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A Lotação dos Bondes/VIII

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Personagens: RAMIRO e depois JOAQUIM PIMENTA

RAMIRO - O sangue sobe-me à cabeça, eu vou ter um ataque.

PIMENTA (Entrando a toda pressa pelo fundo.) - O senhor não viu por aqui uma moça de vestido branco?...

RAMIRO - Diga, fale, senhor, onde é que a viu? Nariz aquilino, cabelos crespos...

PIMENTA - Não, senhor; nariz chato, cabelo corrido e acode pelo nome de Josefa.

RAMIRO - Ora bolas! Então não é ela.

PIMENTA - De quem é que o senhor fala então?

RAMIRO - De minha filha, que perdeu-se em um bonde, desgraçado!

PIMENTA - E eu falo de minha mulher, que sumiu-se também em um carro que veio para o Jardim Botânico. Que dia, meu prezado senhor! Minha mulher perdida e eu com este furioso galo na testa. E quer saber por que foi tudo isto? Por causa da lotação.

RAMIRO - E não sabe também o senhor que, por causa da lotação, acho-me agora aqui, com estes embrulhos, e este queijo londrino, que devia figurar a esta hora no banquete dos anos de minha mulher, que todos os convidados lá estão à minha espera e que minha filha anda por aí exposta às chufas do primeiro valdevinos?

PIMENTA - E minha mulher? Uma criatura inocente e angélica, nascida na freguesia da Meia Pataca, uma tontinha que nunca veio à corte e que será capaz de aceitar o braço do primeiro bigorrilhas que lhe queira ir mostrar o peixe-boi do Fialho. Eu vinha para as Laranjeiras e ela veio parar para estes lados.

RAMIRO - Justamente como eu.

PIMENTA - Quando investi para o carro e procurei ganhar o estribo um malvado arruma-me tamanho soco que caí sobre as pedras, fazendo este galo na testa.

RAMIRO - Não é exato. Conte o caso como o caso foi. O senhor, ao subir para o estribo, escorregou; neste escorregão segurou-se à aba da sobrecasaca de um indivíduo, procurando arrastá-lo também na queda.

PIMENTA - Como sabe o senhor isto?

RAMIRO - Porque foi este seu criado quem teve a honra de dar-lhe o soco.

PIMENTA - E o senhor diz-me em face semelhante coisa?

RAMIRO - Ora, vamos lá; quer brigar?

PIMENTA - Há de dar-me uma satisfação em público.

RAMIRO - Dou-lhas todas que quiser; pago-lhe até o curativo do galo; mas lembre-se que estamos empenhados em uma causa comum, para a qual devem convergir presentemente todos os nossos esforços.

PIMENTA - Sim, um soco em um cidadão! Não é nada. É sabido que sou influência na Meia Pataca...

RAMIRO - Diga antes - influência de meia-pataca, como são todas as de aldeia.

PIMENTA - Não me falte ao respeito, senhor.

RAMIRO - Perdão, não me fiz bem compreender; eu queria dizer influência apatacada, que é a verdadeira influência.

PIMENTA - Aceito a explicação. Ora, sendo eu conhecido na freguesia pelo meu apego a todos os governos, necessariamente a Reforma há de aproveitar este incidente para um boato.

RAMIRO - Deixemo-nos de questões ociosas. Quer ou não achar sua mulher?

PIMENTA - E para que fim vim eu cá?

RAMIRO - Então vamos para o jardim; o senhor procura por um lado e eu por outro. Os sinais de minha filha são os seguintes:

vestido branco, nariz aquilino, cabelos crespos e pretos. E clara.

PIMENTA - Aí vão os da minha mulher: cara larga, nariz chato, falta de um queixal, está um pouco indefluxada e traz uma liga verde.

RAMIRO - Muito bem; vamos embora. (Canta.)


Ao Jardim sem mais demora,
Vamos ambos procurar,
O senhor a cara esposa,
Eu a vida do meu lar.

PIMENTA -


Oxalá que as encontremos,
No que não tenho esperança,
Procuremos as tontinhas
Que a noite já se avança.

RAMIRO -


Ao Jardim sem mais demora,
Vamos, etc., etc.,

PIMENTA -


Oxalá que as encontremos,
No que, etc., etc.

PIMENTA - Vamos! (Sai sem chapéu, com Ramiro, pelo fundo.)