforme.

— Qual conforme, nem meio conforme, confesse que venci-o!

Mariinha que apanhara metade da discussão, e compreendeu a mira das palavras do Centu, aquela obstinada pirronice, aquele torcer da con­versa para um só rumo, de caso pensado; tendo apertado a mão ao primo, e ido para a janela, não pôde assenhorear-se, e mal findava ele aquele o venci irónico, ela avançou e atirou-lhe, como se fora uma bofetada a um malcriado:

— Isto é ser bruto de mais!

Proferiu, ou antes gritou estas palavras como a cobra que dá o bote, e o moço ficou como se lhe houvessem abanado os queixos. Mudo e quedo. Cobarde.

Mariinha desapareceu ato contínuo pelo corredor, e o pai, caindo das nuvens, gritava-lhe: 'O que é isto!? O que é isto!? "seguindo-a, porém ela desaparecia vertiginosamente adiante dele, até que bateu-lhe a porta da camarinha. O pai ordenava que abrisse, ela soluçava de dentro.

Passaram os minutos, num forte palpitar de corações. O pai a pouco e pouco foi invocando o raciocínio:

— Dar-se-á o caso que...Santo Deus! Mas...eu não lhe vi indício al­gum de histeria!... Ela é sã como um abacate. Ah! Estes ladrões... estes canalhas se amam! Patifes, e me enganarem até aqui!

Um transporte de alegria relampeou-lhe. Estava descoberto o meio de aniquilar por uma vez a turrice da Fabiana, que queria à fina força ca­sar a adorável criança com o repelente politicão do Afrodísio. E, contra o natural dos pais que se abalam com a simples idéia de entregar sua filha a outro homem, achou conforto.

Tremente, sibilou pelo buraco da fechadura:

— Já compreendi, minha filha, acalma-te, e conta-me a teu favor.

Felizmente, rodava um carro na rua e parou na porta. O Centu, so­zinho na sala, veio à janela, e num longo suspiro restabeleceu a calma para o sangue. Como poderia encarar ao desembargador, que era um homem tão estouvado e ingênuo quanto fino, sem envergonhar-se?

— Ele compreendeu, por força! — cogitava o coitado. Olhando para o carro conheceu a tia, que apeava com a Antônia.

— Anda com isso, mulher! gritava a Fabiana, desenganchando do estribo o rabo da saia. Que lesma!... Oh, então você está aí, senhor va­lente capitão?

— Estou, sim senhora, respondeu da janela o Centu. A sua bênção. — Deus te abençoe, e te faça um general. Anda com isso Antônia! — Vou já!

Antônia, com um pé no estribo, segurava uma trouxa de sapotis.

— Deu muito trabalho apanhar, o lenço desatou-se todo e caiu tu­dinho no carro. Pode ser que tenha ficado algum, — e virando-se para o cocheiro, que fechava a portinhola: — Procura para ti, Joaquim.

— Este cá não vive dessas porqueiras, cá é carne e pirão, resmun­gava o moleque, fechando a tromba de negro ruim.

— Quase que não venho, minha gente, exalava a Fabiana, subindo, os três degraus, pegando o vestido na frente e arrepanhando a cauda. A Dona Porcina é tão agradável, e a Jacarecanga é tão longe... Safa! Estou como se viesse a pé... O carro sacode tanto... Osorinho, é preciso comprar-se outro carro!

O Centu e o Osório vieram recebê-la na porta. Ela tomou para a ca­marinha, ia desapertar-se, e meter o pé na chinela; o sapatinho de cor­dovão era uma luva, mas arrochava como os trezentos.

Antônia correu a guardar os sapotis na despensa, que estavam de vez; os poucos maduros viera comerricando com a madrinha, na viagem. E ficou o Centu de frente com o desembargador:

— Sim, senhor, vosmecê tem uma grande habilidade.

Esta frase, dita pelo manso, com um certo ar de apoio e superiorperspicácia, puxou ao Centu o inevitável sorriso, irreprimível, amarelo, de quem não acha termos para escudar-se, tão flagrante está a verdade.

— Sentese na cadeira de balanço... Amanhã vosmecê embarca... E diga: promete escrever-me?

— Sempre.

— Tanto basta. Louvo que sustente a sua maneira de pensar. É o melhor caminho de se mudar de idéia; para melhor, bem entendido.

— Agora é que eu rio francamente, exclamou o mancebo, de um salto, pondo-se em pé, tomando de novo as rédeas do coração: Eu? Mu­dar?

E soltava uma gargalhada seca.

— É isso mesmo! gargalhava também o desembargador. Você? Mu­dar? E ria irónico, e riam ambos, pondo no canto do olho uma pontinha de brejeirice.

— Você quer saber de uma coisa, senhor futuro Capitão de Enge­nheiros? Cheguemo-nos às boas, e vamos a um gole de vinho..E erguendo-se de mãos no bolso:

— Oh Ângela!

— A praça rendeu-se, — entressorriu o oficial, agitando o balanço da cadeira,— com armas e bagagens.

Defronte, nos fofos de lã que encobria o mármore como as rendas a alvura de um seio, empinava-se o retratozinho da Maria das Dores, em busto, na doçura dos quinze anos já passados. O olhar fito da fotografia molestou-o, e fê-lo mudar de cadeira, protestando contra o sol que batia nas paredes do Nascente.

Entrou a brincar com a corrente do relógio. Estava outro. Tendo feito sentir claramente ao pai de Mariinha o seu modo de ver sobre isso de amor, foi uma verdadeira vitória. Sentia-se mais de casa, despira todo o acanhamento. Absorvia-se no passeio ao Amazonas. Donzela que ia ao primeiro baile. Daí, cobria a tudo com um dourado sorriso de felicidade, todo rosas, limpidez, candura, esperanças. Mil cegos pedissem-lhe es­molas naquele dia, que aos mil daria tudo, tamanhos lhe eram a sensi­bilidade e os receios. Acentuavam-se-lhes os traços, e a fala fremia e ofe­gava nos pontos e vírgulas. Mariinha ficava. A culpa não era dele, que resolvera, para ser forte, dedicar-se ao exclusivismo da Ciência. Não há como um sábio, embora rombo de sentidos, de hábitos e de paladar.

No insondável de sua alma, o Centu ficou lisonjeadíssimo com a cena que dera a prima; e cada vez se tornou mais sobranceiro, por jul­gá-la mais cativa, completamente conquistada, de todo entregue. Já não havia ali as seduções de um problema.

Angela depôs a bandeja com uma garrafa e cálices, e o desembar­gador serviu.

No momento em que o Osório entregava-lhe o cálice, o moço fez uma pergunta, passando de um pólo a outro, com uns ares de mulher quarentona e curiosa:

— Ora, meu tio, diga-me lá, quem é essa Dona Porcina, donde veio a tia Fabiana, e de quem muito ouço tratar?

— É... é... proferia o outro baixinho, e parou. Relanceou o olhar pela sa­la como se faz nas confidências de teatro; e debruçando-se por cima do moço, fazendo, com a mão arqueada, sombra à boca, sibilou cochichando:

— É uma viúva muito estimada pelo Visconde.

— Mora...

— Em um sítio esplêndido, na Jacarecanga.

— Mas então, como é que...

— Muito simples. Tua tia procura freqüentar todas as pessoas que o Visconde preza. É um jogo. Aquilo é política como os seiscentos! — Mas que vantagem poderá ela...

— Meteu-se-lhe no miolo casar a filha com o Visconde! Aí está. O velho deu uma volta pela sala, e, como se faz nos romances, reparou minuciosamente o efeito de suas palavras no sobrinho afim. O rapaz proferiu simplesmente um arregalado:

— Caramba! E mordeu os beiços pondo-se de pé.

— É certamente um grande enlace, não há dúvida nenhuma. O desembargador vai ser trunfo.

O velho observa-o de braços cruzados.

— Muito obrigado. Mas fique sabendo que se isso acontecer, é por elas. E não preciso ser trunfo. Nesse julgado faço de Pilatos.

— E a sua candidatura à senatoria? sorriu o moço, em tom filial e confiado.

— Disso já perdi a ilusão. Estou voltando ao meu tempo da acade­mia, sabe? em que acastelava pensamentos de justiça, de hombridade, de independência, supondo que amoldava os homens a mim (porque cada qual faz o mundo à sua imagem e semelhança).

— Os moços querem ser palmatória do mundo...

— Depois, caí na babozeira da vida prática; os interesses da política estragaram-me completamente, fui deputado, fui presidente de província, fui grande, e finalmente queria cronificar a minha grandeza: ser senador, babau! Já passei dos cinqüenta, e nada! Ultimamente, apareceu-me esse Visconde. Supus que fosse uma adivinhação de minha mulher, que tem a feminil pretensão de ler no fundo dos corações alheios... Finalmente, o nosso homem é um mercador, como eu fui, como todos os partidários... Você sabe que isso de justiça pública, é sempre obra humana, sujeita aos caprichos e paladares. Houve meio decente de aliar-me ao Visconde, pois sim, aceitei. E ficou ele com mais um desembargador na Relação.

— Bravos, é de uma franqueza a meu modo.

— Estou na fase. Não tenho, porém, mais interesses, nem propensões. Disponho-me a seguir só. Tenho de que viver, estou livre de parentalha arranjável. Enfim, vou acompanhando ainda o Visconde, mera formalidade; um belo dia rôo-lhe a corda. Depois, a Fabiana gosta que eu assim proceda; e ela apesar de seus defeitos de raça e de educação, é todavia a pessoa que me ama sinceramente, que me sustenta o espírito nas crises de desânimo, ela enfim é sempre a minha mulher.

Na noite do casamento, disse-lhe:

"Faça de conta que sempre fomos casados, e todos os dias, no cor­rer dos decénios, julgue sempre que está casadinha de novo. Assim a felicidade não nos abandonará, decerto."

— Mas isso é humano?

— O divino é apenas um caso particular do humano.

— A razão é que não casaram somente homem e mulher, senão a sua natureza com a dela.

— Diga-me lá— irrompeu novamente o Osório, mudando de ar: — O que é o Diabo? É Deus em divergência consigo mesmo. O que é Deus? É o homem concebendo a suprema força. O que é homem?...

— Não sei aonde me quer levar...

— Quero lhe dizer que a Ciência não sabe o que é o homem! Responda! Penetre nas diversíssimas organizações que se embastem do passado até hoje, como farinha de nebulosas, nos mistérios do íntimo, no mundo psíquico, e tire uma fórmula geral.

— Mas a que vem...

— A que vem? A nadà, é que você parte amanhã, e eu não sei se o verei mais! Há só um recurso infalível de não transformar a nossa afeição em motivo de dor. A força do raciocínio. Pois é essa força que assegura a paz do meu lar. Você ainda anda de sunga de alçapão! Vá para o seu Amazonas, é um futuro brilhante. Estude, engorde o seu espírito. Fique certo de que nesse pau tem abelha. Não surpreenda-se quando apare­cerem os favos de mel, e o zumbir de insetos a aferroarem-no.

— Misteriosas palavras! Isso é filosofia indígena?

A Fabiana gritava lá de dentro:

— Oh seu Doutor Osório, deixe de arreliar o menino!

Pelas cinco e meia foram jantar. Maninha não compareceu. O pai amparou-a contra as exigências fulminantes da Fabiana que alegava re­petidamente gente moça não ter juízo, que não dizem o que sentem cui­dando bigodear aos velhos, que devem é levar muita peia, que se enga­nam aos pais, a Deus não lhe botam poeira nos olhos; e por aqui assim, esvaziando uma grande pipa de bílis.

A coisa é a Fabiana estar com os seus azeites, e sentir a mínima contradição a uma vontade sua. Não saiu-se como ideara na visita a Dona Porcina; pois que... essa senhora não perdera ainda os seus sonhos a Viscondessa...

— Mas é o que tu não pegas, amargava consigo a Fabiana. Tam­bém amava!

Quem pagou o pato foi a Mariinha. Sim, porque nessas pessoas de bilis atroante, a causa do frenesi, — é como o ferro candente lançado pelo ferreiro à tina de água, e que faz efervescência na superficie, ou como a gruta do álveo que produz o perau nos rios, e fica fora das vistas. Na monstruosa engrenagem do rancor, do ódio, do amor próprio contrariado, a roda motora fica inapercebida na sua insignificância. Parecia que a fú­ria proviera da filha, talvez a própria Fabiana entendesse isso; mas é que esta senhora havia encontrado em Dona Porcina uma frieza disfarçada, e na voz e na pinta do olho a significação de uma repulsa. De feito, a Senho­ra Dona Porcina vivia segregada do convívio das famílias, e fez-lhe espécie a estranhez daquela visita; verdade é, que se conheceram em outros tem­pos, mas daí para cá o mundo virou, revirou e tornou a revirar. Por me­xericos e enredos Porcina já andava a par dos projetos da mulher do desembargador, e portanto, barateou-lhe muitos agrados, mas que agrados!

As mulheres quando se encontram se beijam, mas os homens que ouvem aqueles regalados estalidos sorriem e comentam, sabe Deus o quê.

Fabiana, invadindo o sítio da outra, e chegando à habitação, edifi­cada entre os cajueiros, abriu um grande ar de pasmo topando a Dona Porcina, e fingiu ter-se iludido:

— Ah, minha querida, desculpe... eu me enganei... ia para o sítio do Dr. Barbosa, que é neste correr...

— Não há de que, Dona Fabiana, ora esta, agora entre e descanse, faça favor.

E pronto. A Fabiana estava introduzida. Serviu-se de garapa de cana; foram ver o riacho, percorrer o sítio, e bastou.

A dona da casa pressentiu que aquela princesa dos sertões ia ali era farejar o rosto do Visconde, e com acinte feminil, dava a entender, tanto quanto permitisse o trato com uma senhora afidalgada, a amizade que o titular lhe dedicava. Só faltava dizer:

— Ele e eu nos queremos! A senhora chegou tarde com a sua filha!

Fabiana tinha, por conseguinte, pedra no sapato. Ora, como quando uma pessoa está de mau humor, embora descarregue-o sobre uma dada criatura, a gente sempre toma para si uma parte daquela zanga — é o caso de estar bem consigo e mal com todos —, o coitado do Centu, ainda por a vítima ser a Mariinha, ficou pelos ares. Cada palavra áspera que a mãe botava contra a filha, era um aperto no coração dele. Mais uma verificação de que havia um quê é de inextinguível entre as duas naturezas, dele e da menina. Mariinha não apareceu, e nem era possível. Por seu lado, maldara que a mãe havia descoberto o namoro dela com o Centu.

A noite, porém, foi à sala. Quanto à cólera brutal da Fabiana, tendo aparecido o Afrodísio, foi água na fervura.

Fabiana abriu-se toda, como as folhas do mata-pasto ao sair do sol, e desfez-se em carícias para a filha, e para o sobrinho, chamando Oso­rinho ao marido, e espanejando gostosas gargalhadas de sertanejo.

Aquela mulher tinha consigo uma qualquer morrinha, alguma coisa no interior, assim como a semente de uma doença vagarosa e fatal, um broto raquítico hoje, amanhã viçoso, e vice-versa; pelo menos assim en­tendia o marido. Um curandeiro matuto que a conhecesse, diria logo na sua experiência, franzindo a cara, com um ar magistral:

— Seo compadre! Neste pau tem formiga!

Apartados para a janela, em que a Fabiana atirava a filha a conver­-sar com o Visconde, o Osório e o Centu discutiam o caso:

— Ela não era assim — dizia o marido. Receio que venha dar em alienação!

— Qual!

— Está emagrecendo...

— Muito pouquinho. São fatalidades da carne. Pode ser que seja a morte que comece a brocar o seu roçado. Se assim é, não há tolher. Já fé-la examinar por médicos?

— Ela mesma os chama. Quando lhe dá na mania queixa-se de quan­ta moléstia há no mundo!

— E o que eles dizem?

— Receitam, e não fazem diagnóstico positivo. Também eu não te­nho dado cavaco.

— Já sei, é vítima do grande mal do século.

— Hein?

— Da nevrose.

Aqui ao desembargador subiu-lhe sangue às orelhas, e dando um passo para trás, largou um prolongado:

— Com efeito!...

O moço ficou como se houvera dito uma grande asneira.

— Pois seu Centu, você entoa com essa troça das outras terras, sem mais aquela?...

— Está dito. Minha tia é vitima de nevrose, o grande mal do século.

— Prá que vocês hão de ser embusteiros! Seo Centu, o grande mal do século é a Cavilação. Fabiana é uma grandíssima cavilosa, como qua­se todas as mulheres educadas com quindingues. Se receio pelo juízo dela, é porque seu bisavô morreu doido, que você bem sabe disso...

Podia que fosse essa a última noite que o Centu passava entre aque­las paredes, podia que fosse a derradeira vez que o seu olhar modesto se abrisse, como a estrela na noite, imerso, como a papa-ceia com a din­dinha Lua, no disco luminoso que irradiava da calma simpatia da Mariinha.

A menina estava uma tagarela. Mesmo com o Visconde, — por quem nas tredas horas do ciúme, do suplício da carne, sentira brutal e vingativa inclinação, mas que a sua nobre natureza repelia, — falava por quantas juntas tinha. O que ela queria era fazer a sua voz, as suas idéias, os seus pensamentos, setarem pelos ouvidos do Centu, como a flecha do índio atirada para o alto e que desce ao alvo certeira. Assim como, com a me­nina dos olhos, dominava-o por um longo beijo das duas pupilas, assim quisera com a voz, e com o pensamento. E o mesmo fazia ele.

Cantou o Vorrei morir. Baixinho, como só para o oficial, impressio­nou-o. E ele erguendo-se, para ela, dizia galanteando:

— Prima, isso de querer morrer, embora no mês das flores e das aves, já se não usa. Não existe mais a morte. Vivese eternamente quando...

E disfarçando a folhear o livro da música, aberto na estante do piano diante dela, como à procura de uma peça conhecida, acabou a frase, só para os dois:

— Vivese eternamente quando se ama!

Que sorriso com que a moça aureolou esta oração nos seus lábios mudos de pejo e de contentamento!

Arrulhou ainda uma modinha brasileira, e então ao Centu subiu-lhe mesmo o sangue indígena. Vibrou com as paisagens pátrias, agiu com os nossos músculos, cismou com a nossa modorra, palpitou com o nosso coração singelo e ardente, puro e cioso, doce e bravio, luminoso e tonante como as fecundas tempestades do inverno, coração suicida que acaba por arrebentar com as hipertrofias; e no gemido consolador daquela can­tiga em música e língua nossa, naquele volteio sensual e queixoso, o Centu sofria !mpetos de ajoelhar aos pés da amada, embolar-se com o gato friorento debaixo de seus pés, viver como pulga nas pilosidades daquela epi­derme, ser uma das suas chinelas, um ponto das suas meias, uma dobra da sua camisa, um biquinho dos seus seios, uma gota do seu sangue, uma bossa do seu cérebro, um cabelito daqueles braços, uma palma da­quelas mãos que quando tocavam pareciam ter a alma nos dedos!

E quase que se levanta e diz ao pai, implorativo e decidido, torcendo o boné entre as mãos nervosas:

— Meu tio, eu já não embarco!

Embarcou sem despedir-se. O Osório foi do parecer que não era bem aconselhado ele fazer os seus adeuses à Mariinha, porque, a mão de uma pessoa amada que se despede aperta umas certas molas do ín­timo, como em certas bonecas, e o sentimento grita. Bem sabia que a Fabiana destinava a sua bonequinha ao Visconde. Que ele, Centu, nãose arreceasse disto, mas que não era curial chofrar assim a Fabiana com uma pedra inesperada!...

— Asseguro-lhe que a sua tia nem se apercebe da sua benquerença! Ela vê as coisas pelo seu próprio pensar. Está certa de que a menina e o Afrodísio se amam!

— Meu tio, quer saber? Antes venha a ser como ela deseja. A falar franco, hei de envidar tudo por apagar essa candeia que se me ateou na alma à socapa.

Osório ria cínico:

— Seja. Mas o que eu não quero é a minha Fabiana contrariada...

— Nem eu tampouco, meu caro senhor.

— E quanto a desarraigar ou não isso de amor, digo-lhe que a erva é de caule subterrâneo, é como capim-gengibre. Tenho muita confiança é numa coisa: vocês ambos são educados, e têm o sentimento do ver­dadeiro, e não são organizações pervertidas. Confio na hélice e no leme dos dois paquetes, nas impulsões das duas naturezas; se atraírem-se, melhor, se afastarem-se, melhor.

— E que idéia minha tia fará de mim se eu não for tomar-lhe a benção?

— Vá às sete da manhã. Levarei a menina para a missa de Lourdes; tem de ir, que é sábado.

Foram para bordo às duas da tarde. Daí, o Centu viu-se no meio dos camaradas, uns da oficialidade do batalhão, outros da rapaziada pai­sana, que se lhe tinham afeiçoado, e os companheiros de comissão, boa troça do tempo escolar. Tudo nele transmudou realmente, da terra para o oceano. Quando o escaler, à forte impulsão dos remos, estonteava em cima da onda, ele erguia o busto altaneiro, o mento para o ar, — como o cão escapo do outro, e que adiante, livre, na primeira eminência, alça o focinho e late por despique e desafogo. Agora ia pertencer exclusiva­mente ao seu verdadeiro amor: à Ciência, palavra proferida de boca cheia.

"O passarinho que comeu o xerém e o queijinho da gaiola, cuidado por mão amorosa e vigilante,quando foge, — pensava o Osório, silencioso, sentado ao fundo —, tem perdido muito da boêmia das aves, e não tem o mesmo vigor no bando."

Mariinha em casa, estava prostrada. Inventou um estalido. E então, Santo Deus, a sua dor podia gemer alto. O Centu ia naufragar... Quando visse unicamente mar e céu, e no tenebroso da tempestade, aí o vapor afundava... Ela tapava os olhos e dava um grito. Considerava-se viúva. Ah! tornaria ao Colégio, ia ser Irmã!... Mas a congregação não aceitaria mais, ela tinha agora consigo, como a louça velha, as eivas do calor mun­dano impregnadas de ranço. A Fabiana trazia-lhe bochechos, e ralhava Porque ela repelia o remédio:

— Mamãe eu sinto uma agonia no estômago... não sei se engolir isso...

— É só para tomar na boca, e não se engole, filha! Arre, com os diabos, valha-me Deus! Tem efeito vomitivo. Agora, arranja-te! — Pois deixe estar, mamãe, ora esta! respondia a menina chorando,com mágoa.

Era o que mais doía-lhe dentro: não ser compreendida pela mãe, estar sob o jugo daquele animal tenaz, e desapiedado, com doçuras e crueldades de tirano. Figurava a Fabiana como certos araçás, que tem um lado maduro e doce, um pedaço verde e outro pedrado, e outro já podre. Antes não a tivessem posto no Colégio, se queriam-na inteiramente moldada ao sabor da mãe.

Mas não. Permitiram-lhe aprendimentos que lhe germinaram gosto próprio, alçaram seu pensamento a alturas que a mãe não divisaria nunca; e agora, forçarem-na ao vôo rasteiro? Antes bodocar de uma vez a an­dorinha, e vê-la morta, do que atirá-la de penas aparadas rojando no pó.

No dia seguinte, à noite, houve terço com alguma solenidade. Acen­deu-se uma vela do Santo Sepulcro, de muitos anos, já com a cor e as manchas peculiares da cera antiga.

À tardinha, teve de arrumar-se de novo o oratório, para hospedar mais uma imagem, — Santo António, chegadinho do Porto. Mariinha, de queixo amarrado, e Antônia, auxiliavam de bom grado à Fabiana. Gostavam de pegar naquelas pastas de tinta viva e doiradas de rendas e sal­picos de flores, naqueles nariguinhos, boquinhas e olhos de vidro; tinham ímpetos de apertá-los, ou de beijá-los em cheio na cara. Riam dos mal­feitores, e admiravam os bem acabados:

— Este santo, sim, faz milagre... Mas aquele?... Bem queria!

E soltavam muxoxos. Riam como os preás. Fabiana, com os seus óculos, muito aplicada na sua obra, não prestava-lhes ouvido. Lá uma vez ou outra passava um pito em ar de gracejo. Estava de um humor admirável, o que era uma feliz compensação para o machucado coraçãozito da Mariinha.

Fabiana apelidava o Santo Antônio: o seu namorado. A imagem, numa caixa de folha envernizada à água-forte, sob o reflexo argênteo do flandres, estendia-se como um anjinho no seu caixão, ainda cheirando a copal, entre um recheio de fitinhas de papel, à espera de que a arran­cassem daquela modorra. Vênus de burela surgir das espumas. Tinha palmo e meio de altura, fora o resplendor. Antônia apanhou o santo num abraço reverente, e pô-lo de pé sobre as suas coxas, sentindo-se bem ao contacto transfigurado e cheio da peanha. A cabeça do amoroso frade e legendário pregador das turbas, muito redondinha, naquele momento, saía do sono de uma viagem em pacote, para fisgar o olhar matreiro nasi feições da loira... Enfiaram-lhe, por um buraquinho do sincipúcio, o resplendor, de prata, aberto profusamente em forma de cauda de pavão. Ai que gorducho e engraçadinho que era!

Aquele nunca sofrera de moléstias. Vê-lo é ouvi-lo. O burel, uma sombra. Semelhante ao traje grosseiro das donzelas do campo, em nada, apouca, ao contrário, faz destaque ao corpo cetinoso e túrgido que se adivinha.

De um embrulho de papel de seda, Mariinha desenrolava o Menino Deus, um pimpolho de carne, fortemente cheirando a verniz, estremecendo em um riso íntimo de infância, espernegando como em travesseiros de cetim e alfazema:

— Ai gente, olhe a pimbinha dele, mamãezinha! gritou ela, com que Antônia ficou muito escandalizada, e até repreendeu-a:

— Dorzinha! — exclamava esta, como se acontecera alguma des­graça. E indicava com um beiço e um olhar severo o respeito devido à Fabiana. Esta, porém, num riso úmido, entrou a pespegar enormes beijos no pequenito, dizendo que era preciso fazer-lhe uma camisinha de cam­braia com bicos de ouro; e falava como bebê, em tatibitate, com efusões de mãe. Das Dores sentia uma doce inclinação pelo pequerrucho. Antônia ardia por fazer-lhe cócegas, e por ficar sozinha no quarto, naquele cheiro de homem que lhe saía dos próprios sentidos, ante o Cristo pre­gado nu e musculoso na cruz, lá ao fundo do oratório, ante aqueles san­tos varões barbados.

A lamparina, em um copinho roxo,espalhava na toalha odorante a roseiras, um clarãozinho violáceo. A toalha, ao gume da pesada cómoda, caía em cachoeira de rendas e babados, por cima do frontal de damasco eriçado ao de leve pelos puxadores das gavetas, biquinhos de peitos ocul­tos.

O dia poeirava ali, pouco difuso, parco, sobras anêmicas da perenal harmonia exterior. No campo das paredes bruxuleava um paraíso de qua­dros bentos, bem-aventurados de diversas condições e idades, mendigo até rei, donzela até messalina, salteador até pontífice, operário até apóstolo; dentre todos ressaltava o Batista, metido numa pele de carneiro, com energia desusada, a desfraldar no tope do cajado a bandeira do Ecce Ag­nus Dei; revolucionário, selvagem, puro, dos lábios voando-lhe a sublime palavra do sábio e do poeta; e pobre, e nu, e sóbrio, era, — entre o luxo e a ingenuidade de seus colegas de Empíreo, ali presentes na parede em grande auréola em torno da cômoda, — como a casca de uma árvore frutífera que alevantava o porte monstruoso dos seus braços por sobre a casquilhagem de um jardim de flores ociosas. Mariinha ficava horas de mão no queixo a admirá-lo sem o compreender.

Fabiana pediu mais claridade para ver bem o efeito da nova arru­mação das imagens no oratório. Antônia, mais que depressa, escancarou as janelas da sala, e as portas do quarto; mais uma pouca de dia entrou, e também o vento, que atacou de súbito a um molho de palmas bentas que pendia de um armador, e as pontinhas da palha encarquilhada ro­çagaram no áspero do caiamento com ligeiros pruridos de lixa. Fabiana sentava-se num baú grande, envernizado, de aldrabas de latão e tendo na fechadura uma penca de chavinhas luzentes; cansada, deixando-se escorregar até à parede, cruzava os braços desleixadamente, apreciando o serviço feito. A saia arregaçara um bocadinho, por modos que os olhitos azuis dos santos perceber-lhe-iam a canela reluzente, com uma roncha de chaga antiga.