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A Morgadinha dos Canaviais/XXXI

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XXXI


A morte do herbanario deu muito que falar na aldeia, não só pela qualidade de homem que era aquelle, como pelas circumstancias, no meio das quaes o facto succedêra.

O resultado da eleição, comquanto momentoso, não distraía do assumpto as attenções; pois que, tendo sido successos simultaneos, associavam-se naturalmente nas conversas e discussões, e um chamava o outro.

O herbanario não fôra colhido desprevenidamente pela morte; havia muito tempo que fizera as suas disposições e por ellas legára a Augusto tudo quanto possuia, isto é, alguns livros, entre os quaes a Polyanthea, e o preço, quasi intacto, que recebêra pela casa expropriada.

Logo que estas disposições fôram sabidas, não faltou quem achasse n’ellas a explicação da amizade desvelada com que Augusto sempre tratára o velho, e do piedoso acatamento com que o recebêra em casa, assim que da sua o expelliram.

Nós que, por um direito legitimo e inauferivel, podemos julgar a fundo do caracter de Augusto, asseguramos que eram inexactos taes juizos.

É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé que se tem no desinteresse dos outros!

Não ha explicação mais difficil de ser recebida do que a que se fundamenta n’um sentimento nobre de abnegação ou de generosidade.

É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para assim desconfiarmos do proximo. Porque a final o que é verdade é que a mais exacta e infallivel sciencia do coração humano só se adquire pelo estudo do proprio coração: esse é o unico que nos está bem patente. É por isso que as melhores almas são de ordinario as mais crentes.

Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra todas as apparencias de virtude, ainda as mais insinuantes, tem já tão inquinado o coração como suppõe o dos outros.

O enterro do herbanario verificou-se no dia seguinte ao da morte e foi muito concorrido.

Fez-se no cemiterio, e, por expressa determinação do fallecido, em campa rasa, e não no tumulo da familia do Mosteiro, como o conselheiro desejára.

Tudo se passou sem o menor signal de opposição.

Não se explicam bem estas versatilidades da opinião publica. Uma medida que hoje ateia uma revolução, ámanhã executa-se no meio do indifferentismo geral, e sem apostolado prévio, sem providencias repressivas, nem castigos. Mysterios das massas, que mais convem ao legislador estudar, do que tentar destruil-os; offerecem a resistencia das leis naturaes.

O conselheiro e toda a familia tomaram lucto como parentes do herbanario, e receberam as visitas de pêsames, que em parte eram tambem de parabens pelo exito do suffragio popular.

Ao fim da tarde em que se realisou a cerimonia funebre, quando soavam na igreja matriz as badaladas das Avé-Marias, Augusto entrou no cemiterio, já deserto, e approximou-se lentamente da sepultura, inda coberta de pouco, como o denunciava a terra revolvida.

Elle, cujo coração era decerto o que a morte do herbanario mais dolorosamente ferira, não recebêra pêsames de ninguem. Passára a tarde só com o seu pensamento, o qual, como o leitor prevê, lhe não devia ser muito jovial companheiro.

Quem observasse Augusto n’aquelle momento, seria decerto impressionado pelo ar abatido, revelador de uma profunda prostração de animo, que lhe quebrára as fôrças.

Que era feito d’aquella energia, com que se revoltára contra as perseguições da sorte, e que lhe animára os primeiros passos para obter a justificação devida ao bom credito do nome que lhe haviam legado sem mancha? Vimol-o sair do Mosteiro resolvido a luctar, vimol-o repellir nobremente as ironias de Henrique, vencel-o, obrigal-o a pedir-lhe perdão; vimol-o recusar o auxilio que este já lhe offerecia, e considerar-se moralmente obrigado a conquistar elle proprio as provas da sua innocencia.

Que é feito d’essa energia?

O que é feito d’ella? leitor, talvez o teu coração te possa responder por mim, se és uma d’essas victimas, para quem a sorte parece personificada em um espirito malfazejo, que se compraz nos martyrios lentos.

Quando, uns após outros, se repetem os golpes da adversidade, quando todos os males parece cairem sobre uma existencia, como uma maldição de Deus, é raro encontrar-se têmpera de alma tão rija que resista e não ceda, quasi convencida, como o Jacob dos livros sagrados, de que lucta com um poder superior.

A razão mais clara deixa-se tomar então da cegueira do fatalismo, e eivado d’esta grave doença dissipa-se a fortaleza do espirito, como se extinguem as fôrças do corpo, quando gira no sangue um veneno enervador.

Então encontra-se quasi um d’estes prazeres paradoxaes, a que é tão sujeita a natureza humana; sente-se uma especie de gôso em succumbir sem lucta. Experimenta-se, por assim dizer, o orgulho da extrema infelicidade.

Em poucos dias Augusto conheceu as maiores provações da vida: a miseria em perspectiva, a ingratidão, o insulto que avilta, a calumnia que ennodôa, e o infortunio de um verdadeiro amigo. Repellira com dignidade o insulto e a calumnia: sorrira á miseria e á ingratidão, e dera á amizade as consolações que a amizade lhe inspirára.

Mas não desfallecêra com tudo isto.

Maior provação lhe estava reservada, porque ha maiores provações para a alma humana, do que todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de subito a estrella que a guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia, dormindo no meio de uma desencantada realidade; privae-a da ideia querida, que havia muito concebêra, que comsigo vivia, que para si guardava, ciosa dos olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada, perdida, louca, contorcer-se em desespero e succumbir.

Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla, é porque é de essencia mais elevada do que a humana.

Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel, aquelle sonho tão chimerico, que a pobre devia estar prevenida para o perder um dia, e julgou que o estava.

Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma chimera, se ella, nas fórmas vagas e aereas que reveste, nos sorrir e namorar, em vão julgamos têl-a por o que verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que a acreditamos realisavel e até realisada.

E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade, sentimos a dor profunda que nos causa a perda de um objecto querido.

Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos apaixonamos d’elle, apparece, para nos seduzir, sob a feição da realidade aos nossos olhos namorados.

E ao revelar-se como impossivel, destróe o coração que o abraça, como Jupiter sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua gloria de deus.

Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de Augusto, sabem-n’o os leitores: era o amor de Magdalena. A natureza d’esta paixão dizia elle conhecel-a. Não tinha outra aspiração além de existir, era como o culto pela Virgem do Christianismo, era que se adora por adorar, em que na mesma adoração se acha o premio do culto, em que o deixar-se adorar é o mais que pode pedir-se ao objecto d’elle.

De tudo isto estava sinceramente convencido Augusto.

Mas por que foi que, desde os primeiros momentos em que viu Henrique, sentiu quasi aversão para elle? por que foi que, amavel e bondoso para com todos, só para com um desconhecido se mostrou frio e irritante? por que foi emfim que, ao persuadir-se, por certos indicios, de que Magdalena e Henrique se amavam, caiu no desalento, em que tantas causas de infortunio o não tinham lançado ainda? Porque a verdade era que foi este o golpe que o venceu.

Por quê? porque amava Magdalena, porque este amor não tinha nada excepcional; era inconscientemente apprehensivo, ambicioso, devaneador e ciumento, como todos os amores verdadeiros; porque era aquelle o seu sonho mais querido, e desde que era obrigado a convencer-se de que não passára de um sonho, não se sentia de animo para fitar a realidade; porque era aquella a luz da sua alma, e ao vêl-a apagar, vacillou nas trevas e parou. Desde que não avistava um alvo, não havia para elle retrogradar nem progredir; era um movimento sem fim, que não valia mais do que a quietação.

Esta fôra a causa do desalento de Augusto, que só então conheceu que se illudira com o estado do seu coração, que o que em si se passava era o verdadeiro amor.

Desde que teve de renunciar a elle, não fez mais um esforço para justificar-se da calumnia que pesava sobre si. Sentia-se indifferente á condemnação do mundo. Já nem lhe importava justificar-se para com Magdalena; era quasi uma vingança, que tirava d’aquella por quem soffria, obrigal-a a ser injusta.

E a sua consciencia quasi achava voluptuosidade n’isto!

O herbanario fôra victima da mesma illusão de Augusto, e concorrêra involuntariamente para o levar a este estado moral.

Das explicações dadas por Magdalena na casa dos Cannaviaes, sabemos como das meias palavras e meias revelações de Torquato, o herbanario acreditára que a morgadinha combinára imprudentemente com Henrique uma visita nocturna á quinta dos Cannaviaes. O velho, que suspeitára sempre da natureza dos sentimentos de Henrique para com Magdalena, julgou vêr n’aquillo a confirmação das suas suspeitas, e encontrando Magdalena, reprehendeu-a, e, de irritado que estava, nem escutal-a quiz.

Voltando a casa, o velho lidou por muito tempo com a dúvida, se deveria ou não revelar tudo a Augusto.

A noite cerrou de todo e deslizou com a lentidão de uma noite de inverno, sem que elle tivesse resolvido o que faria. O dia seguinte passou-o na mesma indecisão. Mas a inquietação do herbanario crescia; desassocegava-o a ideia do perigo a que suppunha exposta Magdalena, cuja confiança em Henrique a podia perder.

O herbanario continuava a desconfiar de Henrique.

Chegára a noite, aquella em que Torquato lhe dissera ter com uma das meninas de visitar á meia noite, por causa de Henrique, a casa dos Cannaviaes. O velho não pôde mais tempo conter-se e disse a Augusto, depois de muito luctar comsigo:

— Não devo calar-me. É preciso coragem, meu filho. Arranca do coração a loucura que lá tens ainda, embora o deixes em sangue, ou estás perdido.

Augusto estremeceu, olhando-o com sobresalto.

O velho proseguiu:

— Tu vaes sair para te desenganares por teus proprios olhos, e se o que vires te não curar, se é sem remedio esse mal, ao menos sê generoso, e acode e salva, se fôr possivel, quem, perdendo-te, se perde tambem.

E após estas palavras vagas, cujo mais claro sentido Augusto tremeu de investigar, o velho mandou-o aos Cannaviaes, n’aquella mesma noite, recommendando-lhe que fôsse preparado para receber uma grande dor.

Augusto seguiu as indicações do herbanario, e foi.

Era d’elle o vulto que fizera estremecer Magdalena, quando na noite da piedosa devoção de Christina, a vimos chegar á janella dos Cannaviaes.

A morgadinha reconhecêra Augusto através das sombras nocturnas, e tivera um presentimento do que significava a presença d’elle n’aquelle logar e n’aquella occasião.

Por concentrada e discreta que fôsse a paixão de Augusto, não era um mysterio para Magdalena.

A extranhar alguem esta penetração de vista não será decerto nenhuma das minhas leitoras.

Magdalena adivinhára havia muito Augusto, e não lhe fôra difficil explicar até a instinctiva hostilidade com que elle sempre acolhêra Henrique.

Por isso, ao vêl-o alli, previu que pesava sôbre ella uma suspeita, que era victima de uma illusão, e que as apparencias a podiam condemnar.

De feito Augusto chegára tarde aos Cannaviaes, porque só tarde o herbanario vencêra a hesitação que experimentára ao dizer-lhe que fôsse. Por isso só pôde reconhecer a voz e a figura da morgadinha e de Henrique no curto dialogo, que entre os dois se trocára, quando vieram examinar á janella o estado da noite.

As palavras que escutou prestavam-se a ser interpretadas de uma maneira cruel para o seu coração. Assim as entendeu Augusto, e, sem mais querer vêr nem ouvir, retirou-se como um louco.

Foi n’essa occasião que Magdalena o viu.

Quando voltou a casa, o herbanario que, ainda acordado, o esperava, viu-o pallido, e com uma expressão singular no rosto.

— Então? — interrogou-o anciosamente o velho.

— Tinha razão, tio Vicente. Tem sido uma longa e má loucura a minha. Verei se me curo d’ella.

E, sentando-se, encostou a cabeça ás mãos e permaneceu silencioso.

O velho não lhe perguntou o que se tinha passado.

D’ahi em deante foi em rapido progresso a prostração de animo em Augusto.

A doença do herbanario que se exacerbou consideravelmente tambem, era o unico motivo de uma fôrça ficticia que ainda o sustentava. Os seus desvelos pelo enfermo tornavam-lhe todos os instantes.

A unica voz, echo da vida exterior que lhe chegava aos ouvidos, era a do cirurgião que tratava do herbanario.

Falador por indole e por cálculo profissional, o facultativo contava á cabeceira do leito as novidades do dia. Entre essas trouxe uma das que mais vogavam, que era a de que Henrique casava no Mosteiro com a morgadinha.

Um equivoco dizer do Torquato, na presença dos criados do mosteiro, uma das meias discreções do velho, mais perigosas do que a propria indiscreção originára esta versão.

Augusto escutou a nova sem que o gesto o trahisse: mas o herbanario, que o fitou com olhos interrogadores, leu claro n’aquelle rosto impassivel.

No dia das eleições, o estado do velho Vicente era mais grave ainda. O cirurgião prolongou a sua visita e falou da campanha eleitoral. Assegurou que era certa a derrota do conselheiro, desde que contra elle se manifestára o sr. Joãozinho das Perdizes.

O herbanario escutou-o com admiração e sobresalto.

Porque a verdade era que o herbanario sentia pelo conselheiro uma predilecção que a tudo sobrevivia, que nada podia destruir. Similhava o affecto que alguns paes sentem pelos filhos, de quem só teem recebido desgostos, affecto que parece robustecer tanto mais, quantos mais motivos ha para a esfriar.

Pouco depois mestre Pertunhas confirmou a noticia do facultativo.

Foi então que o herbanario, dominado por energia febril, quiz erguer-se do leito, e, apoiado no braço de Augusto, que em vão tentou dissuadil-o, se dirigiu á igreja para votar. O resultado sabem-n’o os leitores.

Todas estas causas, e a ultima, a morte do amigo, acabaram por quebrar o alento a Augusto. Facil é, pois, de conceber qual o estado do seu espirito ao entrar no cemiterio.

Oração ou meditação, por muito tempo durou aquelle tributo de saudade, que o aspecto sombrio da tarde e a melancolia do logar e da hora mais solemne faziam.

Passados alguns momentos, sentiu Augusto que alguem se approximava d’elle. Voltou-se. Era o Cancella, que tambem viera rezar junto do tumulo da filha.

Não era o Cancella já o mesmo robusto e alegre aldeão que vimos, dominado pelo enthusiasmo, sobre o tablado rustico, representar com applauso o tyranno perseguidor do Messias. Desde a morte da filha parecia outro. Triste, avelhentado, emmagrecido, nem tinha fôrças para o trabalho, nem coração para alegrias.

Dir-se-ia que a filha lhe partira com a alma, e que era um cadaver o que se movia alli.

— Ah! logo vi que era o sr. Augusto — disse o pobre homem, estendendo a mão, que Augusto apertou com affecto. — Só nós temos amigos aqui.

— É verdade, Cancella. Ou só nós, fóra d’aqui, não temos outros, pelos quaes esqueçamos estes, que ahi dormem.

— Eu decerto que não! Está-me toda a alegria, está-me todo o coração debaixo d’aquella pedra — disse o Herodes, apontando para o tumulo da filha. — Com mais de quarenta annos, que nova vida se pode principiar?

— Ha quem aos vinte já não tenha coragem para principiar outra!

O Cancella olhou fixo para Augusto ao ouvir-lhe estas palavras.

— Fala de si, sr. Augusto?... Não tem razão. Que são as suas dores ao lado da minha? Se ainda não experimentou o amor e as alegrias de pae, como ha de imaginar a dor, que a morte de uma filha unica nos traz ao coração?... A minha pobre Ermelinda!... Parece-me ainda impossivel o têl-a perdido!... Queria a esse velho, sr. Augusto!... E com razão, que era seu amigo e quasi um pae para si... mas não é sem remedio a sua saudade, verá... A minha porém...

Augusto sorriu amargamente.

— Tu sabes lá, homem, o que eu tenho no coração?

N’isto chegou-lhes aos ouvidos um vozear distante, com um rumor de acclamações e applausos. Eram os clamores dos grupos populares, celebrando a victoria do conselheiro.

Os sons da trompa do mestre Pertunhas dominavam todos os mais.

— Uns riem, emquanto outros choram — disse o Cancella. — Ha alegria acolá.

E designou com o dedo o Mosteiro, cujos telhados se avistavam d’alli.

— Ha... — respondeu Augusto, pensativo. — Somos de mais n’esta terra, meu pobre Cancella; nós, os infelizes.

— Por isso parto ámanhã.

— Partes?

— Se eu não posso viver aqui! Se tudo isto me está falando na filha!... A cada passo estou á espera de vêl-a... É como se a todo o instante me morresse. Vou para a cidade; dizem que estão engajando por lá trabalhadores para o Brazil... Quero vêr se o trabalho me mata, antes que o desgôsto me não tente a morrer de outra sorte.

— E dizes que partes ámanhã?

— De madrugada. Já tenho tudo prompto.

Augusto reflectiu por algum tempo.

— Far-te-hei companhia.

O Herodes olhou-o, admirado.

— O sr. Augusto?! Pois quer?...

— Quero que me batas á porta, quando passares.

— Mas que tenções são as suas, sr. Augusto?

— As mesmas talvez que as tuas. Não dizes,que queres vêr se o trabalho te mata? Por que não hei de eu tentar o mesmo tambem?

— Mas... não lhe morreu uma filha.

— E cuidas tu que só um amor de filha nos pode prender á vida? que só a morte de uma creança nos pode ferir no coração?...

O Herodes esteve algum tempo calado, com os olhos em Augusto; depois disse, com hesitação ainda:

— Não é por certo a morte d’este santo velho que o faz falar assim, sr. Augusto. Se quizesse desabafar commigo... talvez que lhe fizesse bem. Bem vê que eu sou infeliz e... havia de entendel-o...

Augusto apertou-lhe a mão, commovido.

— Pobre amigo! Não, não me entenderias; porque não basta ser infeliz para me entender. É necessario ter sido louco como eu fui.

— Louco?!...

— Sim, louco, meu bom Cancella, louco. Não te lembras d’aquelle desgraçado do Pé do Monte, que se suppunha rei? Como ria n’aquelle tempo! Um dia voltou-lhe o juizo, mas ficou tão triste até morrer, que parece que tinha saudades da loucura! Talvez que lhe devesse os unicos instantes de felicidade que sentiu na vida.

O Herodes já não comprehendia Augusto, o que lhe fez crêr que o não entenderia se elle o tomasse por confidente.

Augusto mudou de tom, dizendo-lhe:

— Promettes passar por minha casa esta madrugada?

— Pois sempre quer?...

— Se não partir comtigo, partirei só.

— N’esse caso...

— Espero-te. Aonde vaes agora?

— Ao Mosteiro.

— Ah!... vaes ao Mosteiro?...

— Vou despedir-me d’aquella santa familia, que tão bem me tratou da filha, e de Angelo, d’aquella alma de cherubim, que ainda se não consolou tambem da morte da minha pobre Linda.

— Angelo?... É um nobre coração... Espera... Não quero partir sem lhe dirigir algumas palavras... Devo-lh’as.

— Só a elle?

— Só elle m’as agradecerá.

E Augusto approximou-se do tumulo da mãe de Magdalena, e á frouxa claridade d’aquella hora escreveu com um lapis em um quarto de papel estas palavras:

«Angelo. — Escrevo-lhe sobre a pedra do tumulo, em que repousam sua mãe e Ermelinda, duas imagens que serão sempre para o seu coração rodeadas de todo o prestigio da saudade. Ouça-me, que em nome d’ellas lhe falo. Dentro de algumas horas deixarei para sempre estes sitios. Se as memorias da infancia me prendiam aqui, as sombras de grandes soffrimentos as offuscaram. Parto quasi sem custo. Não o tornando talvez a vêr, Angelo, tinha um dever a cumprir para com a sua generosidade. Hão de ensinal-o a desprezar-me, Angelo. O seu nobre instincto de creança recusar-se-ha a isso ao principio talvez: mas a razão do adolescente talvez venha a ser mais docil. Não podendo justificar-me, deixe-me ao menos jurar-lhe que parto com a consciencia tranquilla. Não é por mim que faço este protesto, é para lhe evitar, se fôr possivel, a dúvida no caracter dos homens. Para um coração, como eu lhe conheço, deve ser um martyrio. Os mais que me condemnem; nem necessidade sinto já de me justificar. Parto com um desalentado como eu. O que vou procurar não sei. Tudo acceito com indifferença. — Seu amigo, Augusto.

Fechando a carta, entregou-a ao Cancella, e ajustando outra vez a hora a que deviam encontrar-se, separaram-se.

O Cancella dirigiu-se para o Mosteiro e ainda a pensar nas palavras que ouviu a Augusto, e sem que atinasse com os motivos d’aquelle desalento.

Não pôde, porém, chegar tão depressa ao Mosteiro como esperava; distrahiu-o no caminho o seu compadre Zé P’reira.

A harmonia do par conjugal de que constituia a parte masculina o nosso Zé P’reira, estava cada vez mais transtornada.

A beatice azedára o animo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista.

A saida precipitada do missionario, que não se sentiu seguro na terra depois da scena do cemiterio, e do desespero do Herodes, com quem elle imaginava a cada passo esbarrar, rodeára aquelle santo varão do prestigio dos martyres perseguidos; e as saudades por elle e devoção pela sua memoria augmentaram consideravelmente na aldeia.

Se mal corria ha muito a casa e o governo domestico da familia Zé P’reira, peor se tornou depois d’essa época.

A mulher passava todo o tempo em devoções na igreja. O marido, desconsolado, procurava lenitivo na taberna.

Descuidou-se cada vez mais de trabalhar. A embriaguez era n’elle estado habitual, e já menos inoffensiva e pacifica do que nos primeiros tempos.

A miseria ameaçava invadir aquelle lar, até alli remediado.

Tudo isto exacerbára a acrimonia das discussões conjugaes.

Marido e mulher fustigavam-se com os menos amaveis epithetos e attribuiam-se reciprocamente as honras da ruina do casal.

De noite desencadeiava-se a tempestade domestica e cada vez mais ameaçadora.

Um dia, o marido, excitado pelo vinho, foi mais além do que a sua timidez habitual o permittira até alli, e a sr.a Catharina soube, pela primeira vez, que o osso de que ella era osso não tinha a brandura que lhe suspeitava.

Deu-se uma scena escandalosa, em que interveio a vizinhança. D’ahi por deante fôram frequentes iguaes espectaculos.

Na noite em que o Herodes o encontrou, o Zé P’reira, em completa embriaguez, acabára de fazer sentir mais uma vez a sua mulher toda a fôrça da auctoridade marital. Ella revoltou-se e abandonou os penates, jurando que nunca mais voltaria a elles.

O pobre do homem andava agora perdido nas ruas á procura d’ella, arrepellando-se, chorando, praguejando, que mettia dó. O Cancella condoeu-se d’elle, e dando-lhe o braço, para lhe firmar os passos cambaleantes, conduziu-o a casa, promettendo restituir-lhe a mulher fugida.

E n’esta tarefa de reconciliação passou grande parte da noite, conseguindo a final harmonisal-os, mas convencido de que não seria muito duradoura a paz.

E tinha razão o Cancella em pensar assim. Ao lar domestico, onde uma vez se passa uma scena d’aquellas, nunca maïs volta o anjo da concordia.

O pobre do Zé P’reira estava condemnado a levar assim o resto da sua vida de familia.

Esta occorrencia demorou o Herodes, que só tarde entrou no Mosteiro a despedir-se da familia que tanto lhe estimára a filha.