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A Morgadinha dos Canaviais/XVI

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XVI


— Ora com Deus venha a minha fada; esta querida Lena, que se não esquece dos seus amigos velhos... Boas festas me trazes pela noite, filha!

No rosto e nas maneiras de Magdalena havia evidentes indicios de preoccupação.

— Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar; eu venho...

O herbanario conduziu-a para junto da mesa, onde estavam ainda os signaes de refeição, que havia pouco findára. Vendo os dois talheres, a morgadinha olhou interrogadamente para Vicente:

— Estava alguem comsigo?

— Esteve Augusto, que ceiou aqui. Porquê? Temos por ahi mais alguns livros a comprar-lhe? — continuou, sorrindo com benevola malicia. — Tenho eu mais uma vez de chamar em meu auxilio a fada que, de vez em quando, me ensina em segredo quaes os livros, que o rapaz mais deseja e de que eu mal sei dizer os nomes? Hei de ainda ouvir calado agradecimentos, que não mereço, e que elle mais de coração daria, a quem são de justiça devidos?

— Não, tio Vicente; não se trata agora d’isso.

— Ai, Lena, Lena, que não sei bem o que devo pensar de todas estas coisas.

A morgadinha parecia um pouco perturbada com as palavras do herbanario.

— Que ha de pensar? Ha nada mais natural? Angelo foi que me deu o exemplo. Elle sabia o amor que Augusto tem á leitura. Porém o cofre de Angelo é pequenino, bem sabe; emquanto que eu chego a nem saber em que hei de consumir o que me sobra. Por isso foi que me lembrei... porém como não conviria que eu propria fizesse o presente, nem elle de mim o acceitaria, é que eu lhe pedi que o fizesse em seu nome. Mas falemos de outra coisa, porque me não posso demorar. Venho ás occultas e emquanto a minha gente foi á missa do gallo. Tio Vicente, um objecto muito grave me obrigou a procural-o a estas horas.

— Ah! — disse o velho, sentando-se em tom de gracejo. — Adivinho a gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem algum principio de sarampo ou de garrotilho, e vens...

— Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta casa e a este quintal?

O velho tornou-se immediatamente sério.

— Se lhe tenho amor?! Que pergunta!

— Tem?

— Nasci aqui, filha.

— Custar-lhe-ia a...

— A quê?

— A... a...

E Magdalena hesitava.

— Fala! — insistiu o velho, já inquieto.

— A separar-se d’ella?

O herbanario respondeu simplesmente:

— Ah! morreria.

Magdalena fez um gesto de afflicção.

Em Vicente crescia o desassocego.

— Mas... Dize, Magdalena; o que significam essas palavras?

— É que...

— Explica-te! — exclamou o herbanario, quasi imperiosamente.

— Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas não se afflija. Eu vim de proposito para o prevenir. Mas, por amor de Deus, socegue; senão tira-me o animo de continuar.

— Que socegue, e tu a atormentares-me com essas demoras!

— Perdôe... Fala-se em deitar abaixo estas arvores e esta casa, para...

O herbanario de um impeto poz-se a pé. Fulgurou-lhe nos olhos um relampago de ira terrivel!

Magdalena calou-se, assustada.

— Deitar abaixo estas arvores e esta casa?! Quem?... Quem se atreve? Pois que venham! que venham!

Mas reparando no terror que estava causando a Magdalena, procurou reprimir-se, e com uma voz que elle se esforçava por tornar tranquilla, continuou:

— Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala, Lena, fala... Dize o que sabes. Quem é?... Para que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala, bem vês que eu estou socegado, filha.

— Ha um projecto de estrada...

— Ah! — disse Vicente, com um grito de raiva. — Não digas mais. Já sei — continuou com renascente exaltação. — Já sei. Adivinho o resto. É teu pae que o determina; é teu pae que o resolveu?

Magdalena abaixou a cabeça com dolorosa expressão.

O furor do velho exaltou-se outra vez.

— Teu pae! Teu pae, Lena! Então esse homem jurou matar-me?

— Tio Vicente!

— Elle não sabe o que são para mim estas arvores e estas paredes? Elle não sabe que a minha alma está n’ellas, presa a estas raizes? que com ellas se despedaçará? Esse homem sem coração não vê que são estas as minhas affeições, as unicas? a minha unica familia? Elle, o companheiro dos meus primeiros annos! que, como eu, ahi brincou, á sombra d’essas mesmas arvores e sob os olhares de meu pae, que tambem o abençoava, tão duro de coração se fez que, sem respeito por estas memorias todas, assim me quer separar do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é teu pae este homem, Lena?

— Por quem é, tio Vicente; ouça-me. Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que talvez tudo se remedeie ainda.

— Sim, sim; tudo se remediará... com a minha morte. Talvez que ella seja util a teu pae... Talvez precise d’ella.

— Oh! não creia, não creia.

— É duas vezes doloroso o golpe; porque me separa do que amo deveras e por vir da mão de quem vem. Eu era amigo de teu pae, Lena. Acredita que o era... ainda. Conheci-o tão generoso e tão innocente, como teu irmão Angelo. Muitas vezes me enthusiasmei ao ouvil-o falar dos seus projectos. E acreditei n’elle. Tinha então no olhar um fogo, que não mentia. Vi-o seguir a carreira publica e acompanhei-o com a minha fé. Não tardaram os primeiros desenganos; não lhes quiz dar credito ao principio. Vieram outros e outros. Fui vendo então que os maus ares d’aquella terra tinham embaçado o brilho do caracter, que eu julguei melhor do que os outros. Mas o peor dos desenganos estava-me reservado ainda. Para teu pae hoje os homens são medidos pelos votos, que podem lançar na urna eleitoral!

— Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim! Não duvide de meu pae! — exclamou Magdalena, a quem cruelmente estavam affligindo as recriminações amargas do herbanario. — Meu pae estima-o e respeita-o. Não tem o coração endurecido que diz. Elle mesmo ámanhã aqui ha de vir. Verá então...

— Elle? Ámanhã?...

— Para isso venho prevenil-o. Não o receba com asperezas, tio Vicente; fale-lhe com brandura. Talvez o commova, talvez seja ainda possivel valer a tudo. Ainda não está decidido... Julgo... E que estivesse...

— Ámanhã! Teu pae vem aqui ámanhã? E ousa vir elle proprio annunciar-me o que sabe que vae ser uma sentença de morte?

— Não; elle ignora o mal que isto lhe causa, creia. Sabendo-o, verá como...

— Teu pae conhece-me, Magdalena. Teu pae conhece-me, e ha muito. Não julgues que pode errar, calculando o effeito d’este golpe. Mas que queres tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as venetas de um velho quasi tonto. Homens que trazem o pensamento em interesses tão altos, não teem vista para estas pequenas desgraças.

Magdalena sentia-se possuir de uma profunda tristeza, ao ouvir falar o herbanario. Era uma dolorosa provação para o seu amor de filha vêr assim uma nuvem de desconfiança offuscar a ideal concepção que ella formára do pae, e não ter fôrças para a afugentar. Ás vezes uma dúvida cruel fazia-lhe, a seu pesar, suppôr que o herbanario tinha razão. Agora só conseguia oppôr um gesto supplicante áquellas acerbas accusações, que por muito tempo ainda desattenderam esta supplica muda.

A final serenou a violencia da irritação do velho; succedeu-lhe, porém, uma commoção profunda, dominado por a qual disse a Magdalena:

— Socega, Lena; ámanhã eu receberei teu pae sem a menor aspereza. Fizeste bem em vir primeiro, filha. Se o não esperasse, talvez não soubesse conter-me. Agradecido. Uma noite é bastante para me preparar. Agora vae, deixa-me só; deixa-me... chorar.

E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair, soluçando, sobre a mesa, junto da qual se achava.

Magdalena correu para elle, commovida.

— Então, tio Vicente, então! Socegue! Ámanhã meu pae virá. Fale-lhe, e eu espero que ainda será tempo de evitar... o mal.

— Pode ser, pode ser... — respondia o velho. — E se não pudér, Deus me acudirá, para não viver por muito tempo fóra da casa em que nasci.

Magdalena já não tinha que lhe dizer.

— Eu pedirei tambem, e Christina, e todos pediremos, como já pedimos. Tenho esperança.

— Não, filha, não peças tu. Deixa-me só com teu pae ámanhã. Disseste que tinhas vindo, sem ninguem saber? — continuou elle. — Olha que te não dêem pela falta. Vae, que é tempo.

— Mas...

— Vae, filha. Eu estou já tranquillo. Bem vês. Deus te recompense a bondade que tiveste. Vae. Queres que te acompanhe?

— Não é preciso. Vim pela porta das prezas, que deixei aberta. São dois passos e estou na quinta. Mas, tio Vicente...

— Vae então; e Deus te abençoe.

E o velho pousou a mão sobre a cabeça de Magdalena, que saiu commovida.

E elle caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o pranto que lhe rebentava dos olhos.

É sombria a saudade n’aquellas idades, porque as esperanças são já muito debeis para lhe darem luz.

Saindo de casa do herbanario, perturbada ainda pelos sentimentos que alli a tinham agitado, a morgadinha dirigiu-se á pressa para a porta da quinta, por onde saira. Ao impellil-a para entrar, a porta resistiu. Este facto surprehendeu e inquietou um pouco Magdalena. Quem poderia ter fechado a porta? E se effectivamente estava fechada, tornava-se-lhe necessario um longo rodeio pela aldeia para chegar a outra, que pudesse encontrar aberta.

N’esta hesitação impelliu outra vez instinctivamente a porta, que lhe oppoz a mesma resistencia.

Cêdo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura e viu mover-se lentamente a porta, e no vão, que augmentava, desenhar-se uma figura de homem.

Antes que pudésse, através da obscuridade da noite, reconhecer a pessoa, que assim tão a proposito lhe acudia, deram-lh’a a conhecer estas palavras:

— Muito boas noites, prima Magdalena. Espero que pelo menos me concederá licença para exercer, junto de si, as humildes funcções de porteiro.

Era Henrique de Souzellas.

Magdalena não foi superior a um vago sentimento de receio, ao encontrar-se ahi com o hospede de Alvapenha; comtudo esforçou-se por dominar-se e respondeu, com apparente presença de espirito:

— Ah! É o primo Henrique. Muito boas noites. Ahi temos um requinte de galanteria, que eu estava muito longe de esperar.

— E de desejar, não?

— E de desejar tambem; confesso-o. Por mais diligente que seja um porteiro, nunca o é tanto como uma porta aberta.

— Mas é mais discreto.

— Duvido. Em todo o caso, agradeço o incómmodo.

E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem mais explicações.

— Uma palavra, prima Magdalena — disse Henrique, retendo-a por o braço e com certa expressão nas palavras e no gesto, que redobrou o sobresalto da morgadinha. — Não ha mais accommodado terreno para um dialogo solemne do que o limiar de uma porta. Ordinariamente no limiar das portas o homem muda de mascara; depõe a que apresenta na sociedade e afivela a que traz na familia, e vice-versa. Ora n’estas mudanças é facil surprehender o verdadeiro rosto da pessoa.

— Será tudo o que quizer o limiar de uma porta, primo; menos um logar muito confortavel para serões n’uma noite de dezembro.

E Magdalena tentou de novo seguir para deante.

Henrique susteve-a outra vez.

— Um momento só, prima Magdalena; tenho necessidade de saber se me quer para alliado ou para inimigo.

— Não vejo a necessidade da alliança que propõe, nem as razões para a lucta.

— Sejamos francos. A prima deve confessar que a minha presença aqui foi um desagradavel contratempo. Uma certa altivez e consciencia de invulnerabilidade, de que tinha o incómmodo de se revestir, sempre que tratava commigo, depois d’esta importuna occorrencia terá de se modificar.

— Não havia dado por essa... revestidura que diz; mas, se ella existiu, far-me-ha o favor de dizer: por que não pode continuar?

— Essa é boa! porque eu faço a justiça á prima de suppôr que não vae tão longe a sua hypocrisia.

— Hypocrisia! — disse Magdalena, com accento mais severo.

— Perdão; não tive tempo para inventar outro termo mais... brando. Dissimulação talvez lhe agrade mais. Seja dissimulação. Mas depois do occorrido...

— Agora exijo eu que se explique, senhor.

— Ora vamos. Seja razoavel. Poder-me-ha dar uma explicação... edificante... d’esta sua excursão nocturna?

— Obsta apenas a que eu lh’a dê, sr. Henrique de Souzellas, a falta de uma pequena formalidade: a de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.

— Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha ideia. A prima é uma mulher admiravel, uma mulher superior, educada na alta escola de uma sociedade distincta, sobranceira por isso a pieguices provincianas. Tanto mais me encanta! E creia que me envergonho só ao lembrar-me do que terá pensado de mim, vendo-me tomar a sério as suas profissões de fé, tão cheias de franqueza e de candura. Devo ter-lhe parecido bem ridiculo, não é verdade?

— Agora é que me está parecendo bem enygmatico!

— Sim? N’esse caso eu me decifro. A prima não ignora que eu a amo.

— Pois ignorava! — atalhou Magdalena, com ironia.

— E sabe de certo, por experiencia do mundo, que para homens como eu, a indifferenca, a frieza e os desdens redobram o ardor da paixão.

— Sim; já li isso n’um romance.

— A prima tem sido para commigo de uma crueldade revoltante, mas pouco sincera. Eu resignava-me a soffrer, porque um resto de ingenuidade que me ficou dos quinze annos, illudia-me na interpretação de taes resistencias. Tive a puerilidade de a suppôr uma mulher de excepção; pouco me faltou para a divinisar. Estava reservado para esta memoravel noite de Natal o desengano.

— Ah! então parece-lhe...

— Que a prima representa admiravelmente o seu papel. Pode gabar-se de ter illudido um homem habituado ás scenas da comedia social.

Magdalena respondeu, com um tom de voz cheio de severidade e de nobreza:

— Tenho-o estado a escutar, sr. Henrique de Souzellas, sem que eu propria bem saiba o que me retem aqui: se é a compaixão que me inspira a profunda doença moral de que o vejo tomado, se a curiosidade de saber a que tendem todos esses arrazoados. Vejo-o inclinado a imaginar que por um facto, que a sua pouco delicada indiscreção preparou, eu ficarei de hoje em deante á mercê da sua generosidade. Conhece-me muito pouco, sr. Henrique! Ainda quando esse facto não pudésse ter uma explicação natural, e que me não repugnará declarar quando quizer, saiba que tenho orgulho de mais para arrostar com tudo, até com a calumnia, de preferencia a resignar-me ao menor predominio que me seja odioso.

— Bravo!

— Saiba mais, sr. Henrique de Souzellas, que se eu não lhe fizesse a justiça de acreditar que d’esses seus actos e palavras não é absolutamente irresponsavel talvez a má influencia da ceia d’esta noite, bastariam elles para me inspirarem por si e pelo seu caracter o mais completo desprezo; e então seria, como nunca, manifesta a minha independencia, porque eu nunca temi os seres que desprezo.

Henrique principiava a ser de novo subjugado pelo tom de severidade e de energia, com que a morgadinha lhe falava; ainda assim um resto de scepticismo obrigou-o a replicar:

— Santo Deus! prima Magdalena; não dê um colorido tão pavoroso ás minhas supposições. Despojal-a de uma crueza deshumana, para a dotar de uma sensibilidade, verdadeiramente feminil, é uma justiça feita ao seu coração. E o facto que o acaso me revelou a nada mais me auctorisa. O pequeno e natural despeito por me haver deixado illudir desvaneceu-se já, creia; e agora só me resta invejar a sorte de quem tem a felicidade...

— Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem mais um instante o escutarei; poupar-lhe-hei assim os remorsos, que ámanhã teria da sua infamia...

E animada por uma resolução mais energica, Magdalena caminhou soberanamente para a porta.

Henrique collocou-se-lhe outra vez deante.

— Um momento mais.

— Deixe-me passar, senhor.

— Não, sem que me ouça antes.

— É uma violencia?

— É uma supplica.

N’este momento saiu da obscuridade da rua fronteira um vulto que avançou para elles.

— sr.a D. Magdalena, se fôr preciso reter o insolente, que se lhe atravessa no caminho, ponho um braço á sua disposição.

E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio collocar-se entre Henrique e Magdalena.

Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu de cólera. O olhar que fixou no recem-chegado trahiu a vehemencia da impressão recebida. Depois succedeu-se-lhe no espirito outra ordem de ideias. Olhou para Magdalena, em quem não era menor a surpreza causada pela inesperada presença de Augusto, olhou outra vez para este e soltou uma risada cheia de malignidade e de ironia, que a ambos fez estremecer.

— Ahi está uma apparição tanto a tempo, prima Magdalena, que aos mais incredulos infundiria fé na intervenção da Providencia. Que foi sem dúvida providencial o acaso, que trouxe por aqui, a estas horas mortas, um tão generoso e intrepido salvador. Não é verdade, prima? O que vale estar de bem com Deus!

Estas palavras mostraram a Augusto que a sua intervenção, ainda que generosa e devida a um espontaneo impulso da alma, não fôra porventura das mais convenientes.

— Senhor! — exclamou elle, indignado, dando um passo para Henrique.

— Socegue — tornou este, com dobrado sarcasmo. — O senhor é um perfeito heroe de romance; enthusiasta, cavalheiresco, mas, em certas occasiões, incómmodo de candura, por isso mesmo. Se soubesse o transtorno que veio causar a um bello dialogo que eu sustentava aqui com a sr.a D. Magdalena! Não vê como a deixou embaraçada? Perdeu com a sua vinda o fio da comedia, que desempenhava com perfeita sciencia de actriz. As almas ingenuas e generosas, como a sua, sr. Augusto, são ás vezes de uma impertinencia! Vamos, sr.a D. Magdalena; não descoroçôe. Assim exgotou todos os recursos da sua imaginação? Vamos, introduza mais este elemento de apparição de um heroe no enredo, e organise a comedia com o superior talento que tem! Eu por mim acceito todos os papeis que me distribuir.

Augusto ia responder, quando Magdalena o atalhou, dizendo com voz firme:

— Perdão; vejo n’esta noite em todos uma notavel disposição para usurparem direitos, que não possuem! O sr. Henrique, o de me interrogar; o sr. Augusto o de me defender. A um repetirei o que já ha pouco lhe disse; se algum dia tiver necessidade de explicar as minhas acções, fal-o-hei deante de outros juizes, em quem reconheça o direito de o serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar que, se o titulo de hospede e de parente não fôsse bastante para me assegurar da parte do sr. Henrique de Souzellas os respeitos que me são devidos, tinha ainda na minha familia defensores legitimos e não seria por isso obrigada a recorrer á protecção de um estranho. Meus senhores...

E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha passou por entre elles e entrou para a quinta, sem que nenhum a procurasse reter.

— Se esta senhora acceitasse a sua protecção e eu teimasse n’aquillo que chamou a minha insolencia, qual seria, pouco mais ou menos, o seu procedimento? Poder-se-ha saber? — perguntou Henrique, logo que a morgadinha desappareceu.

Augusto, em quem a fria altivez da resposta d’ella deixára o desespero no coração, respondeu acerbamente:

— Procuraria ensinal-o a ser cortez. Bem vê que não me esqueço facilmente do meu programma de mestre-escola.

— Vejo; é a segunda tentativa de lição que lhe mereço. Permitte-me que ámanhã o procure para dar principio a um curso de educação mais regular?

Augusto respondeu, sorrindo:

— É um cartel em fórma? Não sei se estarei ensaiado para essa comedia.

— Se o genero tragico lhe agrada mais, dar-se-lhe-ha esse sabor.

— Bem ouviu que se me negou o direito de tomar partido por esta causa. Qualquer scena d’essas entre nós seria pouco delicada... ámanhã.

— Pois bem, contemporisemos; e até lá é de esperar que algum motivo occorra que a explique melhor... aos olhos dos outros.

— Como queira; a minha porta não se fecha a quem me procura.

E separaram-se depois de se cortejarem.

— Se me não engano — dizia comsigo Henrique, em caminho do quarto — é um verdadeiro desafio o que eu acabo de dirigir a este rapaz. Quer-me parecer que estou sendo bem ridiculo, desafiando um mestre-escola. Se lhe deixo a escolha das armas, decide-se pela férula. Tem graça! Veremos o que ámanhã, á luz do dia, eu penso d’isto tudo. Eu já não fico por mim esta noite. Estou a querer convencer-me de que tenho andado estouvadamente e com não demasiado cavalheirismo. Que diabo! É que esta mulher e este creancelho são irritantes. Ella com a sua altivez, elle com os seus brios. Mas, na verdade, será este o Endymião d’esta esquiva Diana? Caprichos feminis... É o tal primo ingenuo e timido... A ociosidade da aldeia para alguma coisa ha de dar. Mas da maneira por que ella lhe falou... Havia certo tom de sinceridade... Astucias... O que é certo é que estou em lucta com uma mulher superior... Pois luctemos, priminha, mas com armas leaes. Não me prevalecerei do segredo que o acaso me revelou, se segredo existe... Veremos como ella ámanhã me trata...

Esta scena deixou em Augusto uma perturbação de espirito mais profunda.

As operações mentaes, que o preoccuparam toda a noite, eram d’aquellas a que repugna chamar pensar. É mais uma febre intellectual, um succeder de imagens sem ordem nem filiação, que não conduz a nenhum resultado, que não aconselha nenhum partido, que não esclarece, offusca.

Como se explica esta differença entre os dois? Por um apparente parodoxo; porque Augusto tinha mais habitos de reflectir. Quando n’uma vida de episodios uniformes e apparentemente vulgares, o espirito exerce demasiado a analyse, habitua-se a estudar factos que para outros passam por insignificantes, e descobre-lhes faces novas e desconhecidas. Costumado assim a ligar valor a tudo, quando succede que no decurso da vida se lhe depara um facto de maior vulto, a confusão do primeiro momento é inevitavel. Assim como a balança de precisão, apropriada para oscillar com pesos tenuissimos, não é a que pode servir para os grandes pesos, tambem a intelligencia costumada a pesar subtis accidentes, de que se compõe o drama habitual da vida, não é a que de subito pode avaliar algum mais complexo e importante.

A resolução n’estes espiritos, depois de formada, é mais tenaz; mas, emquanto se não fórma, vae n’elles um tumulto de ideias, que se não podem analysar.

Não analysemos, pois, as de Augusto.

Magdalena não socegou emquanto não viu Henrique voltar ao quarto, pelo mesmo caminho por que saíra.

— Que resultará d’isto? — pensava ella. — Que fará elle ámanhã?... É preciso não me acobardar, ou estou vencida... Mas que se passaria depois que os deixei?... Veremos ámanhã.

No meio d’esta serie de pensamentos, Magdalena sorriu.

É que lhe occorrera então este pensamento:

— Dizem que nós, as mulheres, temos filtros subtis para nos tornar amadas. Pois será mais difficil fazer-se aborrecida? Como o conseguirei?


FIM DO PRIMEIRO VOLUME