A Conquista/XV

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Uma tarde, terminado o trabalho da redação, Anselmo descia a rua do Ouvidor quando se sentiu agarrado por um pulso formidável. Voltou-se impetuosamente e deu com Luiz Moraes, sempre carrancudo:

— Onde vais?

— Não tenho destino. Estou arejando o cérebro.

— Dize-me cá: Fortúnio falou-me de uns contos teus que foram rejeitados por certo jornaleco.

— Sim, não são propriamente contos: são umas ligeiras fantasias. Por quê?

— Eu te digo. Vamos aqui um instante. Tenho de esperar o Artur. Já conheces o Artur?

— De vista.

— Excelente rapaz e magnífico poeta. Seria um dos primeiros líricos americanos se, por vezes, não rebaixasse a lira a violão zangarreando chulas para o populacho. Um poeta não deve descer à multidão, a multidão é que deve subir ao Parnaso para ouvi-lo. Tomarias a sério Petrarca ou Musset tocando na orquestra para ritmar o passo bambo de uns tantos saltimbancos? Não, por certo. A arte é hierática. O poeta é sacerdote: oficia para o coração e o Artur não é só um poeta, é um grande poeta: natural, correto, suave e brilhante. Acho que não devia escrever para o teatro. Ficasse nos sonetos.

— Il faut vivre, mon ami.

— Ora! Il faut vivre! E eu? Não estou aqui? E Deus me livre de escrever uma linha para o teatro, não que deteste a literatura dramática, mas não temos intérpretes. Um poeta não deve descer à imbecilidade erótica do maxixe. Faça versos honestos, escreva poemas, isso sim. Vamos tomar alguma coisa.

Entraram na Maison Rouge. A casa era sombria e lúgubre como uma adega. Estava deserta; tomaram uma das mesas e Anselmo, puxando uma cadeira, disse em tom sentencioso:

— Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, disse o Cristo. Ao povo dá ele as revistas, à Arte dá os esplêndidos versos que tanto exaltas.

— E com razão porque são admiráveis. Mas eu fico indignado quando ouço um bom verso estropiado por um palhaço. Um alexandrino na opereta! Sabes que me lembra? Um leão das montanhas com a sua juba dourada, virando cambalhotas num circo ou correndo cavalgado por um macaco. O verso alexandrino é nobre, fez-se para os lábios de um Leconte e não para a boca desdentada de um histrião de feira.

É natural que a Sarah recite as estrofes do grande "Impassível", mas um clown que declamasse Bhagavat faria estourar de riso um frade de pedra. Senhor, poeta é poeta! Só então o Moraes viu que o caixeiro estava de pé, junto à mesa, esperando ordens: Homem estavas aí...? Está bem; não perdeste o teu tempo, sempre ouviste alguma coisa aproveitável. Dá-nos cerveja.

E, cuspinhando, continuou:

— Tenho dito ao Artur: Que diabo! Tu que tens tanto talento por que não deixas essa borracheira de teatro? Escreve versos, que os fazes admiráveis, lida com a tua musa delicada e abandona de vez esse rancho de cabotinos... Mas o homem está viciado. O escritor habitua-se com o meio que o aplaude e, para o não perder, vai cedendo à larga, até que um dia nivela o seu espírito com o da gente ignóbil e adeus! Foi-se! Perdido. E como o homem que se vicia com a morfina. Há glórias afrontosas, eu penso assim. O Artur é homem para ser aplaudido por nós, e prefere ao nosso julgamento o barbarismo idiota das platéias. Vício.

— Mas que há de ele fazer se os nossos teatros não aceitam peças literárias? Consta-me que ele tem uma tradução magnífica de Molière, em verso.

— Uma não, várias.

— Então...

— Mas escreve revistas.

— Para ganhar.

— Faz mal! Um poeta como ele não transige.

— Mas... E sobre os contos?

— Ah! Sim. Vamos fundar uma revista literária. Temos aí homem que está entusiasmado e quer tentar a aventura... Vai ganhar dinheiro, afirmou o poeta torcendo os fartos bigodes. Estamos resolvidos a trabalhar de graça nos primeiros tempos, mas depois ele há de entrar com o cobre... O caso é este: Resolvemos, o Artur e eu, fazer um jornal novo, com idéias novas... Nada de antigualhas, e queremos arrebanhar todos esses rapazes que andam por aí cheios de talento, mas repelidos, porque ninguém quer tentar a experiência. Aqui é assim — só têm talento os de um certo grupo da rua do Ouvidor. Ali estão os romancistas criadores, os poetas incomparáveis, os mestres da crítica... Uma súcia de bestas que vive num elogio recíproco, escancarando as mandíbulas em hiatos encomiásticos, ao coxear dos versos cambaios ou ao chirinolar do período fanhoso e vazio do primeiro mu que zurra. Uma cáfila! Vamos cair sobre a súcia a golpes de talento. E havemos de desbaratá-la, porque não vale nada. Gente que não lê, gênios sem sintaxe, águias com penas de ganso. O Artur está disposto a começar a razia. Vais ver o estouro e eu quero os teus contos.

— Pois não.

— Publico-os e fico à espera da crítica. Também se vier algum, dou-lhe tamanha tunda que ele nuca mais se mete em coisas de Arte.

— Que título tem a revista?

— Vida Moderna. Vai sair magnífica, hás de gostar.

— Você e o Artur?

— Eu e o Artur.

— Pois trago amanhã os contos.

— Quantos tens?

— Cinco ou seis.

— Pois traze todos amanhã e vais ver como se desmantela uma igrejinha. Conto com pouca gente, mas sou como Gedeão: nada de fracos na falange, nada de exércitos de Xerxes — um pugilo de espartanos. Eles lá têm gente a valer... Mas que gente! Enfim, trazes amanhã sem falta?

— Sem falta.

— O jornal deve sair no sábado.

— Trago amanhã.

Anselmo ia levantar-se quando apareceu o Artur. Gordo e sangüíneo, o rosto largo, expressivo, apresentava-o como um perfeito exemplar dos filhos da Provença dourada do Brasil, que é o Maranhão, terra de sonhadores, onde as lendas pululam e a poesia é a linguagem comum dos que vivem nos campos largos, à grande luz do sol, ou ao pálido luar sem névoa. Os olhos vivos pareciam guardar ainda um pouco de cintilação dos dias equatoriais, a fronte vasta, os cabelos negros, violentamente atirados para trás, reluzindo com brilho próprio. Sentou-se acaçapado, olhando por cima das lentes do pince-nez de tartaruga que lhe escorregava do nariz. De quando em quando erguia a cabeça com ímpeto, como se o ar lhe faltasse, com a mão espalmada derreava os bigodes ou alisava os cabelos. Moraes balançava a perna, passando o índex pela mesa.

— Então?

— Aqui estou. Que há de novo?

— Está tudo feito.

— Falaste ao Lombaerts?

— Para quê? Pois ele não te disse que podíamos mandar originais?

— Sobre o formato do jornal, sobre a escolha das gravuras?

— É ilustrado? — perguntou Anselmo que se havia conservado calado.

— Ilustrado. Homem, vocês não se conhecem ainda.

O Artur encarou Anselmo.

— Anselmo Ribas, foi companheiro de casa de meu irmão.

— Pois não. Trocaram um aperto de mão.

— Vem trabalhar conosco, disse o Moraes, acrescentando: Tem talento. Mas vamos ao caso. Estás disposto a abrir luta?

— Acho que não convém.

— Ora! Não convém... Mas, seu Artur, nós havemos de deixar que um bando de imbecis viva por aí, com muita empáfia, inculcando-se diretor do movimento intelectual? Sujeitos sem valor, rimam baboseiras e escrevem uma prosa mais chata do que o diabo?

— Que temos nós com isso?

— Que temos?! Se não aparecer um homem de coragem que se ponha à dominação da grei dos turiferários ficamos reduzidos a quê, faça favor de dizer, a quê? Não, senhor: vou ser implacável. Se tivessem talento, muito bem, mas são todos uns nulos, sem originalidade, sem estilo e pretensiosos como tudo. Chefes...! Ora pelo amor de Deus!

— Mas, Luiz, eu não te entendo. Combates agremiações literárias, achas, e com razão, que a coterie esteriliza...

— É indecente!

— É indecente, e alicias um grupo, organizas uma coterie, respondes ao mal com o próprio mal. É esquisito. Vamos trabalhar sem idéias preconcebidas; nada de lutas. Para que nos havemos de indispor com os rapazes que não nos fazem mal? Não há razão...

— Pois eu rompo! E começo pelo chefe: derrubado o bonzo vem abaixo o pagode. Seu Artur, eu não sou literato de catálogo — estudo e não ando por aí a apregoar que os meus versos são os mais belos da língua portuguesa e aqui ninguém os faz melhor, nem aqui nem lá... nem lá! Entanto estou calado, não ando a esmolar elogios. Se aparecem artigos nos jornais a meu respeito são escritos espontaneamente pelos que se impressionam pelo meu verso. Por que não fazem eles o mesmo? Não! E um nunca acabar de elogios, é um Te-Deum laudamus que não tem fim. Rompo! Rompo e esbodego aquilo tudo!

— Faze o que entenderes: eu não concordo.

— Pois concordo eu.

— Ah! Sem dúvida: hás de concordar contigo. Mas vamos a saber: já tens o artigo?

— Que artigo?

— De apresentação?

— Qual artigo de apresentação: digo duas coisas: os intuitos literários do jornal e nada mais.

— Pois é isso.

— E tu?

— Eu dou a crônica, um soneto...

— Podias dar um trecho da tua revista.

— Como? Pois não te cansas de dizer que devo abandonar esse gênero e queres dar, no primeiro número do jornal, um trecho da ignomínia?

— Perdão, eu digo mal das revistas, mas elogio incondicionalmente o teu verso. Aquele monólogo do Prólogo é um primor. Não concordo com as cantorias, isso não, mas dou o justo valor à obra da Arte.

— Bom, estamos combinados.

— Perfeitamente.

Artur voltou-se para Anselmo:

— Em que jornal está escrevendo?

— Na Gazeta da Tarde.

— Faz uns folhetins aos sábados. Tem talento, mas abusa muito do adjetivo e tem a mania do Oriente.

— É a coqueluche literária.

— Mas vicia.

— Não, é um meio fácil de fazer vocabulário: ensaio-me no descritivo para ganhar vigor, colorido e ductilidade.

— Não, você é exuberante, é excessivo. Senhor, o ideal do artista deve ser a simplicidade. Há a simplicidade-pobreza, que facilmente se reconhece e há a simplicidade-distinção; e é mais fácil ser sóbrio do que ser abundante. A idéia só se manifesta num termo, o resto, versas. Mas vocês não entendem assim: para exprimirem a coisa mais comezinha deste mundo deitam abaixo dicionários, é uma mania. O Artur levantou-se: Já vais?

— Já, tenho ainda a minha seção.

— Então não queres romper?

— Não, não vejo motivo.

— Ah! Não vês?

— Não vejo. E uma agressão injustificável.

— Pois sim.

O Artur levantou-se, ofereceu a casa a Anselmo e, despedindo-se do Moraes, disse sorrindo:

— Então estás decidido a demolir?

— A arrasar!

Ainda o Artur não havia desaparecido, quando Anselmo se pôs de pé, resolutamente:

— Adeus! Não me posso demorar mais. Tenho um amigo à minha espera.

— Quem é?

— O Estêvão.

— Que Estêvão?

— O pintor.

— Ora! Deixa o pintor, vamos conversar.

— Não posso; e já vou tarde.

— Que horas são?

— Três e meia.

— Chii! Adeus! Até amanhã. Olha os contos.

— Não esqueço.

Saiu apressado porque, efetivamente, prometera estar às três horas com o pintor para ver a sua última composição.