A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XVIII

Wikisource, a biblioteca livre

Encontram-se os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude. No primeiro compartimento são punidos com açoites pela mão de demônios os alcoviteiros; e entre eles Dante reconhece Venedico Caccianemico e Jasão. No segundo jazem em esterco os aduladores e as mulheres lisonjeiras, entre outros, Alessio Interminelli, de Lucca e Taís.

TEM o inferno, de rocha construído,
De férrea cor, de muro igual cercado
Um lugar: Malebolge o nome havido.

Lá no centro do plaino inficionado
Se escancara grão poço, amplo e profundo:
Direi a compostura em tempo asado.

Espaço em torno estende-se rotundo
Entre o poço e o penhasco pavoroso:
Reparte-se em dez cavas o seu fundo.

Qual de fossos dobrados, cauteloso,
Se apercebendo, o alcáçar se assegura
Dos assaltos de imigo poderoso:

De abismos tais o aspecto se afigura.
Como da levadiça ponte entrada,
Aos de fora, do mundo na cintura,

Assim, do val no fundo começada,
Cada cava uma rocha atravessava
Em arco, para o poço concentrada.

De nós o monstro aqui se descargava:
À sestra mão seguiu logo o poeta,
E eu de perto fiel o acompanhava.

Novo tormento à destra me inquieta,
Novos algozes vejo, novas dores,
De que a primeira cava era repleta.

Stão lá no fundo nus os pecadores:
Do meio contra nós muitos caminham,
Outros conosco, em passos já maiores.

Em Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do jubileu no tempo, sobre a ponte
Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:

De um lado andavam, os que tendo em fronte
O castelo, a S. Pedro se endereçam,
E do outro lado os que iam para o monte.

Daqui, dali nas bordas, os apressam
Cornígeros demônios, açoitando
Com grandes azorragues, que não cessam,

Como aos golpes primeiros cada bando
Se apressa! Como cada qual evita
Que se repita o estímulo execrando!

Nesse andar minha vista num se fita,
Da parte oposta vindo, e logo eu disse:
— “Hei conhecido esta figura aflita”. —

Atentei mais, por que melhor o visse;
Deteve-se comigo o doce Guia
E deu que atrás o passo eu dirigisse.

Aos olhos esquivar-se-me queria,
Os seus baixando; mas foi vão o intento.
—“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.

“Se as feições não mudou-te o passamento
Venedico tu és Caccianemico[1].
Por que trato padeces tão cruento?” —

— “De mau grado o que exiges significo;
Mas cedo ao claro som dessa loquela,
Que à memória me traz o mundo inico.

“Eu fui aquele, que Ghisola bela
Do Marquês entreguei ao vil desejo:
Ora a verdade a minha voz revela.

“Comigo de Bolonha muitos vejo;
Com tantos nesta cava choro e peno,
Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.

“De dizer sipa[2] entre o Savena e o Reno,
Se a prova queres, lembra-te somente
De que em nós da avareza influi veneno”. —

Mas um demônio o atalhou. Furente,
Disse tangendo: — “Ó rufião, avante!
Mulher não há que vendas impudente!” —

Ao Mestre me tornei; — pouco distante
Era um rochedo, a que nos acercamos;
Da riba se elevava pra diante.

Assaz ligeiramente nos alçamos;
Fomos pela fragura à mão direita
E o eterno recinto assim deixamos.

Chegados onde a curva estava feita
Para passagem dar aos fustigados,
O sábio Guia disse: — “A face espreita

“Agora desses outros malfadados,
Em que ainda atender não conseguiste,
Porque não stavam para nós voltados”. —

Da antiga ponte divisamos triste,
Longa fileira: contra nós andava.
Cruel açoite em flagelar persiste.

Virgílio, quando eu nada perguntava,
— “Repara bem” — me diz — “na sombra altiva,
A quem pranto de dor faces não lava.

“De Rei conserva a majestade viva!
É Jasão[3]: conquistou por força e manha
O velocino em Colcos fera e esquiva.

“A Lenos foi, depois que horrenda sanha
Feminil aos varões cortara a vida,
Nenhum poupando aquela fúria estranha.

“Ali, de amor no enlevo embevecida,
Hipsífile[4] enganou, que já iludira
Suas irmãs, de compaixão movida.

“Grávida e só deixou-a: atroz mentira
Mereceu-lhe dos tratos a amargura.
Vingada está Medéia, a quem traíra.

“Quem perjurou como ele, há pena dura.
Do val primeiro baste o que sabemos
E de quantos aqui sofrem tortura”. —

Numa estreita vereda já nos vemos,
Que co’a borda segunda se cruzava,
Sustentando outra ponte, a que tendemos.

Turba dali ouvimos, que chorava
De outra cava no encerro e que, assoprando,
Com suas próprias mãos se arrepelava.

Estava-lhe as paredes incrustando
A exalação que sobe e ali se prende.
Ferindo o olfato e a vista horrorizando.

E tanto pelo abismo a cava estende,
Que só divisa quando está no fundo
Quem lá do cimo, perscrutando, atende.

Subimo-nos: então no fosso imundo
Vi gente em tal cloaca mergulhada,
Que a sentina figura ser do mundo.

Enquanto olhava ali tão conspurcada
Cara notei, que distinguir não pude,
Se padre ou leigo fora a alma danada.

— “Dizei por que tua vista não se mude
De mim, a imundos tantos desatenta!” —
Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude,

“Te vi sem cabeleira tão nojenta.
Alessio Interminei[5] de Lucca hás sido:
Em ti por isso a vista é mais atenta”. —

Ferindo a face, disse-me o descrido:
— “Aqui lisonjas vis me submergiram;
Língua indefessa em bajular hei tido”. —

Logo depois que vozes tais se ouviram,
Meu Guia: — “Olhos dirige um pouco avante,
E as feições me declara se atingiram

“De mulher desgrenhada e petulante
Que de unhas asquerosas se lacera,
Mudando de postura a cada instante.

“É Taís[6], a meretriz, que respondera
Ao namorado seu, quando dizia:
— “Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” —

Mas vamos: temos visto em demasia”. —

Notas[editar]

  1. Bolonhês, que induziu sua irmã Ghisola a entregar-se a Obizzo d’Este, marquês de Ferrara. [N. T.]
  2. Palavra do dialeto bolonhês que vale por sim ou seja. [N. T.]
  3. Chefe dos argonautas, que, auxiliado por Medéia, que ele seduziu e depois enganou, conquistou em Cólquida o velocino de ouro. [N. T.]
  4. Enganada por Jasão. [N. T.]
  5. Patrício de Lucca. [N. T.]
  6. Meretriz, personagem de uma peça de Terêncio. [N. T.]