A Moreninha/XV

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Ao romper do dia de Sant’Ana estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono: era isso muito natural,depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.

Com efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de d. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes barulhenta, perturbava a ordem dos jogos de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la, teve em recompensa um beliscão.

Finalmente, ouviu-se a voz de vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.

O último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.

São seis horas da manhã e todos dormem ainda a sono solto. Um autor pode entrar em toda a parte e, pois... não, não, alto lá! No gabinete das moças... Não senhor; no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso?... Dá um beijo em Fabrício; acorda espantado e ainda por cima empurra cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...

Oh, beleza! Oh, inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!

Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele tivera até aborrecimento e que agora começava com olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua cabeceira~ que, traquinas como sempre, em vez de chamá-lo queria rir-se acordando-o pouco a pouco; que para isso aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos lábios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia vê-la fugir ao menor movimento; que finalmente, não podendo mais resistir aos seus férvidos beijos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a realidade) e ele deu um salto mas, em lugar de pregar um beijo nos lábios de d. Carolina, foi com toda a força e estouvamento bater com os beiços e nariz contra a testa de Fabrício; depois, como se o colega tivesse culpa de tal infelicidade, deu-lhe dois empurrões dizendo:

— Sai-te daí, peste! ... Ora, quando eu sonhava com um anjo, acordo-me nos braços de Satanás!...

Corra-se, porém, um véu sobre quanto se passou até que se levantaram do almoço. A sociedade se dividiu logo depois em grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois velhos ferraram-se no gamão, as moças espalharam-se pelo jardim e os quatros estudantes tiveram a péssima lembrança de formar uma mesa de voltarete.

E apesar do poder da cachaça do jogo, de cada vez que qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar vazio, e junto do arco da varanda, que olhava para o jardim, colocava-se uma sentinela. Já se vê que o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por exemplo, distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e espadilha, e era codilhado todas as mãos que jogava de feito. A Moreninha já fazia travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele, que se acusava de haver sido injusto para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para em compensação render-lhe toda justiça. D. Carolina brilhava jardim e, mais que as outras, por graças e encantos que todos sentiam e que ninguém poderia bem descrever; confessava-se que não era bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores olhos, porém não havia quem resistisse à viveza de seus olhares; os que mais apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em que a languidez dos olhos e a brandura de custosos risos estão exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam por força que no lindo rosto moreno de d. Carolina nada iria melhor do que o prazer que nele transluz e o sorriso engraçado e picante que de ordinário enfeita seus lábios; além disto, sempre em brincadeira, guerreia com todos e em interessante contradição consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando não dizer palavra, apresenta-se escondendo-se, sempre quer jamais querendo.

Nunca também se havia mostrado a Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso boas razões havia: esse era o dia dos anos da sua boa avó e a pobre Paula, sua estimada amada ama, estava completamente restabelecida.

Eis uma deliciosa invasão!... Dez moças entram de repente na varanda e num momento dado tudo se confunde e amotina; d. Carolina atira no meio da mesa do voltarete uma mão cheia de flores, e enquanto Filipe faz tenção de dirigir-lhe um discurso admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa para tornar a aparecer logo depois. E impossível continuar assim: dá-se por acabado o jogo e a Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o irmão.

— Parabéns, sra. d. Joaquina, disse Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!

— Como?... perguntou ela.

— Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do sr. Augusto, acudiu d. Carolina; explique-se, sr. doutor.

Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam sobre qual primará na viveza da cor, e eu vejo que ela tem presa no cabelo uma das duas rivais.

Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha competidora... seja o seu carcereiro! disse d. Quinquina, querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para oferecê-la a Augusto.

— Oh! Minha senhora! Seria um cruel castigo para ela, que se mostra tão vaidosa.

— Pois rejeita?...

— Certo que não; aceito, mas rogo um outro obséquio.

— Qual?

— Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem. Pois bem, será satisfeito; eu guardarei a sua rosa.

— Mas cuidado, não haja quem liberte a bela cativa! disse Leopoldo.

— Protesto que a hei de furtar, acrescentou d. Carolina.

— Desafio-lhe a isso! respondeu a prima.

Então começou uma luta de ardis e cuidados entre a Moreninha e d. Quinquina. Aquela já tinha debalde esgotado quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil espírito, e enfim, fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de d. Quinquina, que, não menos viva, conservava-se na defensiva.

Depois de uma meia hora de hábil afetação, a menina travessa, com um rápido movimento, fez cair o leque de sua adversária; Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e d. Quinquina, um instante despercebida, curvou-se também e soltou logo um grito, sentindo a mão da prima sobre a rosa: com a sua foi acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mãozinhas, que mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se completamente a rosa.

Morreu a bela cativa! ... Morreu a pobre cativa! ... gritaram as moças.

— D. Carolina está criminosa! disse d. Clementina.

— Vai ao júri, minha senhora!

É verdade, vamos levá-la ao júri.

A idéia foi recebida com aplauso geral: só Filipe se opôs.

Não, não, disse ele. Carolina é muito rebelde, se fosse condenada, não cumpriria a sentença.

— Oh! Maninho! Não diga isso. Você jura obedecer?...

— Eu juro por você.

Tanto pior: era mais um motivo para se tornar perjura. Pois bem, dou a minha palavra, não é suficiente?

— Basta! Basta!

Organizou-se o júri; Fabrício foi encarregado da presidência, um outro moço serviu de escrivão, e cinco moças saíram por sorte para juradas; d. Clementina terá de ser a relatora da sentença. A Augusto declararam suspeito na causa. Filipe foi escolhido para advogado da ré e Leopoldo da autora.

A sessão começou.

Longo fora enumerar tudo o que se passou em duas horas muito agradáveis e por isso muito breves também. Toda a companhia veio tomar parte naquele divertimento improvisado e até, quem o diria?! os dois velhos deixaram o tabuleiro de gamão. Resuma-se alguma coisa.

As testemunhas foram d. Gabriela e uma outra, que deram provas de bastante espírito: o interrogatório de d. Carolina fez rir a quantos o ouviram. O debate dos advogados esteve curioso.

Leopoldo acusou a ré, demonstrando que tinha havido a circunstância agravante da premeditação e que o crime se tornava ainda mais feio, por ser causado pelo ciúme; procurou provar que d. Carolina, cônscia de seus encantos e beleza, queria ser senhora absoluta de todos os corações e até de todos os seres; que ela se enchera de zelos supondo, com razão, que Augusto desse subido valor à rosa, por lhe ser dada por uma moça bela como era a autora e, enfim, que o crime da ré era excessivo, que já na tarde antecedente jurara a perda daquela flor, por desconfiar que o zéfiro brincava mais com ela do que com seus olhos.

Filipe não se deixou ficar atrás. Argumentou dizendo que era impossível decidir que mão tinha dado a morte à bela cativa; que não houvera premeditação, porque a ré não quisera matar, mas sim Libertar; que, se havia crime, só o cometera a autora, por prender uma inocente flor; e que, por último, ainda quando fosse a ré que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propósito de o fazer, dever-se-ia atribuir tal ação à piedade, pois que d. Quinquina a estava matando pouco a pouco com o veneno da inveja, colocando-a tão perto de suas faces, que tanto a venciam em rubor e viço.

As juradas recolheram-se ao boilette e cinco minutos depois voltaram com a sentença, que foi lida por d. Clementina.

O júri declarou d. Carolina criminosa e a condenou a indenizar o dono da rosa com um beijo.

— Para fazer tal, disse a ré, não carecia eu da sentença do júri: tome um beijo, minha prima...

— Não é a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono da rosa é o sr. Augusto.

De rosa fez-se o rosto de d. Carolina.

— O beijo! O beijo! gritaram as juradas. Você deu sua palavra!

Ela hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de Augusto e, com seu sorriso feiticeiro e irresistível nos lábios, disse...

— O senhor me perdoa?...

— Não! Não! Não! clamaram de todos os lados.

Mas a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:

— Me perdoa?...

— Não! Não!

— Porém, como resistir ao seu sorriso?... Como dizer que não a quem pede como ela?...exclamou Augusto, entusiasmado.

D. Carolina estava, pois, perdoada.

— Agradecida! disse ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham até então dado seus lábios.

A manhã deste dia foi assim passada e à tarde voltou-se aos preparativos dosarau.